quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

sábado, 23 de dezembro de 2006

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

RETORICA

“(A) linguagem sofre frequentes abusos no discurso figurativo. Dado que a graça e a fantasia
encontram melhor acolhimento no mundo do que a seca verdade e o conhecimento genuíno, os
discursos figurativos e a alusão dificilmente serão considerados uma imperfeição ou um abuso da
linguagem.
Admito que, nos discursos em que procuramos prazer e diversão em vez de informação e instru-
ção, é difícil que os ornamentos desse género passem por falhas. No entanto, se queremos falar
das coisas como elas são, temos de reconhecer que toda a arte da retórica, exceptuando aquilo que
respeita à ordem e à clareza, que todas as aplicações artificiais e figurativas das palavras criadas
pela eloquência servem apenas para insinuar ideias erradas, para excitar as paixões, e assim para
nos conduzir ao erro.
De facto, essas aplicações são perfeitos logros, e por esta razão, por muito louvável ou aceitável
que a retórica possa parecer em discursos e declamações populares, é óbvio que elas têm de ser
completamente evitadas em todos os discursos que pretendam informar ou instruir. E onde a ver-
dade e o conhecimento interessam, tais aplicações têm de ser consideradas uma grande falta (...).
Quantas e que aplicações são essas, é algo que seria supérfluo indicar aqui. Os livros de retórica
que abundam no mundo instruirão aqueles que se queiram informar. Só não posso deixar de ob-
servar que a humanidade se preocupa muito pouco com a preservação e o avanço da verdade e do
conhecimento, pois as artes da falácia são cultivadas e preferidas.
É evidente que os homens gostam muito de enganar e de ser enganados, já que a retórica, esse
poderoso instrumento do erro e do logro, tem os seus professores reconhecidos, é ensinada pu-
blicamente e teve sempre uma grande reputação. E não duvido de que o facto de eu a criticar tan-
to será considerado uma grande ousadia, ou mesmo uma brutalidade. A eloquência, à semelhança
das mulheres, tem demasiados encantos para que tolere as críticas. E é inútil criticar estas artes
do logro, com as quais os homens sentem prazer em ser enganados. John Locke, Um Ensaio sobre o
Entendimento Humano.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Acção Humana - Apoio às aulas de Filosofia

Ver melhor em http://web.mac.com/jbarbo00

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

ISTO ESTA MAU

Os astros anunciavam há muito tempo o inevitável. O actual governo de Portugal (lamentavelmente PS) escolheu uma estratégia: dividir os grupos profissionais e atacar um de cada vez. Não está a fazer mais do que aquilo que lhe foi exigido por uma União Europeia de tendência neo-liberal, perigosamente próxima do capitalismo mais libertário e total alguma vez praticado no Velho Continente.
Com efeito, sabe-se que, não havendo aumento de riqueza, e havendo sectores ou grupos económicos que enriquecem, haverá inevitavelmente quem esteja a ficar mais pobre. Não vale a pena iludir esta simples e demasiado óbvia constatação puramente matemática. A distribuição da pobreza é, por esta via, muito mais rápida, quase instantânea, do que qualquer tentativa de redistribuição da riqueza.
Aos Governos, como bons administradores do Estado, compete assegurar uma justa redistribuição da riqueza para minorar os efeitos perniciosos que resultam da concentração da riqueza num pequeno número de cidadãos.
Só que é mais fácil propagandear a igual penalização de todos, sabendo-se como se sabe que quem tem pouco, perdendo pouco pode perder o essencial e que quem tem muito, mesmo que perca muito, raramente é afectado na sua qualidade de vida. Esta igualização da miséria é uma falsidade. Esta igualização é, de facto, a manutenção de privilégios para os detentores dos meios de produção de riqueza.
Os vários sectores da sociedade não reagiram, ou reagiram com aplausos, quando o Governo atacou um deles: os farmacêuticos, os juízes, os professores, etc. Os próprios jornalistas rejubilaram quando descobriram que o Governo tinha uma Ministra da Educação que conseguia fazer nada, rigorosamente nada, a favor da melhoria da educação, mas que distraiu a populaça com a sua guerrilha contra os professores, como se daí resultasse qualquer bem para o país. A Comunicação Social esteve sempre do lado dela.
Só que agora chegou a vez dos jornalistas: perdem menos do que os professores, em boa verdade quase nada, só o regime especial de Segurança Social e de Saúde, enfim, aquilo que quase todos já perderam, de uma forma ou de outra.
Talvez agora entendam até que ponto têm sido parvos, promovendo a propaganda do poder: talvez agora percebam que têm andado a dar tiros no seu próprio pé. Vamos ver se os editorialistas e chefes de redacção continuam a rejubilar com o azar dos outros ou se aproveitam esta maravilhosa oportunidade para deixarem de estar ao serviço dos grandes grupos económicos, dos gestores de sucesso, dos economistas que não sabem fazer contas de matemática e que acham que o valor de referência para determinar o valor dos vencimentos ou dos preços é o PIB e não a moeda, o Euro, (que, por acaso, tem o mesmo valor em todos os países da Zona Euro, sendo portanto, a variável mais segura para efectuar qualquer comparação aceitável).

terça-feira, 21 de novembro de 2006

SAPATOS SUJOS de Mia Couto

OS SETE SAPATOS SUJOS


Começo pela confissão de um sentimento conflituoso: é um prazer e uma honra ter recebido este convite e estar aqui convosco. Mas, ao mesmo tempo, não sei lidar com este nome pomposo: “oração de sapiência”. De propósito, escolhi um tema sobre o qual tenho apenas algumas, mal contidas, ignorâncias. Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos nós, de modo generoso e patriótico, queremos participar nessa batalha. Existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho.

Falarei aqui na minha qualidade de escritor tendo escolhido um terreno que é a nossa interioridade, um território em que somos todos amadores. Neste domínio ninguém tem licenciatura, nem pode ter a ousadia de proferir orações de “sapiência”. O único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de partilhar publicamente as nossas fragilidades. É isso que venho fazer, partilhar convosco algumas das minhas dúvidas, das minhas solitárias cogitações.

Começo por um fait-divers. Há agora um anúncio nas nossas estações de rádio em que alguém pergunta à vizinha: diga-me minha senhora, o que é que se passa em sua casa, o seu filho é chefe de turma, as suas filhas casaram muito bem, o seu marido foi nomeado director, diga-me, querida vizinha, qual é o segredo? E a senhora responde: é que lá em casa nós comemos arroz marca…(não digo a marca porque não me pagaram este momento publicitário).

Seria bom que assim que fosse, que a nossa vida mudasse só por consumirmos um produto alimentar. Já estou a ver o nosso Magnifico Reitor a distribuir o mágico arroz e a abrirem-se no ISCTEM as portas para o sucesso e para a felicidade. Mas ser-se feliz é, infelizmente, muito mais trabalhoso.

No dia em que eu fiz 11 anos de idade, a 5 de Julho de 1966, o Presidente Kenneth Kaunda veio aos microfones da Rádio de Lusaka para anunciar que um dos grandes pilares da felicidade do seu povo tinha sido construído. Não falava de nenhuma marca de arroz. Ele agradecia ao povo da Zâmbia pelo seu envolvimento na criação da primeira universidade no país. Uns meses antes, Kaunda tinha lançado um apelo para que cada zambiano contribuísse para construir a Universidade. A resposta foi comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao apelo. Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado, funcionários deram dinheiro. Um país de gente analfabeta juntou-se para criar aquilo que imaginavam ser uma página nova na sua história. A mensagem dos camponeses na inauguração da Universidade dizia: nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os nossos netos deixarão de passar fome.

Quarenta anos depois, os netos dos camponeses zambianos continuam sofrendo de fome. Na realidade, os zambianos vivem hoje pior do que viviam naquela altura. Na década de 60, a Zâmbia beneficiava de um Produto Nacional Bruto comparável aos de Singapura e da Malásia. Hoje, nem de perto nem de longe, se pode comparar o nosso vizinho com aqueles dois países da Ásia.

Algumas nações africanas podem justificar a permanência da miséria porque sofreram guerras. Mas a Zâmbia nunca teve guerra. Alguns países podem argumentar que não possuem recursos. Todavia, a Zâmbia é uma nação com poderosos recursos minerais. De quem é a culpa deste frustrar de expectativas? Quem falhou? Foi a Universidade? Foi a sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? E porque razão Singapura e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?

