quarta-feira, 29 de agosto de 2007

JUÍZO EMBOTADO

O ser humano tem dificuldade em processar as novidades. Mais do que não ser capaz de tomar imediatamente posição crítica sobre elas, parece ficar temporariamente limitado na sua faculdade de simplesmente as ajuizar. Não é que não as detecte; o que acontece é que não as vê como susceptíveis de serem ajuizadas, sem antes terem alguma consequência.
Grandes filósofos, como Heidegger relativamente ao nazismo, ou Ortega y Gasset relativamente ao franquismo católico, ou mesmo Agostinho da Silva face ao integralismo lusitano, cairam no logro da neutralidade por manifesto embotamento do juízo.
Mas é essa capacidade de ajuizar sobre algo, antes das suas consequência, que faz do ser humano um sujeito de si mesmo, e não um simples objecto manipulável em função do mercado livre das palavras. Que elas, as palavras, se compram e se vendem, já o sabemos há muito tempo. Que aceitemos tranquilamente as "regras do mercado" das palavras, porque essa seria a forma de assegurar a liberdade, isso já é preocupante, porque o mercado nunca é livre, é dominado por quem tem poder de compra.
Em todo o caso, se o brilhante Heidegger não foi capaz de ajuizar em todas as suas consequências a brutalidade do nazismo, porque já formara uma ideia sobre a catástrofe em que, antes dele, vivia a Alemanha, não podemos esperar que um jornalista, ou um editor de jornais seja capaz de fazer muito melhor quando um novo Governo toma posse. Primeiro, porque, em princípio, não é todos os dias que toma posse um Governo nazi ou fascista, o que, sendo verdade no campo das probabilidades, já é um primeiro sinal da origem do embotamento do juízo, depois porque, de facto, do jornalista espera-se que seja neutro, imparcial e, consequentemente, faça todos os esforços necessários e até alguns desnecessários para não pensar com a sua própria cabeça.
Por esta razão, e seguramente por outras também, Hitler, Mussolini, Staline, Franco, Salazar beneficiaram de um estado de graça, directamente proporcional ao estado de desgraça em que se encontravam os seus países quando tomaram posse. A desgraça era tanta que o estado de graça foi aquilo que se viu.
Nos regimes ditos democráticos, (ditos, porque para que os cidadãos exerçam o poder, não se dispensa a propaganda, a circulação de rios de dinheiro e outras coisas ainda menos dignas de ser mencionadas), os novos governos beneficiam também desse indispensável estado de graça, proporcional à desgraça que o anterior governo deixou. Todos deixam o país num estado mais ou menos de desgraça, mas nem sequer esta regularidade é suficiente para acordar as mentes adormecidas pela propaganda eleitoral, para a absoluta necessidade de combater esse estado de graça, que gratuitamente é concedido àqueles que, legitimamente, porque ganharam o concurso, falam em nome de todo o povo. A democracia actual, tal como a vemos em prática, é, na verdade, um concurso público, onde vale tudo, menos a competência e a seriedade. O poder soberano dos cidadãos é, na prática, utilizado indevidamente como uma oportunidade para todos aqueles que ambicionam o poder, nomeadamente o poder de fazer manguitos a quem os elege.
A concessão desse estado de graça aos novos governos é da responsabilidade dos agentes económicos desse enorme "mercado livre" da palavra, a que também se chama mass media, ou, mais modestamente, comunicação social. Alguém tem de gerir estas coisas, porque delas depende a liberdade, e a liberdade, assim parece pelo menos, não é aquilo que se pensa, a liberdade é o que resta, após a intervenção de tutores que assumem, com enorme sacrifício, a responsabilidade de alimentar o medo da liberdade nos cidadãos todos, inclusive em si mesmos enquanto cidadãos.
Seja como for, em todo o caso, o estado de graça, concedido aos governos, tem origem no embotamento do juízo que, por seu turno, nasce do medo da liberdade, gerado pelos tutores da liberdade, que são afinal os mesmos que decretam o estado de graça para os novos governos, como um ritual de afirmação quase religiosa, seguramente dogmática.
O Governo de Sócrates, para o qual contribuí com o meu voto, teve muito tempo de estado de graça, o tal tempo proporcional à desgraça que o antecedeu; mas há que ter cuidado: por este andar, aquele que lhe sucederá, após a queda do Partido Socialista, nas próximas ou nas seguintes eleições, será tendencialmente eterno, se o estado de graça continuar proporcional à desgraça.
Em nome da democracia, ainda que por democracia se entenda tão só a alternância no poder na sequência da propaganda e das eleições, é bom que Sócrates tenha a coragem de mudar o rumo da política do seu governo.
Só a título de exemplo, conviria que o Ministério da Educação iniciasse realmente uma reforma, e não se limitasse a alterar estatutos, dos professores e dos alunos, e a outras banalidades sem nexo. Para isso, é preciso que a responsável pelo Ministério da Educação tenha alguma ideia partilhável. Não pode continuar, qual forcado, a desafiar o touro até ao fim do seu mandato. O touro já está desmaiado das farpas que lhe espetaram; já nem ouve. Não pode continuar, portanto, naquela figura ridícula, a gritar "eh touro". Por seu turno, os sindicatos não podem continuar a assistir a uma pega absolutamente ridícula, exigindo só que , em vez de gritar "eh touro", passe a gritar "eh tourinho". A Ministra deu sinais, logo no início do seu mandato, de que a sua prioridade era saltar para a arena e fazer mais ou menos o que está a fazer. Pelo menos, foi assim que interpretei a sua primeira medida pública. Infelizmente não me enganei.
Temos de tirar as vendas. Todos. E ver o que é que realmente mudou (para melhor ou para pior, não é o que vem agora ao caso), para além das palavras, dos decretos e dos desaforos, nas escolas portuguesas, e que não mudaria, se o Ministério da Educação tivesse estado, este tempo todo, fechado para balanço.
É altura de ajuizar sobre a acção deste Governo. E já é muito tarde.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

