segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Água da Chuva

Autor: JORGE NUNES BARBOSA

ÁGUA DA CHUVA
Em mim nada secou. Um pingo de
chuva lava o passado, outro pingo lavano futuro.
Escrevo em terra seca palavras aguadas. A terra
sedenta engole a água, ruidosa, aos arrotos. Ficam as
palavras, este fingimento que fustiga como o vento. Fustiga o vento.
A água da chuva lava tudo o que sei. Em mim nada
secou. Só um pouco de chuva lava o que sei, mágoas de
tempos que os rios levam para o mar.
Escrevo em terra seca, sedenta
Mágoas de tempos que hão-de vir que os rios não
levam para o mar. Mas em mim nada secou. Um pingo de
chuva lava o passado, outro pingo lava o futuro
Este meu corpo magoado, a chuva não lava. Só o
passado. Só o futuro. E é tudo. E é nada. Porque este meu
corpo magoado, a chuva não lava.
As palavras agasalham a mágoa.
Não dói. Já nem dói.
Só o vento fustiga.
O vento leva as canas do canavial para outro porto
Às canas leva-as o vento
Não me agasalham as canas
Só as palavras
E as palavras não as leva o vento
Ficam as palavras.
Nada mais
Escrevo em terra seca palavras aguadas. A terra
sedenta engole a água, ruidosa, aos arrotos. Ficam as
palavras, este fingimento que fustiga como o vento. Fustiga o vento.
Vento, não me dóis
As palavras fustigam como tu
E rio
Chicote contra chicote
E eu a ver
E rio
Fica com a tua águia, contigo. Voa no seu dorso.
Mergulha no canavial. As canas, leva-as o vento. As palavras, não.
E eu? Não o saberás nunca. Rio de rir, de água que
marulha, mansa, no leito pedregoso. Pé aqui, pé ali, não vá
rasgar-se a pele, de caminhar. Rio de água que flutua no
ar, rio de rir. Não há nada para saber. A água sabe a água.
O ar sabe a ar. Eu sei a eu. Tu sabes a tu. Nunca me
saberás. O ar não sabe a água. A água não sabe a ar. O
prometido é devido: nunca me saberás. Serás sábia como
as águias por não me saberes. Voarás como elas, com
elas e por elas. Serás sábia.
E tu? Não o saberei nunca. Fingimento de ais, de
canas que flutuam ao vento. Canavial, ninho de águias.
Não serei sábio por não te saber. Não serei águia por não
te voar. Serei rio de rir. Serei ar de voar. Serei pardal
atabalhoado. Nunca te saberei.
E nós? Não o saberemos nunca. Juncos postos a
seco, de navegar em rio marinho. Vagas alteradas, sem
paz, sem guerra.
E os outros? Não o sabereis nunca. Parados, à
janela, espreitais o ar e a água. Peitos no peitoril. Nódoas
negras de esperar bálsamo de saber. Não voais, não
navegais. Esperais. Águias sábias. Quem vos vale?
Montanha de subir, eu não. Talvez tu. Talvez vós. Eu não.
Construo este muro em meu redor. Salvo as
minhas flores do vento que leva as canas do canavial.
Estendo um manto de parede a parede. Não vá a neve
crestar as minhas flores deste meu jardim. O único. A cada
subida, uma nova fieira de tijolos no meu muro. Em cima,
arame farpado. Aviso: se subir, vai rasgar as rendas da
saia. Do outro lado, aviso: se vai subir, beba primeiro. Do
outro lado, aviso: aperte os cintos de segurança. Do outro
lado, aviso: cuidado com o cão. De todos os lados, aviso:
se quer subir, desça. Em cima e em baixo, em letras piscapisca
de néon, ora em cima, ora em baixo, aviso: não suba.
O muro já não sobe. Já ninguém o quer subir. Uf. Alívio.
Tanto tijolo. Tanto mar de suar. O muro só sobe se o
subirem. Ninguém o sobe, ele não sobe. Sábio, este muro.
Vou alindá-lo um dia. Vou pintá-lo de verde, de flores.
Malmequeres. Isso mesmo, malmequeres. Mal-me-que-res.
Dentro do muro de tijolos, um muro de palavras.
Estas e outras. E eu dentro delas. Rio de rir. Para os dois
lados. Para jusante e para montante. Quem ri do rio ri-se
de si. Rego o meu jardim. E espero ver as flores florir. Rio
de regar. Quem rega do rio rega-se a si. Rego e renego.
Renego o mar. Quem renega o mar renega-se a si. Renego
o mar e rego o jardim. Mar salgado, quanto do teu sal são
lágrimas de PortugalRenego o sal, as lágrimas e o mar...
e Portugal, se for preciso. Rego do rio o meu jardim.

Se por qualquer razão me esfaquearem de novo,
nada mais encontrarão que pequeníssimos cadáveres de
saudade.
Em mim nada secou
Não possuo a morte no coração, mas sim um pouco de chuva que
lentamente apaga o fogo doutros dias mais simples
Escuto o lamento das águas e sei que tudo
continua vivo no fundo do mar… e no coração persistente
das plantas.

Outras feridas alastram subitamente no fulcro da
memória
Outras noites atravessam-me
Semeiam pelo corpo flores e pânico

A escrita é um marulhar incessante
Imito a paisagem como se te imitasse, ou te
escrevesse.

Resta-me o fingimento sibilante das palavras
Caminho pelo interior das dunas, apago o rasto de
tinta acetinada, sou terra num texto onde não encontro
água
Só noite e um rumor imperceptível no coração
Mais nada.
Vou partir
Como se fosses tu que me abandonasses.

Que mais posso dizer?

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