Falei da Zâmbia como um país africano ao acaso. Infelizmente, não faltariam outros exemplos. O nosso continente está repleto de casos idênticos, de marchas falhadas, esperanças frustradas. Generalizou-se entre nós a descrença na possibilidade de mudarmos os destinos do nosso continente. Vale a pena perguntarmo-nos: o que está acontecer? O que é preciso mudar dentro e fora de África?

Estas perguntas são sérias. Não podemos iludir as respostas, nem continuar a atirar poeira para ocultar responsabilidades. Não podemos aceitar que elas sejam apenas preocupação dos governos.

Felizmente, estamos vivendo em Moçambique uma situação particular, com diferenças bem sensíveis. Temos que reconhecer e ter orgulho que o nosso percurso foi bem distinto. Acabamos recentemente de presenciar uma dessas diferenças. Desde 1957, apenas seis entre 153 chefes de estado africanos renunciaram voluntariamente ao poder. Joaquim Chissano é o sétimo desses presidentes. Parece um detalhe mas é bem indicativo que o processo moçambicano se guiou por outras lógicas bem diversas.

Contudo, as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos só serão definitivas quando se converterem em cultura de cada um de nós. E esse é ainda um caminho de gerações. Entretanto, pesam sobre Moçambique ameaças que são comuns a todo o continente. A fome, a miséria, as doenças, tudo isso nós partilhamos com o resto de África. Os números são aterradores: 90 milhões de africanos morrerão com SIDA nos próximos 20 anos. Para esse trágico número, Moçambique terá contribuído com cerca de 3 milhões de mortos. A maior parte destes condenados são jovens e representam exactamente a alavanca com que poderíamos remover o peso da miséria. Quer dizer, África não está só perdendo o seu próprio presente: está perdendo o chão onde nasceria um outro amanhã.

Ter futuro custa muito dinheiro. Mas é muito mais caro só ter passado. Antes da Independência, para os camponeses zambianos não havia futuro. Hoje o único tempo que para eles existe é o futuro dos outros.

Os desafios são maiores que esperança? Mas nós não podemos senão ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo é um luxo para os ricos.

Meus senhores e minhas senhoras

A pergunta crucial é esta: o que é que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim, há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores de futuro.

Falo de uma nova atitude mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela compõe um conjunto vasto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos. Há muito que venho defendendo que o maior factor de atraso em Moçambique não se localiza na economia mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Um pensamento que não resulte da repetição de lugares comuns, de fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros.

Às vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em nos pensarmos como sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História.

Estamos todos nós estreando um combate interno para domesticar os nossos antigos fantasmas. Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico.

O primeiro sapato: a ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas

Nós já conhecemos este discurso. A culpa já foi da guerra, do colonialismo, do imperialismo, do apartheid, enfim, de tudo e de todos. Menos nossa. É verdade que os outros tiveram a sua dose de culpa no nosso sofrimento. Mas parte da responsabilidade sempre morou dentro de casa.

Estamos sendo vítimas de um longo processo de desresponsabilização. Esta lavagem de mãos tem sido estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na impunidade. Os culpados estão à partida encontrados: são os outros, os da outra etnia, os da outra raça, os da outra geografia.


Há um tempo atrás fui sacudido por um livro intitulado Capitalist Nigger: The Road to Success de um nigeriano chamado Chika A. Onyeani. Reproduzi num jornal nosso um texto desse economista que é um apelo veemente para que os africanos renovem o olhar que mantém sobre si mesmos. Permitam-me que leia aqui um excerto dessa carta.

Caros irmãos: Estou completamente cansado de pessoas que só pensam numa coisa: queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos mentalmente como vítimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos. Queixamo-nos até à náusea sobre o que os outros nos fizeram e continuam a fazer. E pensamos que o mundo nos deve qualquer coisa. Lamento dizer-vos que isto não passa de uma ilusão. Ninguém nos deve nada. Ninguém está disposto a abdicar daquilo que tem, com a justificação que nós também queremos o mesmo. Se quisermos algo temos que o saber conquistar. Não podemos continuar a mendigar, meus irmãos e minhas irmãs.40 anos depois da Independência continuamos a culpar os patrões coloniais por tudo o que acontece na África dos nossos dias. Os nossos dirigentes nem sempre são suficientemente honestos para aceitar a sua responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos os europeus de roubar e pilhar os recursos naturais de África. Mas eu pergunto-vos: digam-me, quem está a convidar os europeus para assim procederem, não somos nós? (fim da citação)
Queremos que outros nos olhem com dignidade e sem paternalismo. Mas ao mesmo tempo continuamos olhando para nós mesmos com benevolência complacente: Somos peritos na criação do discurso desculpabilizante. E dizemos:

Que alguém rouba porque, coitado, é pobre (esquecendo que há milhares de outros pobres que não roubam)
Que o funcionário ou o polícia são corruptos porque, coitados, tem um salário insuficiente (esquecendo que ninguém, neste mundo, tem salário suficiente)
Que o político abusou do poder porque, coitado, na tal África profunda, essas práticas são antropologicamente legítimas
A desresponsabilização é um dos estigmas mais graves que pesa sobre nós, africanos de Norte a Sul. Há os que dizem que se trata de uma herança da escravatura, desse tempo em que não se era dono de si mesmo. O patrão, muitas vezes longínquo e invisível, era responsável pelo nosso destino. Ou pela ausência de destino.

Hoje, nem sequer simbolicamente, matamos o antigo patrão. Uma das formas de tratamento que mais rapidamente emergiu de há uns dez anos para cá foi a palavra “patrão”. Foi como se nunca tivesse realmente morrido, como se espreitasse uma oportunidade histórica para se relançar no nosso quotidiano. Pode-se culpar alguém desse ressurgimento? Não. Mas nós estamos criando uma sociedade que produz desigualdades e que reproduz relações de poder que acreditávamos estarem já enterradas.


Segundo sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho

Ainda hoje despertei com a notícia que refere que um presidente africano vai mandar exorcizar o seu palácio de 300 quartos porque ele escuta ruídos “estranhos” durante a noite. O palácio é tão desproporcionado para a riqueza do país que demorou 20 anos a ser terminado. As insónias do presidente poderão nascer não de maus espíritos mas de uma certa má consciência.

O episódio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda explicamos os fenómenos positivos e negativos. O que explica a desgraça mora junto do que justifica a bem-aventurança. A equipe desportiva ganha, a obra de arte é premiada, a empresa tem lucros, o funcionário foi promovido? Tudo isso se deve a quê? A primeira resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se à boa sorte. E a palavra “boa sorte” quer dizer duas coisas: a protecção dos antepassados mortos e protecção dos padrinhos vivos.

Nunca ou quase nunca se vê o êxito como resultado do esforço, do trabalho como um investimento a longo prazo. As causas do que nos sucede (de bom ou mau) são atribuídas a forças invisíveis que comandam o destino. Para alguns esta visão causal é tida como tão intrinsecamente “africana” que perderíamos “identidade” se dela abdicássemos. Os debates sobre as “autenticas” identidades são sempre escorregadios. Vale a pena debatermos, sim, se não poderemos reforçar uma visão mais produtiva e que aponte para uma atitude mais activa e interventiva sobre o curso da História.

Infelizmente olhamo-nos mais como consumidores do que produtores. A ideia de que África pode produzir arte, ciência e pensamento é estranha mesmo para muitos africanos. Até aqui o continente produziu recursos naturais e força laboral. Produziu futebolistas, dançarinos, escultores. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no domínio daquilo que se entende como natureza”. Mas já poucos aceitarão que os africanos possam ser produtores de ideias, de ética e de modernidade. Não é preciso que os outros desacreditem. Nós próprios nos encarregamos dessa descrença.

O ditado diz. “o cabrito come onde está amarrado”. Todos conhecemos o lamentável uso deste aforismo e como ele fundamenta a acção de gente que tira partido das situações e dos lugares. Já é triste que nos equiparemos a um cabrito. Mas também é sintomático que, nestes provérbios de conveniência nunca nos identificamos com os animais produtores, como é por exemplo a formiga. Imaginemos que o ditado muda e passar a ser assim: “Cabrito produz onde está amarrado.” Eu aposto que, nesse caso, ninguém mais queria ser cabrito.