FILOSOFIA DE PLATÃO

PARA CONSULTAR, CLICAR NO TÍTULO.

Extractos:

  1. O objectivo da filosofia de Platão dificilmente pode ser apreendido só a partir dos seus diálogos; é também indispensável analisar toda a sua Tarefa Filosófica.
  2. Com efeito, entre duas interpretações que expliquem a totalidade da obra de Platão, de acordo com o axioma da simplicidade, deveremos escolher aquela que menos mudanças de opinião ou doutrina seja necessário supor, uma vez que o autor não as enunciou explicitamente.
  3. Há indivíduos, em que predomina claramente o fluxo dos desejos e a incapacidade para o sacrifício. Estes indivíduos são felizes como consumidores. Neles, e no facto de constituírem a maioria, baseia-se o consumismo da sociedade, do tempo de Platão, como do nosso (ainda que o do nosso tempo seja muito distinto). A estes consumidores não podemos pedir que se sacrifiquem pelo bem comum, só lhes podemos pedir que produzam aquilo que consomem.
  4. Um outro grupo de pessoas aspira, acima de tudo, a ser reconhecido; esses buscam a honra, a fama, a glória, o êxito. Se deixássemos o governo da cidade nas suas mãos, seriam tanto ou mais perigosos do que os anteriores, como acontece nas ditaduras militares, porque não hesitariam em inventar guerras só para poderem ser condecorados, como diz Platão. No entanto devemos reconhecer neles a capacidade para sacrificarem todos os seus desejos, a própria vida, se for caso disso, para salvar a comunidade. Por isso, Platão acha que devem ser os guardiães da cidade.
  5. O ideal, já o vimos, consiste no equilíbrio entre as duas forças da alma, sob o comando da razão. Filósofo é aquele que é capaz de sacrificar os seus desejos e as suas paixões em nome do conhecimento “simplesmente porque sim”. Só aquele que assim governa a sua alma tem capacidade para governar a cidade. O bom governo implica a manutenção do equilíbrio dinâmico entre as duas forças opostas: os produtores e os guardiães. Este equilíbrio consegue-se, dando-se a cada um aquilo de que necessita e só lhe pedindo aquilo que possa dar à comunidade.
  6. Observemos, de passagem, que, segundo Platão, deve aceder ao poder aquele que não o deseja nem o quer, uma vez que será o único que não converterá a cidade num grande mercado ou numa praça militar.
  7. pode haver indivíduos que devorem livros como quem devora manjares (este parece ser o perfil de Fedro); mas a partir do momento em que a palavra pode ser comprada e vendida, objecto de troca, de luxo ou de moda, fica difícil conseguir que essa palavra nos conduza ao conhecimento interior. A palavra, por si só, não consegue defender-se do mau uso que possa ser feito dela.
  8. A tradição saxónica utilizou a estilometria para pôr em evidência as supostas contradições com o conteúdo de outros diálogos anteriores. Já nos referimos a isto. Só falta dizer que estes últimos diálogos tornam-se especialmente ricos se, em vez de procurarmos contradições, procurarmos uma aproximação com as doutrinas ensinadas por Aristóteles, supostamente ensinadas por Platão na Academia.
  9. Por isso, a compreensão do Bem (isto é: da perfeição) é tão importante para fazer bons carros como para construir boas comunidades. Se hierarquizarmos estas coisas, chegaremos à conclusão de que é prioritário construir boas comunidades, porque, só neste contexto, podemos saber, mais para além do que é um bom carro, se os carros, em si, são bons.
  10. Em jeito de conclusão, como foi dito no princípio, de acordo com a perspectiva de Jan Patocka, em Platão só há uma coisa, o cuidado da alma, que supõe tanto um projecto ontológico, como um projecto ético e político. Só a abstracção formal de um pensamento analítico os pode separar.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