Terceiro sapato- O preconceito de quem critica é um inimigo

Muitas acreditam que, com o fim do monopartidarismo, terminaria a intolerância para com os que pensavam diferente. Mas a intolerância não é apenas fruto de regimes. É fruto de culturas, é o resultado da História. Herdamos da sociedade rural uma noção de lealdade que é demasiado paroquial. Esse desencorajar do espírito crítico é ainda mais grave quando se trata da juventude. O universo rural é fundado na autoridade da idade. Aquele que é jovem, aquele que não casou nem teve filhos, esse não tem direitos, não tem voz nem visibilidade. A mesma marginalização pesa sobre a mulher.

Toda essa herança não ajuda a que se crie uma cultura de discussão frontal e aberta. Muito do debate de ideias é, assim, substituído pela agressão pessoal. Basta diabolizar quem pensa de modo diverso. Existe uma variedade de demónios à disposição: uma cor política, uma cor de alma, uma cor de pele, uma origem social ou religiosa diversa.

Há neste domínio um componente histórico recente que devemos considerar: Moçambique nasceu da luta de guerrilha. Essa herança deu-nos um sentido épico da história e um profundo orgulho no modo como a independência foi conquistada. Mas a luta armada de libertação nacional também cedeu, por inércia, a ideia de que o povo era uma espécie de exército e podia ser comandado por via de disciplina militar. Nos anos pós-independência, todos éramos militantes, todos tínhamos uma só causa, a nossa alma inteira vergava-se em continência na presença dos chefes. E havia tantos chefes. Essa herança não ajudou a que nascesse uma capacidade de insubordinação positiva.

Faço-vos agora uma confidência. No início da década de 80 fiz parte de um grupo de escritores e músicos a quem foi dada a incumbência de produzir um novo Hino Nacional e um novo Hino para o Partido Frelimo. A forma como recebemos a tarefa era indicadora dessa disciplina: recebemos a missão, fomos requisitados aos nossos serviços, e a mando do Presidente Samora Machel fomos fechados numa residência na Matola, tendo-nos sido dito: só saem daí quando tiverem feito os hinos. Esta relação entre o poder e os artistas só é pensável num dado quadro histórico. O que é certo é que nós aceitámos com dignidade essa incumbência, essa tarefa surgia como uma honra e um dever patriótico. E realmente lá nos comportamos mais ou menos bem. Era um momento de grandes dificuldades …e as tentações eram muitas. Nessa residência na Matola havia comida, empregados, piscina… num momento em que tudo isso faltava na cidade. Nos primeiros dias, confesso nós estávamos fascinados com tanta mordomia e ficávamos preguiçando e só corríamos para o piano quando ouvíamos as sirenes dos chefes que chegavam. Esse sentimento de desobediência adolescente era o nosso modo de exercermos uma pequena vingança contra essa disciplina de regimento.

Na letra de um dos hinos lá estava reflectida essa tendência militarizada, essa aproximação metafórica a que já fiz referência:

Somos soldados do povo
Marchando em frente

Tudo isto tem que ser olhado no seu contexto sem ressentimento. Afinal, foi assim, que nasceu a Pátria Amada, este hino que nos canta como um só povo, unido por um sonho comum.


Quarto sapato: a ideia que mudar as palavras muda a realidade

Uma vez em Nova Iorque um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente incorrectos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc…

Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer “negro” ou “preto”. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé.

Há toda uma geração que está aprendendo uma língua – a língua dos workshops. É uma língua simples uma espécie de crioulo a meio caminho entre o inglês e o português. Na realidade, não é uma língua mas um vocabulário de pacotilha. Basta saber agitar umas tantas palavras da moda para falarmos como os outros isto é, para não dizermos nada. Recomendo-vos fortemente uns tantos termos como, por exemplo:

- desenvolvimento sustentável
- awarenesses ou accountability
- boa governação
- parcerias sejam elas inteligentes ou não
- comunidades locais


Estes ingredientes devem ser usados de preferência num formato “powerpoint”. Outro segredo para fazer boa figura nos workshops é fazer uso de umas tantas siglas. Porque um workshopista de categoria domina esses códigos. Cito aqui uma possível frase de um possível relatório: Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD da UA e ao PARPA do GOM. Para bom entendedor meia sigla basta.

Sou de um tempo em que o que éramos era medido pelo que fazíamos. Hoje o que somos é medido pelo espectáculo que fazemos de nós mesmos, pelo modo como nos colocamos na montra. O CV, o cartão de visitas cheio de requintes e títulos, a bibliografia de publicações que quase ninguém leu, tudo isso parece sugerir uma coisa: a aparência passou a valer mais do que a capacidade para fazermos coisas.

Muitas das instituições que deviam produzir ideias estão hoje produzindo papéis, atafulhando prateleiras de relatórios condenados a serem arquivo morto. Em lugar de soluções encontram-se problemas. Em lugar de acções sugerem-se novos estudos.


Quinto sapato A vergonha de ser pobre e o culto das aparências

A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.

Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.

Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. “Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatível”. O termo é curioso: “compatível”.

Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.

Esta doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.

É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos. A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.

Sexto Sapato- A passividade perante a injustiça

Estarmos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os outros. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de injustiça, áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me em particular à:

- violência doméstica (40 por cento dos crimes resultam de agressão doméstica contra mulheres, esse é um crime invisível)
- violência contra as viúvas
- à forma aviltante como são tratados muitos dos trabalhadores
- aos maus tratos infligidos às crianças

Ainda há dias ficámos escandalizados com o recente anúncio que privilegiava candidatos de raça branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente correcto. Contudo, existem convites à discriminação que são tão ou mais graves e que aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.

Tomemos esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de forma correcta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu não sei se todos estão a par de qual é a tiragem do jornal Notícias. São 13 mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada jornal é lido por 5 pessoas, temos que o número de leitores é menor que a população de um bairro de Maputo. É dentro deste universo que circulam convites e os acessos a oportunidades. Falei na tiragem mas deixei de lado o problema da circulação. Por que geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto de Moçambique é deixado de fora ?

É verdade que esta discriminação não é comparável à do anúncio racista porque não é resultado de acção explícita e consciente. Mas os efeitos de discriminação e exclusão destas práticas sociais devem ser pensados e não podem cair no saco da normalidade. Esse “bairro” das 60 000 pessoas é hoje uma nação dentro da nação, uma nação que chega primeiro, que troca entre si favores, que vive em português e dorme na almofada na escrita.

Um outro exemplo. Estamos administrando anti-retrovirais a cerca de 30 mil doentes com SIDA. Esse número poderá, nos próximos anos, chegar aos 50 mil. Isso significa que cerca de um milhão quatrocentos e cinquenta mil doentes ficam excluídos de tratamento. Trata-se de uma decisão com implicações éticas terríveis. Como e quem decide quem fica de fora? É aceitável, pergunto, que a vida de um milhão e meio de cidadãos esteja nas mãos de um pequeno grupo técnico ?


Sétimo sapato - A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros

Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa mágica chamada televisão. Criam uma relação de virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar vivendo fora, dançando nos braços de Janet Jackson. O que os vídeos e toda a sub-indústria televisiva nos vem dizer não é apenas “comprem”. Há todo um outro convite que é este: “sejam como nós”. Este apelo à imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha em sermos quem somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.

O resultado é que a produção cultural nossa se está convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa música poderá ser uma espécie de hip-hop tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o Mac Donald’s.

Falamos da erosão dos solos, da deflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante. A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua portuguesa) e a ideia que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos.

O nosso corpo social tem uma história similar à de um individuo. Somos marcados por rituais de transição: o nascimento, o casamento, o fim da adolescência, o fim da vida.

Eu olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser diferentes ? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial. Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimónias de final do curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais enraízada na terra e na tradição moçambicanas.


Meus Senhores e minhas senhoras

Falei da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo inteiro na modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos também construtores.

A minha mensagem é simples: mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas de caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o mapa dos outros não ajuda. Necessitamos de inventar os nossos próprios pontos cardeais. Interessa-nos um passado que não esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha desenhado como um receita financeira.

A Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania activa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia construtiva. Não podemos treinar jovens profissionais de sucesso num oceano de miséria. A Universidade não pode aceitar ser reprodutor da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com aquilo que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse pensamento não se encomenda, não nasce sózinho. Nasce do debate, da pesquisa inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor está surgindo em África e no mundo.

A questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa condição ambígua, dançando entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação) e uma condição maligna, um ninho de riscos e preocupações (a SIDA, a droga, o desemprego).

Senhores e senhoras

Não foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que o náufrago vê num barco salva-vidas. Nós também depositamos os nossos sonhos nessa conta.

Numa sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um já idoso nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que já muitos sabíamos. Ele confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos 60, fugiam para a FRELIMO não eram apenas motivados por dedicação a uma causa independentista. Eles arriscaram-se e saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O fascínio pela educação como um passaporte para uma vida melhor estava presente num universo em que quase ninguém podia estudar. Essa restrição era comum a toda a África. Até 1940 o número de africanos que frequentavam escolas secundárias não chegava a 11 mil. Hoje, a situação melhorou e esse número foi multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente investiu na criação de novas capacidades. E esse investimento produziu, sem dúvida, resultados importantes.

Aos poucos se torna claro, porém, que mais quadros técnicos não resolvem, só por si, a miséria de uma nação. Se um país não possuir estratégias viradas para a produção de soluções profundas então todo esse investimento não produzirá a desejada diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem viradas para o enriquecimento rápido de uma pequena elite então de pouco valerá termos mais quadros técnicos.

A escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois, nos ensina a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida resta-nos ser verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós também não sabemos e que, nós, professores e pais, também estamos à procura de respostas.

Com o novo governo ressurgiu o combate pela auto-estima. Isso é correcto e é oportuno. Temos que gostar de nós mesmos, temos que acreditar nas nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode ser fundado numa vaidade vazia, numa espécie de narcisismo fútil e sem fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na visitação do passado. É verdade que é preciso sentir que temos raízes e que essas raízes nos honram. Mas a auto-estima não pode ser construída apenas de materiais do passado.

Na realidade, só existe um modo de nos valorizar: é pelo trabalho, pela obra que formos capazes de fazer. É preciso que saibamos aceitar esta condição sem complexos e sem vergonha: somos pobres. Ou melhor, fomos empobrecidos pela História. Mas nós fizemos parte dessa História, fomos também empobrecidos por nós próprios. A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora também dentro de nós.

Mas a força de superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós. Saberemos como já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os setes mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a verdade é uma: antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros.

ARGUMENTAÇAO, RETORICA E FILOSOFIA

PARA OS MEUS ALUNOS

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

O "MOBBER" OU O PODER DA INVEJA

O "mobber", ou assediador, é normalmente um colega, um colega invejoso, narcísico e perverso que intimida os companheiros, criando à sua volta um clima de vazio e desprezo que vai gerando um desgaste psicológico que, por sua vez, os conduz à auto-exclusão que é o objectivo pretendido pelo "mobber".
Qualquer trabalhador que suscite inveja pode ser vítima destes "mobbers", normalmente um trabalhador cuja qualidade ou popularidade são consideradas ameaças para o assediador. O "mobbing" é uma demolição moral, que leva a mais corajosa das vítimas à autodestruição. Não há auto-estima que resista.
É preciso fazer frente ao assediador rapidamente e com inteligência. Para isso, a vítima precisa do apoio da família e dos amigos, precisa que lhe digam que não está a imaginar, que aquele colega é mesmo mau. Porque se o enfrenta sem essa segurança interior pode acabar a chorar ou aos gritos, perdendo o controlo e dando mais uma vitória ao "mobber". Por isso é necessário que se sinta em forma e que desenhe uma estratégia nomeadamente indo falar com alguém da organização que não esteja sob o domínio do assediador. O assediador normalmente tem poder...

BURN-OUT OU O TRABALHADOR QUEIMADO

O síndroma do "trabalhador queimado" é um estado que afecta as pessoas que apostaram muito na sua profissão, como médicos, enfermeiros, professores, polícias e profissões em que o objectivo é lidar com pessoas. estes trabalhadores acreditaram fervorosamente que o seu trabalho, a sua dedicação ia fazer a diferença. Ora, um psiquiatra de Nova York constatou que eram exactamente estas pessoas que chegavam ao trabalho com este espírito de mudança, de missão, aquelas que passado um tempo deprimiam e assumiam uma atitude de vencidas.

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

ARTIGO DE MANUEL ALEGRE

Cidadania e formas de participação cívica ( I )
Revista Figueira 21,Outubro 2006, ano 1, nº 1
22.10.2006

1.
Com a queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética julgou-se que tinha chegado a hora do socialismo democrático. Mas o que chegou foi a globalização, o neoliberalismo, o triunfo daquilo que alguém definiu como o "capitalismo total".

Pierre Rosanvallon foi um dos primeiros autores a chamar a atenção dos socialistas para a mutação do próprio sistema produtivo. O mundo de hoje não é o de há 30 anos. Os partidos políticos da esquerda, os sindicatos, nasceram na revolução industrial, no século XIX, com as grandes concentrações proletárias. Era fácil assegurar naquela altura a representação, fazer o discurso político da unificação. Hoje estamos na era da deslocalização, da dispersão, da fragmentação. E é por isso que surgem outras formas de fazer política e que os eleitorados se afastam das orientações dos partidos tradicionais. Veja-se o caso da França, que costuma ser pioneira, que recusou por referendo a Constituição europeia e voltou a recusar na rua o Contrato do Primeiro Emprego.

Os media não podem substituir-se à representação política, mas eles próprios estão em mutação face às novas tecnologias de comunicação e aos novos poderes mediáticos que dominam o planeta. Tanto na política como nos media há que repensar as formas de agir e encontrar novas respostas. É particularmente importante, hoje, o combate à corrupção, que se instala sempre que há opacidade nas decisões, promiscuidade nos agentes, possibilidade de obtenção fácil de ganhos ilícitos e inépcia do poder judicial. A impunidade gera o descrédito e mina a confiança das pessoas na democracia.

2.
Outra questão que importa abordar é a do modelo social europeu. Este modelo tem estado a ser posto em causa dentro da própria união Europeia. Há uma Constituição não escrita, uma Constituição económica neo-liberal, constituída pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento e pelas GOPE (Grandes Orientações de Política Económica). Essa Constituição ideológica, que impõe a todos os governos europeus um modelo neoliberal contra o próprio modelo social europeu. Embora o Tratado de Roma admita a coexistência de sector público e do sector privado, o modelo hoje resultante da conjugação do PEC e das GOPE instaurou a lógica do privado, mesmo no que respeita ao funcionamento dos serviços públicos. É por isso que há alternância sem haver alternativa, o que está na origem daquilo a que Pascal Bruckner chamou a "melancolia democrática".

Os governos estão prisioneiros das GOPE. Mesmo que um governo de esquerda suceda a um conservador, dificilmente se liberta da correia de forças das GOPE. É por isso também que se verifica um divórcio crescente entre a política e os cidadãos que cada vez mais deixam de acreditar na eficácia do seu voto. E é por isso ainda que a democracia participativa vai surgindo como resposta a estes bloqueios da democracia representativa.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

A GRANDE MENTIRA

A campanha contra os professores, liderada pela Ministra da Educação, está repleta de mentiras. Veja-se no documento da OCDE a página 56 e a página 32. Relativamente aos salários dos profs., por exemplo, fica-se a saber que nos primeiros 15 anos progridem mais rapidamente do que a maioria dos seus colegas de outros países, mas, em média são dos mais mal pagos (21º lugar em 31 países), contrariando o que foi noticiado amplamente pelos órgãos de comunicação social.
O investimento na Educação em Portugal é dos mais fracos de todos os países (19º em 31) - calculado em função do PIB que já é baixo quanto baste.
Enfim, os Estados Unidos da América, que praticam uma política neo-liberal, são dos que apresentam piores resultados na educação. É melhor não ir por aí. Há melhores exemplos.
Os alunos portugueses são dos que mais tempo passam na escola. Os professores portugueses são dos que mais trabalham na escola, etc., etc.
Há muita coisa a mudar na educação, muita mesmo, mas as prioridades do Governo são patéticas.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