DISCURSO SOBRE O MEDO


DISCURSO SOBRE O MEDO
[Baptista Bastos, Público, 01-08-2007] |

Numa maçadora entrevista à SIC, o nosso querido primeiro-ministro tentou minimizar e, até, desacreditar o artigo de Manuel Alegre, no Público, no qual criticava o autoritarismo e o medo ressurgentes. Sócrates repetiu o já por nós sabido. E os entrevistadores, apesar da agressividade sorridente, apenas expuseram a modéstia dos pessoais recursos.

Sócrates não possui o talento das suas farsas e começa a ser deprimente a grosseria das respostas. O homem dissimula, com o enfatuado das frases, o facto de que não dispõe de ideias de seu.

A verdade é que o discurso sobre o medo, de Manuel Alegre, propiciava uma discussão, pelo menos curiosa, dos nossos comportamentos. A indiferença aborrecida com que o primeiro-ministro empalmou a questão, e o silêncio sem condolências com que os entrevistadores o admitiram, chegaram para se entender da inutilidade do insólito encontro a três.

O PS não quer discutir coisa alguma. É um partido entregue a tabeliães, com mistura de tecnocracia de segunda ordem. Além, claro!, da ausência total e absoluta de ideologia e de convicções. Quando Sócrates afirma, sem pudor, que as acusações de Alegre sobre o medo na sociedade e no PS constituem "um clássico", a deselegância extravasa os limites do suportável. O secretário-geral não quer debater o assunto. É um direito que lhe assiste. Porém, comete uma espécie de assassínio de carácter, de que, a esmo e amiúde, lamenta ser alvo.

Está à vista desarmada que a sociedade portuguesa vive numa atmosfera de temor, caucionada pelo desemprego, pelo trabalho precário, pelo custo da vida, pelo incentivo à delação, pelo desprezo com que se trata os nossos velhos, pela recusa da esperança, pelo sombrio horizonte do futuro, pelo ataque indiscriminado ao Serviço Nacional de Saúde, pelas obscenas desigualdades sociais não só traduzidas no desespero e na angústia quotidianas como pelas afrontosas reformas auferidas por "gestores" públicos - e mesmo privados. O medo cobre as situações que acabo de evocar. E esta "cultura" do PS não provém de linguagens intraduzíveis umas das outras: resulta de um conflito generalizado, aberto ou latente, mais ou menos violento nascido na década de 80, com o "cavaquismo".