terça-feira, 17 de outubro de 2006

O Verdadeiro Socrates no seu Melhor

Querefonte, um amigo de Sócrates, foi um dia ao templo de Delfos e perguntou ao oráculo se haveria algum homem mais sábio que Sócrates. A resposta foi negativa. Sócrates ficou muito surpreendido por ser considerado o mais sábio, pois ele tinha consciência de que sabia muito pouco.
«Que poderá o deus querer dizer, ao afirmar que sou eu o mais sábio? (...) [Para tentar descobrir] lancei-me a esta obra.
Fui junto de um daqueles que aparentavam ser sábios, pensando que aí poderia contradizer a resposta do oráculo, objectando-lhe: “Eis um homem mais sábio que eu. Porque disseste que era eu o mais sábio?” Mas, ao examinar o homem com quem se passou isto – não preciso de o nomear, era um dos nossos estadistas – e, conversando com ele [acerca da Justiça, do Bem, da Coragem, do Belo, etc.] homens de Atenas, achei que parecia a muitos outros ser sabedor e, sobretudo, a si próprio, mas não o era. De seguida, tentei mostrar-lhe como ele julgava ser sábio, mas não era.
Com isto, tornei-me detestado por muitos dos presentes e, ao afastar-me dali, pensei que era por ser mais sábio que aquele homem. Pois é possível que nenhum de nós saiba nada do que é bom e belo, mas, enquanto ele julga saber algo, eu, como nada sei, nada julgo saber. E nisto parece-me que sou um pouco mais sábio que ele, por não julgar saber as coisas que não sei. Daí, fui a outro daqueles que pareciam sábios e fiquei com a mesma opinião. E assim passei a ser detestado por esse e por muitos outros. (...)
Após os homens de estado, dirigi-me aos poetas, autores de tragédias, de ditirambos e outros, esperando ser apanhado na minha maior ignorância. (...) Para acabar, dirigi-me aos artesãos. (...) [Todas essas pessoas, tinham conhecimentos relativos à vida prática e às suas profissões, mas] por praticarem bem a sua arte, cada um deles julgava ser o mais sábio noutros importantes assuntos sem realmente ser. (...) Ora, não será a mais censurável das ignorâncias julgar saber o que não se sabe?
[Por isso, talvez com este oráculo o deus tenha querido dizer que] a sabedoria humana é coisa de nenhum ou pouco valor: “Entre vós, homens, o mais sábio é aquele que, como Sócrates, reconhece ser a sua sabedoria de nenhum valor” [isto é, aquele que reconhece a sua ignorância, aquele que ao menos sabe que não sabe].
(...) Se me matardes, não encontrareis com facilidade outro como eu que – para falar gracejando – se agarre à cidade como um moscardo a um cavalo forte e de bom sangue que, por causa do tamanho, precisa de ser despertado por um aguilhão. Parece-me que é como se o deus me tivesse preso à cidade, para que eu acorde, convença e exorte cada um de vós durante todo o dia [a dar mais importância à alma que ao corpo, a procurar mais a virtude que a riqueza], em qualquer lugar e sem afrouxar o cerco. Por isso, se me matardes passareis o resto da vida a dormir, a menos que o deus envie algum outro para vos inquietar. (...) E se eu disser que uma vida sem pensar não é digna de ser vivida por um homem, ainda menos vos terei persuadido. É como digo, homens, não sois fáceis de convencer.»

Platão, Apologia de Sócrates, tradução de Trindade Santos, Impressa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

GÓRGIAS

Górgias: O manifesto platónico pela filosofia

1. O lugar do Górgias

Com o Górgias deparamo-nos com uma dos maiores obras de Platão e também uma das mais longas. (De todos os diálogos, só a República e as Leis são maiores). Em nenhum outro as componentes filosófica e dramática da arte de Platão são tão poderosamente combinadas como no confronto aqui encenado entre Sócrates e os seus sucessivos interlocutores. Platão retoma o antigo tema moral grego, que consiste na escolha entre dois tipos de vida e transforma-o num debate filosófico sobre os princípios da moralidade e a natureza da vida boa. E representa estes objectivos com uma intensidade inesquecível na forma como dá vida a Sócrates e aos seus adversários.
O Górgias é também um texto fundador de duas áreas da filosofia; é o seu maior livro de teoria ética e de teoria política. Alguns destes temas são discutidos no Críton[1], no qual Sócrates apresenta as suas razões para não fugir da prisão. Então pode-se dizer que Platão fundou a teoria moral duas vezes: uma primeira vez no Críton e uma segunda vez no Górgias. Mas, evidentemente, Platão foi antecipado neste campo por Sócrates, de uma forma que não podemos determinar. E o poder do Górgias deriva grandemente do facto de Sócrates neste diálogo representar tanto o indivíduo como a reflexão filosófica de Platão sobre o significado da vida e da morte de Sócrates.
O Críton exemplifica a filosofia moral demonstrando como se pode justificar uma importante decisão prática. O Sócrates do Críton (.) sabe que o seu princípio ― nunca se deve agir injustamente, nunca se deve fazer mal aos outros, nem mesmo como paga do mal que nos é feito ― não é um princípio aceite pela maioria das pessoas. [Segundo este princípio, fugir da prisão] seria um acto de injustiça. Assim, Sócrates prefere aceitar a morte. "(.) viver não é o que mais deve ser importante, mas viver bem, e nisto consiste a vida nobre e justa" (Críton, 48 b). A injustiça é uma doença da alma e uma vida com a alma doente e corrompida não é uma vida que valha a pena viver (idem, 47 d-e). Se Sócrates é muito correctamente visto como o santo patrono da filosofia moral, isso não se deve somente ao facto de ele insistir na necessidade de uma reflexão crítica sobre o que se deve fazer e desenvolver essa reflexão numa argumentação cuidadosa. No Críton demonstra também uma confiança incondicional na razão que o guia, enfrentando calmamente a morte, em harmonia com os princípios pelos quais viveu.
Na conversa com Críton, estas teses podem ser tomadas como garantidas, uma vez que são aceites por ambos. (.) Assim, no Críton, podemos ver o talento literário de Platão ao serviço de um dos seus objectivos filosóficos centrais: justificar a confiança socrática numa vida de integridade moral. No Górgias Platão tem o mesmo objectivo numa escala maior e num nível filosófico mais profundo. Aqui Sócrates é confrontado com interlocutores prontos a desafiar as suas convicções mais fundamentais.
O primeiro interlocutor, Górgias, é o famoso escritor, orador e professor, que mostra o poder que a oratória pode alcançar, mas prefere declinar a responsabilidade moral por qualquer uso que dela se possa fazer. O seu discípulo, Polo, é um admirador daqueles que ganham o poder político por meios imorais ou mesmo criminosos. Finalmente, Cálicles é um produto do novo Iluminismo, um jovem político ambicioso que pretende atacar a noção de justiça e moralidade tal como Sócrates a compreende. Na boca de Cálicles, Platão coloca "a mais eloquente afirmação da causa do imoralismo na literatura europeia." Confrontado com estes opositores, Sócrates tem de defender não apenas os seus princípios morais mas todo o seu modo de vida.
No Críton, Sócrates exprime sérias dúvidas sobre a possibilidade de um debate racional com interlocutores que não partilhem a convicção de que se deve agir justamente. (.) No Górgias, pelo contrário, Platão aceitou o desafio de defender os princípios básicos da moralidade socrática contra os ataques daqueles que defendem a mais drástica alternativa: a procura desenfreada do poder e do sucesso. O confronto que o Críton prevê é amplamente confirmado pelo modo rude, e pouco habitual, com que Sócrates responde a Polo (.) (461 e, 463 e, 466 a, b, c) e na hostilidade de algumas partes do diálogo entre Sócrates e Cálicles. Se as paixões são tão intensas, é porque a aposta é muito alta. Trata-se não só de ganhar o argumento, mas de decidir como se deve viver a própria vida e, se necessário, morrer.
O Górgias relaciona-se directamente com a preocupação moral que conduz da Apologia e do Críton à República, uma preocupação com a defesa da moralidade socrática face ao perigo radical do cinismo moral e da política real (Realpolitik)dos oradores. (.) Somente o Górgias e a República expõem o paradoxo na sua versão explicitamente moral: que ninguém age voluntariamente de modo injusto. (.).
O Górgias parece reflectir o período inicial do corte dramático de Platão com a política ateniense, marcado pela sua partida para a Sicília. (.)

2. Techné no Górgias

O Hípias Maior deixa-nos com um dilema por resolver. Ou ninguém faz o mal voluntariamente, ou, se alguém o faz, essa pessoa é melhor do que aquela que faz o mal involuntariamente. Uma vez que a segunda alternativa é moralmente falsa, a primeira deve ser verdadeira. Mas como pode ser verdade que, apesar das aparências em contrário, que ninguém faça o mal voluntariamente? Defendo que Sócrates deixa Platão com este paradoxo e que os diálogos representam a resposta dada por Platão.
Uma das linhas de reflexão provocada pelo paradoxo socrático consiste na concepção platónica de uma techné moral, uma arte ou ciência que saiba o que é o bem e o mal, o certo e o errado (.) que, no Górgias se baseia na analogia com as artes e ofícios [e que se opõe à retórica de Górgias].
Em todas as obras Platão assume o mesmo princípio que encontramos em Íon: uma arte ou uma ciência define-se pela referência ao seu objecto. Para cada objecto existe uma e só uma techné (Íon, 537d). Na primeira secção do nosso diálogo, Sócrates leva Górgias a especificar o objecto da retórica como "acerca do justo e do injusto" (454b); e mais tarde alarga-se a "o que é justo e injusto, feio e belo, mau e bom" (459d), em suma, todo o domínio moral. Além disso, Górgias concorda que o orador não ensina sobre o seu objecto, mas apenas persuade (455a). Mais tarde hesita acerca da questão de saber se o orador possui ou não esse mesmo conhecimento. É a sua prontidão em afirmar que o orador tem tal conhecimento que o conduz à aporia (460a). Polo, quando entra no diálogo em defesa de Górgias, começa por renunciar a esta afirmação (461b). Assim Sócrates pode basear a sua própria noção de retórica sobre a assumpção de que a retórica não é realmente uma techné, uma vez que não possui conhecimento nem ensina acerca do seu objecto.
Correspondendo, contudo, ao objecto em questão, nomeadamente, o domínio da moralidade, deve haver uma techné genuína com esta competência. (.) Esta é o que Sócrates chama politiké, a verdadeira arte da política, da qual a justiça constitui a parte principal. Segundo Sócrates, a retórica vulgar de Górgias é simplesmente a imagem e imitação desta arte [dentro da política] que é a justiça. (.)
Assim, Sócrates declara, no fim do diálogo, "Creio ser dos poucos atenienses, para não dizer o único, que cultivam a verdadeira arte política e a põem em prática nos dias de hoje" (521d). Escusado será dizer que o Sócrates que assim aspira a uma tal techné não é mais o Sócrates ignorante da Apologia.
O que está implicado nesta concepção tinha sido dito de forma mais aprofundada na discussão precedente. A arte de que se fala fará à alma o mesmo que a ginástica e a medicina farão ao corpo. Tal arte investigou a natureza daquilo que trata e a explicação causal dos seus procedimentos, de modo a ser capaz de a ambos explicar racionalmente, tal como o médico que, tendo estudado a natureza do corpo e as causas da doença, consegue dar uma explicação para o tratamento (465a e 501a). E tal como os procedimentos do médico estão teleologicamente subordinados ao fim que é a saúde do corpo, também a teoria e a prática da arte política é estruturada racionalmente pela sua relação ao telos, a saúde moral dos cidadãos "fazendo nascer a justiça e a temperança nas suas almas", tornado o seu pensamento tão nobre quanto possível (504e e 514a). Assim, tendo como objectivo aquilo que é bom para a alma, ou para a pessoa como um todo, a arte moral deve escolher que prazeres são bons e benéficos e evitar aqueles que são maus e prejudiciais (500a). Isto significa que deve satisfazer os desejos que tornam a pessoa melhor, mas não aqueles que a tornam pior (503c, 505b). De acordo com isto, deve mudar os desejos das pessoas, e não submeter-se a eles, usando a persuasão e até a força, se tal for necessário para melhorar os cidadãos (517b, cf. 512a), isto é, fazer nascer a justiça e a temperança e afastar a injustiça e intemperança (504e). Esta é a arte do verdadeiro homem de estado ou, como Platão diz algumas vezes, do orador bom e especializado (. 504d, cf. 503b). Mas, para fazer a selecção entre os bons e os maus prazeres, o especialista em questão deve saber o que é bom e o que é mau (500b).
Esta concepção de arte política em Platão presente no Górgias apresenta muitas características daquilo que constitui o pensamento político e moral de Platão ao longo da sua obra:
1. O paralelismo entre o homem de estado e o médico.
2. A concepção de virtude moral como condição da saúde da alma.
3. A noção de que uma techné procura o bem daquele que a recebe e não a vantagem daquele que pratica a arte.
4. O objectivo do governo é a virtude dos que são governados: tornar os cidadãos tão bons quanto possível.
5. Isto significa controlar os desejos dos indivíduos, satisfazer uns e restringir os outros, tornando a alma temperante.
6. O artista político é capaz de ter este objectivo devido ao seu conhecimento do que é bom e do que é mau.
Em todos estes aspectos, o artista político prefigura o rei-filósofo da República. O technicós do Górgias é, obviamente, também o filósofo, uma vez que Sócrates é o único que pratica esta arte.
Podemos voltar agora ao paradoxo do Hípias Menor. Se a justiça é uma arte, porque é que aquele que a possui nunca abusa dela, não faz o mal voluntariamente? O Górgias contém uma dupla resposta. Em primeiro lugar, uma techné genuína é definida não somente pelo seu objecto mas também pelo seu objectivo: seja o que for que se faça, faz-se procurando algo bom: neste caso, o bem daqueles que a recebem. Em segundo lugar, uma vez que o artista em questão possui (por definição) o saber que é relevante, ele ou ela não pode errar. (.) Agora, a fim de evitar cometer o erro, duas coisas são necessárias: primeiro, o desejo, segundo, a técnica ou a habilidade. Por hipótese, se alguém possui a arte, terá a técnica ou a habilidade. O desejo, pelo contrário, pode ser tomado como garantido: "ninguém quer fazer o mal, mas todo aquele que faz o mal, fá-lo involuntariamente" (509e). (.)
O paradoxo socrático é assim derivado de duas teses contra Polo: todas as acções são feitas em vista do bem, que é o que realmente se quer (467c-468b) e, uma vez que fazer o mal (agir injustamente) é o maior dos males (469b), não é algo que realmente se queira. Deste modo, todos os males têm de ser feitos involuntariamente, apenas por ignorância. Ninguém que tenha a arte da justiça e, consequentemente, saiba o que é justo, irá alguma vez agir injustamente: ninguém que saiba e tenha o desejo do bem faz o mal. No condicional "Se alguém faz o mal voluntariamente, então.", o antecedente nunca é preenchido. Assim se evita com sucesso a conclusão inaceitável do Hípias Menor.
Podemos também ver, a partir do paradoxo aqui formulado, como se passa facilmente à identificação da virtude com o conhecimento. Qual é o estado de espírito ou carácter que distingue um indivíduo virtuoso de um indivíduo imoral? Não pode residir na natureza do seu desejo profundo, se é verdade que todos desejam a mesma coisa, nomeadamente o bem. Os indivíduos desejam praticar acções neutras ou instrumentais apenas se essas acções contribuem para alcançar fins bons (468a). Deste modo, aqueles que cometem actos imorais ou criminosos fazem-no apenas com a crença errada de que estes actos são bons ou conduzirão ao bem. Se tivessem o conhecimento requerido daquilo que é bom e mau, evitariam essas acções e, em vez delas, agiriam virtuosamente. Assim, a posse de um tal conhecimento seria uma condição suficiente para se ser virtuoso e agir virtuosamente.
A identificação da virtude com uma forma de conhecimento não é uma tese explícita do Górgias (.). Quando a unidade das virtudes é derivada da temperança, em 507a-c, a sabedoria está manifestamente ausente da lista de virtudes. (.)
Porque é que o Górgias não caracteriza a virtude como conhecimento? (.) Há também uma explicação interna à argumentação do Górgias. Na concepção da techné moral e política que é aqui articulada, a virtude aparece como um telos, a boa condição das almas daqueles em que esta arte é praticada. O conhecimento moral ou techné é definido em parte pela referência ao seu produto, a excelência psíquica daqueles que são governados e/ou educados. Se a virtude, o produto desta arte ou techné, fosse identificado com a própria arte, esta identificação iria tornar obscura a sua estrutura teleológica. Mas no vocabulário de Platão os termos para arte, conhecimento e sabedoria podem ser usados uns em vez dos outros. Estes termos são aqui aplicados à competência técnica do artista político e não à virtude que ele deve gerar nas almas dos indivíduos. Deste modo, apesar de a virtude não ser, no Górgias, identificada com o conhecimento, encontram-se já a maioria das asserções requeridas para que esta identificação esteja já presente.