O artigo de Manuel Alegre falava da necessidade de uma visão social que rejeite as humanidades separadas. Essa civilização do universal, de que tem sido paladino, apela no sentido dos valores e dos territórios transculturais. Não creio que José Sócrates tenha conhecimentos suficientes para entender o que, depreciativamente, designa de um "clássico" periódico. Não é tão-só problema dele. É a nossa tragédia.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

CONTRA O MEDO, LIBERDADE

EDITORIAL
Contra a espiral do medo e da irresponsabilidade

[Sítio do MIC, 26-07-2007]

1.
Não podemos ( ainda ) teorizar sobre o medo como estado de espírito instalado em toda a sociedade portuguesa. É verdade que já é possível suportar a tese da debilitação de largas camadas de portugueses a viverem crises laborais graves que arrastam consigo todo o tipo de dependências que coincidem com as geradas pelas ditaduras.
Todos sabemos que os jovens vivem aos soluços, maioritariamente contratados a prazo certo e todos sabemos que, a partir dos 50 ou 55 anos, os portugueses são velhos para as empresas e jovens para a segurança social.
O poder político tem, perante esta crise, duas alternativas: ou alcança o desenvolvimento económico que confere elasticidade à cidadania ou se reclama da sua autoridade, das suas prerrogativas, dos seus poderes, das sua imunidades.
Parece, pois, que a soma das duas vertentes – as dependências de uns e a autoridade reclamada por outros – acaba por minar a cidadania e a participação dos cidadãos, como primeira consequência, e gera a irresponsabilidade de todos os poderes, porque perversamente protegidos.
Esta é a mais delicada espiral para que podemos ser arrastados se não travarmos a tempo estas duas tendências: nem nos desenvolvemos nem responsabilizamos politica e juridicamente todos os poderes, seja qual for a sua natureza.

2.
Como agir? O que fazer? Qual o antibiótico adequado para inverter ou impedir a marcha descendente dessa espiral?
Não há segredos, como sabemos, nem fórmulas mágicas. Se é verdade que o desenvolvimento económico não depende de todos, nem sequer só dos portugueses, também é verdade que a intervenção de todos na vida cívica, social e política é um imperativo de cada um de nós.
Mas que participação se exige? Será que a nossa intervenção depende da iniciativa dos aparelhos, das direcções, dos líderes? A resposta, obviamente, é negativa.
A participação na vida cívica, social e política deve exercer-se onde estamos: na rua, no bairro, na freguesia, na associação cultural, desportiva, em suma, em qualquer lugar onde se pretenda agir, actuar e preencher os vazios que a democracia representativa gerou e está perigosamente a ampliar. Em suma: não ficar quieto e calado é o móbil de toda a actividade cívica.
Convém lembrar que as candidaturas de Manuel Alegre e Helena Roseta são manifestações dessa natureza e com essa finalidade. A sua eficácia está à vista.
Vamos, pois, potenciar e ampliar tal modo de agir: em cada lugar, em cada bairro, em cada associação, em cada jornal, a palavra de ordem é: intervir, intervir, intervir.

João Correia, Presidente da Comissão Coordenadora

[ver mais http://www.micportugal.org/index.htm?no=1500676]

OPINIÃO
Contra o medo, liberdade

Contra o medo, liberdade
[Manuel Alegre, 23-07-2007]

Nasci e cresci num Portugal onde vigorava o medo. Contra eles lutei a vida inteira. Não posso ficar calado perante alguns casos ultimamente vindos a público. Casos pontuais, dir-se-á. Mas que têm em comum a delação e a confusão entre lealdade e subserviência. Casos pontuais que, entretanto, começam a repetir-se. Não por acaso ou coincidência. Mas porque há um clima propício a comportamentos com raízes profundas na nossa história, desde os esbirros do Santo Ofício até aos bufos da Pide. Casos pontuais em si mesmos inquietantes. E em que é tão condenável a denúncia como a conivência perante ela.
Não vivemos em ditadura, nem sequer é legítimo falar de deriva autoritária. As instituições democráticas funcionam. Então porquê a sensação de que nem sempre convém dizer o que se pensa? Porquê o medo? De quem e de quê? Talvez os fantasmas estejam na própria sociedade e sejam fruto da inexistência de uma cultura de liberdade individual.
Sottomayor Cardia escreveu, ainda estudante, que “só é livre o homem que liberta”. Quem se cala perante a delação e o abuso está a inculcar o medo. Está a mutilar a sua liberdade e a ameaçar a liberdade dos outros. Ora isso é o que nunca pode acontecer em democracia. E muito menos num partido como o PS, que sempre foi um partido de homens e mulheres livres, “o partido sem medo”, como era designado em 1975. Um partido que nasceu na luta contra a ditadura e que, depois do 25 de Abril, não permitiu que os perseguidos se transformassem em perseguidores, mostrando ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair noutra ditadura de sinal contrário.
Na campanha do penúltimo congresso socialista, em 2004, eu disse que havia medo. Medo de falar e de tomar livremente posição. Um medo resultante da dependência e de uma forma de vida partidária reduzida a seguir os vencedores (nacionais ou locais) para assim conquistar ou não perder posições (ou empregos). Medo de pensar pela própria cabeça, medo de discordar, medo de não ser completamente alinhado. No PS sempre houve sensibilidades, contestatários, críticos, pessoas que não tinham medo de dizer o que pensam e de ser contra quando entendiam que deviam ser contra. Aliás, os debates desse congresso, entre Sócrates, eu próprio e João Soares, projectaram o PS para fora de si mesmo e contribuíram em parte para a vitória alcançada nas legislativas. Mas parece que foram o canto do cisne. Ora o PS não pode auto-amordaçar-se, porque isso seria o mesmo que estrangular a sua própria alma.
Há, é claro, o álibi do governo e da necessidade de reduzir o défice para respeitar os compromissos assumidos com Bruxelas. O governo é condicionado a aplicar medidas decorrentes de uma Constituição económica europeia não escrita, que obriga os governos a atacar o seu próprio modelo social, reduzindo os serviços públicos, sobrecarregando os trabalhadores e as classes médias, que são pilares da democracia, impondo a desregulação e a flexigurança e agravando o desemprego, a precariedade e as desigualdades. Não necessariamente por maldade do governo. Mas porque a isso obriga o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) conjugado com as Grandes Orientações de Política Económica. Sugeri, em tempos, que se deveria aproveitar a presidência da União Europeia para lançar o debate sobre a necessidade de rever o PEC. O Presidente Sarkozy tomou a iniciativa de o fazer. Gostei de ouvir Sócrates a manifestar-se contra o pensamento único. Mas é este que condiciona e espartilha em grande parte a acção do seu governo.
Não vou demorar-me sobre a progressiva destruição do Serviço Nacional de Saúde, com, entre outras coisas, as taxas moderadoras sobre cirurgias e internamentos. Nem sobre o encerramento de serviços que agrava a desertificação do interior e a qualidade de vida das pessoas. Nem sobre a proposta de lei relativa ao regime do vínculo da Administração Pública, que reduz as funções do Estado à segurança, à autoridade e às relações internacionais, incluindo missões militares, secundarizando a dimensão administrativa dos direitos sociais. Nem sobre controversas alterações ao estatuto dos jornalistas em que têm sido especialmente contestadas a crescente desprotecção das fontes, com o que tal representa de risco para a liberdade de imprensa, assim como a intromissão indevida de personalidades e entidades na respectiva esfera deontológica. Nem sobre o cruzamento de dados relativos aos funcionários públicos, precedente grave que pode estender-se a outros sectores da sociedade. Nem ainda sobre a tendência privatizadora que, ao contrário do Tratado de Roma, onde se prevê a coexistência entre o público, o privado e o social, está a atingir todos os sectores estratégicos, incluindo a Rede Eléctrica Nacional, as Águas de Portugal e o próprio ensino superior, cujo novo regime jurídico, apesar das alterações introduzidas no parlamento, suscita muitas dúvidas, nomeadamente no que respeita ao princípio da autonomia universitária.