3. Refutação no Górgias

(.) [A] refutação socrática consiste mais em testar os indivíduos do que as proposições: Sócrates examina os interlocutores para ver se a sua vida está de acordo com os princípios que professam. As três sucessivas refutações de Górgias, Polo e Cálicles representam o mais brilhante retrato literário de Platão da refutação em acto, onde o carácter do interlocutor é parte essencial da sua derrota dialéctica.
Todas estas refutações são relacionadas primeiramente com problemas da ética normativa: o que é que torna uma vida boa, e se é sempre do nosso interesse agir de forma injusta. O primeiro diálogo com Górgias trata este tema obliquamente, mostrando que a procura do poder político por técnicas de persuasão de massas pode estar divorciada da questão da justiça e da responsabilidade moral. Com Polo, o problema é enfrentado com firmeza: é melhor cometer ou sofrer a injustiça? Pode o criminoso bem sucedido levar uma vida boa? Mas é com Cálicles que o desafio à moralidade encontra a expressão mais radical. Para Cálicles, as restrições morais à procura do poder e do prazer são meras convenções que os fracos impõem àqueles que são os seus superiores naturais. Cálicles e Sócrates apresentam, assim, pontos de vista opostos sobre o que constitui a vida boa.
Contra Górgias, Sócrates mostra que alguém que treine os jovens para a liderança e o poder político não pode declinar a responsabilidade moral pelo uso que é feito deste treino. Ao conduzir habilidosamente Górgias a afirmar a omnipotência da técnica da persuasão, depois de este ter admitido que a retórica apenas pode produzir a crença sem conhecimento, Sócrates impede Górgias de declinar a responsabilidade moral. "De momento, vejamos primeiro se, relativamente ao justo e ao injusto, ao feio e ao belo, ao bom e ao mau, a situação do orador é a mesma que em relação à saúde e aos objectos das outras artes, ou seja, se, sem conhecer as coisas, sem saber., lhe basta apenas imaginar um processo de persuasão a este respeito para, apesar de ignorante, parecer mais entendido que os entendidos aos olhos dos ignorantes. e que pareçam homens de bem sem o serem?" (459d- e), ao que Górgias é obrigado a responder: "Penso, Sócrates, que quem, porventura, não conheça já essas coisas aprendê-las-á também comigo." (460a).
A resposta de Górgias não é aparentemente sincera. Ménon diz-nos que Górgias nunca disse que ensinava a virtude, e ria-se daqueles que diziam que o faziam (Ménon, 95c). É, no entanto, forçado a dizê-lo porque (e Polo assinala isso) se envergonhou de admitir que o orador não precisa de saber "o que é justo e bom" e não ensina estas coisa ao aluno que é ignorante nestas matérias (461b). A sua vergonha diz respeito à sua preocupação pela opinião pública e à perigosa situação de ser um estrangeiro que educa os futuros políticos de Atenas. Não há contradição conceptual no modo de Górgias ver a retórica como um livre instrumento do poder político. Mas há uma incompatibilidade pessoal e social entre a expressão pública do seu ponto de vista e a sua posição como educador de uma elite.
A refutação de Polo por Sócrates é mais complexa. Polo afirma que cometer a injustiça é melhor do que sofrê-la, ainda que cometê-la seja mais feio[2]. Sócrates defende a tese oposta numa forma deliberadamente paradoxal: "Estou convencido de que eu, tu, as outras pessoas, numa palavra, toda a gente considera pior praticar do que sofrer a injustiça e pior não ser castigado [por injustiça] do que suportar o castigo"(474b). O argumento do Sócrates consiste em mostrar que se cometer a injustiça é mais feio, então também tem que ser pior (mais vergonhoso). A validade do argumento de Sócrates foi muito discutida. O que aqui nos interessa não é a validade do argumento, mas o ênfase colocado no papel da vergonha. (.) De acordo com Cálicles, o erro de Polo foi o facto de ter admitido que cometer a injustiça é mais vergonhoso; foi refutado porque "se envergonhou de dizer o que pensava", nomeadamente que a injustiça é realmente bela (admirável) (482e).
Polo é refutado porque não consegue conciliar a sua admiração pelo poder e riqueza, independentemente do modo como são obtidos, com o reconhecimento de que os actos injustos ou criminosos são geralmente olhados como desonrados ou "vergonhosos". Não dá conta desta censura moral nos termos de prazer e utilidade, porque não tem noção do funcionamento moral da sociedade. Cálicles, pelo contrário, irá empregar os recursos teóricos do contraste familiar entre natureza (phusis) e convenção (nomos) para mostrar que a desonra que é associada aos actos injustos é baseada somente no nomos, as convenções morais estabelecidas pelos fracos no seu próprio interesse. Para os fortes, pelo contrário, o padrão de honra e desonra é estabelecido, não por convenção, mas por natureza, o que justifica o domínio dos fracos pelos fortes.
Sócrates concorda que os seus dois primeiros interlocutores foram derrotados devido ao seu excesso de vergonha: foi a vergonha que levou Górgias e Polo "a contradizerem-se perante tanta gente, em questões de tão grande importância" (487b). Cálicles aparece como o interlocutor ideal, porque não tem vergonha de falar francamente: ele dirá abertamente "o que os outros pensam, mas não quiseram dizer" (492d).
No entanto, a derrota de Cálicles será acelerada pelo seu sentido de vergonha. A refutação incide sobre a sua tese de que a vida feliz, a vida daqueles que são fortes e independentes de todas as inibições convencionais, consistirá em maximizar o prazer e em satisfazer todo e qualquer desejo. Sócrates começa por lhe perguntar se coçar-se quando se tem comichão é uma satisfação de um desejo, tal como beber quando se tem sede; e até que ponto uma vida vivida a coçar-se é uma vida feliz (494c). Quando Cálicles protesta contra a vulgaridade da questão, Sócrates aconselha-o a não ter vergonha, que foi a falha de Polo e Górgias. Assim, Cálicles responde francamente que alguém que passa a vida a coçar-se tem uma vida feliz e agradável ― dependendo das partes do corpo que coça (494d). A próxima jogada de Sócrates é decisiva: pergunta a Cálicles o que pensa da vida dos kinaidos[3], o que, falando grosseiramente, designa aquele que gosta de ser o parceiro passivo numa relação homossexual. A lei ática aparentemente trata este acto como prostituição masculina, sendo suficiente para privar a parte culpada dos direitos de cidadania. Cálicles, o político ambicioso que admira as virtudes viris, não pode seriamente descrever a vida do kinaidos como afortunada ou feliz, como Sócrates o desafia a fazer. Só pode acusar Sócrates de não ter vergonha de levar o argumento até este ponto!
Perante este desafio, Cálicles, em busca da consistência, mantém a identidade entre prazer e bem (495a). Mas, de facto, ele foi derrotado por este primeiro argumento contra o hedonismo, e derrotado pelas consequências vergonhosas da sua tese (. 495b). Contudo, uma vez que Cálicles não admite a derrota, Sócrates elabora dois argumentos formais contra a equivalência do bem e do prazer. O segundo destes argumentos, aquele que finalmente leva Cálicles a abandonar a sua tese, mostra que, se o prazer e o bem não forem distintos, não haverá nenhuma base para a superioridade moral dos homens corajosos sobre os cobardes, como Cálicles defende. Neste, tal como no primeiro argumento dos prazeres vergonhosos, não é certamente o hedonismo em abstracto que está a ser atacado, mas o hedonismo enquanto tese defendida por Cálicles. É porque Cálicles é um aristocrata orgulhoso e um político ambicioso que não pode ser um hedonista consistente. A tese, como tal, não é necessariamente inconsistente. É o vínculo entre o homem e a tese que se mostra ser incoerente. É este o motivo pelo qual Sócrates pode afirmar que Cálicles rejeitará a sua tese quando "se examinar correctamente" (495e). Desde o princípio que Sócrates o avisara que a sua posição o levaria à dissonância: (.) (482b-c)[4].