Todas estas questões, como muitas outras, são susceptíveis de ser discutidas e abordadas de diferentes pontos de vista. Não pretendo ser detentor da verdade. Mas penso que falta uma estratégia que dê um sentido de futuro e de esperança a medidas, algumas das quais tão polémicas, que estão a afectar tanta gente ao mesmo tempo.
Há também o álibi da presidência da União Europeia. Até agora, concordo com a acção do governo. A cimeira com o Brasil e a eventual realização da cimeira com África vieram demonstrar que Portugal, pela História e pela língua, pode ter um papel muito superior ao do seu peso demográfico. Os países não se medem aos palmos. E ao contrário do que alguém disse, devemos orgulhar-nos de que venha a ser Portugal, em vez da Alemanha, a concluir o futuro Tratado europeu. Parafraseando um biógrafo de Churchill, a presidência portuguesa, na cimeira com o Brasil, recrutou a língua portuguesa para a frente da acção política. Merece o nosso aplauso.
O que não merece palmas é um certo estilo parecido com o que o PS criticou noutras maiorias. Nem a capacidade de decisão erigida num fim em si mesma, quase como uma ideologia. A tradição governamentalista continua a imperar em Portugal. Quando um partido vai para o governo, este passa a mandar no partido que, pouco a pouco, deixa de ter e manifestar opiniões próprias. A crítica é olhada com suspeita, o seguidismo transformado em virtude.
Admito que a porta é estreita e que, nas circunstâncias actuais, as alternativas não são fáceis. Mas há uma questão em relação à qual o PS jamais poderá tergiversar: essa questão é a liberdade. E quem diz liberdade diz liberdades. Liberdade de informação, liberdade de expressão, liberdade de crítica, liberdade que, segundo um clássico, é sempre a liberdade de pensar de maneira diferente. Qualquer deriva nesta matéria seria para o PS um verdadeiro suicídio.
António Sérgio, que é uma das fontes do socialismo português, prezava o seu “querido talvez” por oposição ao espírito dogmático. E Antero de Quental chamava-nos a atenção para estarmos sempre alerta em relação a nós próprios, porque “mesmo quando nos julgamos muito progressistas, trazemos dentro de nós um fanático e um beato.” Temo que actualmente pouco ou nada se saiba destas e doutras referências.
Não se pode esquecer também a responsabilidade de um poder mediático que orienta a agenda política para o culto dos líderes, o estereotipo e o espectáculo, em detrimento do debate de ideias, da promoção do espírito crítico e da pedagogia democrática. Tenho por vezes a impressão de que certos políticos e certos jornalistas vivem num país virtual, sem povo, sem história nem memória.
Não tenho qualquer questão pessoal com José Sócrates, de quem muitas vezes discordo mas em quem aprecio o gosto pela intervenção política. O que ponho em causa é a redução da política à sua pessoa. Responsabilidade dele? A verdade é que não se perfilam, por enquanto, nenhumas alternativas à sua liderança. Nem dentro do PS nem, muito menos, no PSD. Ora isto não é bom para o próprio Sócrates, para o PS e para a democracia. Porque é em situações destas que aparecem os que tendem a ser mais papistas que o papa. E sobretudo os que se calam, os que de repente desatam a espiar-se uns aos outros e os que por temor, veneração e respeitinho fomentam o seguidismo e o medo.
Sei, por experiência própria, que não é fácil mudar um partido por dentro. Mas também sei que, assim como, em certos momentos, como fez o PS no verão quente de 75, um partido pode mobilizar a opinião pública para combates decisivos, também pode suceder, em outras circunstâncias, como nas presidenciais de 2006 e, agora, em Lisboa, que os cidadãos, pela abstenção ou pelo voto, punam e corrijam os desvios e o afunilamento dos partidos políticos. Há mais vida para além das lógicas de aparelho. Se os principais partidos não vão ao encontro da vida, pode muito bem acontecer que a recomposição do sistema se faça pelo voto dos cidadãos. Tanto no sentido positivo como negativo, se tal ocorrer em torno de uma qualquer deriva populista. Há sempre esse risco. Os principais inimigos dos partidos políticos são aqueles que, dentro deles, promovem o seu fechamento e impedem a mudança e a abertura.
Por isso, como em tempo de outros temores escreveu Mário Cesariny: “Entre nós e as palavras, o nosso dever falar.” Agora e sempre contra o medo, pela liberdade.

[ver mais http://www.micportugal.org/index.htm?no=2200673