4. A função positiva da refutação

Os resultados das três refutações são essencialmente negativos: revelam a incoerência entre a vida e a doutrina do interlocutor, uma incoerência que se reflecte na inconsistência entre os diferentes pontos de vista sustentados pelo mesmo homem. Mas como podemos relacionar estes resultados negativos com a doutrina moral positiva apresentada nos paradoxos contra Polo e defendida na secção final do diálogo depois da derrota de Cálicles? Não há dúvida que Sócrates apresenta a sua tese moral (que cometer a injustiça e escapar sem castigo é o pior dos males) como estabelecida pelos argumentos refutativos usados para refutar Polo e Cálicles. ((.) 508e - 509a)[5].
As conclusões estabelecidas contra Polo são apresentadas igualmente como constringentes contra Cálicles e, na verdade, contra qualquer pessoa, de tal modo que ninguém as pode negar sem cair em contradição. Mas como podem argumentações tão personalizadas e, no caso central de Polo, argumentos tão complexos e duvidosos, justificar estas afirmações fortes e universais?
Sugiro que o papel importante atribuído à vergonha nestas três refutações é uma chave para a sua validade. A vergonha reflecte uma concepção platónica que corresponde à nossa noção de uma consciência moral inata, que Platão descreve como um desejo universal do bem. Esta é a tese apresentada no primeiro paradoxo contra Polo: que todos os homens desejam o bem e perseguem-no em todas as suas acções (468b-c, 499e; cf. República, VI, 505d). A vergonha opera neste diálogo como uma intuição obscura do bem por parte dos interlocutores de Sócrates. Talvez seja numa intuição deste tipo que Sócrates se baseia para dizer que Polo ou Cálicles estarão inevitavelmente de acordo com ele ou em desacordo consigo próprios. Porque (como Sócrates diz) todos desejamos o bem. E o bem é, de facto, a areté[6] socrática, a excelência moral e intelectual da alma. E é por isso que ninguém quer ser injusto ou agir injustamente.
A invulnerabilidade à contradição que Sócrates implica na sua tese fundamental ― que a areté é o que nós realmente queremos, o nosso verdadeiro bem e felicidade ― é reforçada pelo apelo dramático da caracterização de Sócrates como a encarnação da sua própria tese. A caracterização de Sócrates parece fornecer um complemento positivo aos resultados negativos da refutação. Aqui também a mestria de Platão reside na combinação que faz entre os elementos pessoais e doutrinários (.) A fim de compreender o significado filosófico, do ponto de vista de Platão, deste enorme poder presente no retrato literário de Sócrates, devemos considerar algumas das implicações da sua afirmação de que todos somos motivados por um desejo racional do bem.
O primeiro paradoxo contra Polo (os oradores e políticos não têm poder, não fazem o que querem, mas apenas o que lhes parece melhor) assenta no pressuposto de que só queremos coisas boas ou só o bem e, assim, façamos o que fizermos, é procurando qualquer coisa boa (ou simplesmente pelo bem ― 468b). Para Sócrates é bom aquilo que é bom em primeiro lugar para o espírito: uma acção é boa para mim apenas se melhorar a minha alma, tal como o acto justo o faz. Mas não é uma verdade privada: aquilo que é bom para mim é também para toda a gente. E toda a gente quer o que é bem para si. E, de facto, agir justamente é bom para eles. Assim, toda a gente quer agir justamente, quer saibam isso quer não. Ninguém quer agir injustamente, porque (quer saibam isso quer não) isso lhes vai fazer mal, e ninguém quer ser magoado. Quem age injustamente fá-lo akon: involuntariamente (porque não quer ser magoado) e sem saber (porque não tem consciência que praticar aquela acção é prejudicial).
Esta leitura do argumento parece ser pressuposta no próprio resumo de Sócrates, em 509e: ".Polo e eu tivemos ou não razão (.) contra a sua vontade?" Isto implica que todos temos um grande e profundo desejo racional, se bem que inconsciente, uma espécie de desejo verdadeiro, de justiça e virtude, uma vez que o que é bom para nós (o nosso bem-estar ou felicidade) consiste na condição justa e virtuosa da alma. Mas se nos faltar o conhecimento ou a techné da justiça e da virtude, não sabemos qual o nosso bem: somos incapazes de identificar o objecto do nosso desejo (o bem intrínseco) e também de assegurar os meios para o atingir (o bem instrumental). (.) É requerida uma tal techné tanto para reconhecer o verdadeiro objecto de desejo e também para assegurar os meios de o atingir.
(.) Se alguém conseguir ver que a virtude é um bem (e portanto um bem para si) então irá desejá-la. A função da refutação, reforçada pela apresentação de Sócrates como um modelo de virtude, é trazida ao interlocutor e ao leitor até ao ponto em que consigam vê-la. E não é tanto a capacidade dialéctica de Sócrates que o leva a isso, mas a sua habilidade em desenhar aquele profundo desejo do bem que motiva qualquer agente racional, mesmo quando o próprio agente ignora a natureza do seu próprio desejo.
Se é esta a perspectiva de Platão, podemos compreender melhor a importância que o papel da vergonha tem nestas três refutações. Em cada caso, o sentimento de vergonha marca o facto de Sócrates trazer à cena as preocupações morais que o interlocutor deve reconhecer, as quais, se correctamente compreendidas, o conduzirão a uma percepção correcta da areté como o bem que ele realmente deseja. Tal percepção não ocorre realmente durante o diálogo (.).
O efeito no leitor reside fora do diálogo. O que temos no texto é o impacto nos interlocutores; Sócrates manipula o seu sentido de vergonha para os forçar a confrontar-se com a incoerência da sua própria posição e, assim, dar um passo no reconhecimento da ignorância, que é o princípio da sabedoria. (.)
(.) Quando a vergonha (.) leva Cálicles a reconhecer a incoerência entre uma vida dedicada simultaneamente ao poder político e à satisfação indiscriminada, ele é obrigado, com efeito, a abandonar a perseguição do "apetite" ou prazer a qualquer preço, a favor do princípio socrático (.), segundo o qual deve haver uma avaliação dos impulsos e da satisfação, segundo algum padrão de bem. Assim, na refutação de Cálicles, encontramos, quer uma distinção fundamental entre duas concepções de desejo, quer a inadequação de uma dessas concepções como base de uma teoria coerente sobre a vida boa. Quando Cálicles admite que alguns prazeres são melhores e outros piores (499b), aceita essa tese socrática, ou seja, a escolha racional como critério decisivo da virtude e da felicidade (.). Voltamos imediatamente à noção do bem como objectivo e fim da acção (499e-500a) e, eventualmente, ao desejo racional de felicidade, o qual só pode ser realizado na prática das virtudes (509c e sgg). Assim, "ninguém pratica voluntariamente a injustiça e que, portanto, os autores do mal o são sempre contra a sua vontade" (por ignorância) (509e). Como vimos, o desejo racional de bem pode não ser consciente, particularmente no caso de Cálicles. Mas é função da refutação trazer este desejo à consciência. (.) [E a contradição resulta do facto] de que os seus desejos conscientes estão em desacordo com esse desejo mais profundo.

5. Os limites do Górgias

A refutação de Cálicles vai além da sua admissão de que alguns prazeres são melhores do que outros, em 499e, até à conclusão em 508b, que afirma a negação directa da sua tese moral: a disciplina[7] e a moderação dos apetites é melhor para a alma do que a satisfação incontrolada. Esta conclusão é conseguida por um argumento que assenta fundamentalmente numa concepção das virtudes como ordem e harmonia da alma (taxis, kosmos). Esta concepção é aqui introduzida por meio de uma indução sistemática a partir das artes. Tal como na pintura, arquitectura ou construção de navios, um artista moral e político irá "olhar para a sua obra" de modo a dar-lhe uma forma (eidos) e uma ordem harmoniosa (taxis). Tal como uma casa ou um barco são caracterizados pela ordem e estrutura harmoniosa (kosmos), e também os nossos corpos, também assim será a alma: "não será a alma boa quando caracterizada pela ordem e harmonia, mais do que pela desordem?" Cálicles dá o seu assentimento: "As afirmações precedentes obrigam-nos a admitir a segunda hipótese." (504b).
A necessidade que conduz ao assentimento de Cálicles é estritamente a da analogia. E o mesmo é verdade para o próximo passo, que identifica a ordem espiritual com as virtudes da justiça e da temperança, por analogia com a saúde concebida como o produto da ordem harmoniosa no corpo (504c-d). Assim, é inteiramente baseado nesta analogia com as artes que Sócrates estabelece a superioridade da disciplina moral sobre a satisfação desenfreada no final da refutação de Cálicles, em 505b.
Uma analogia ainda mais forte é introduzida em 508a como suporte da afirmação de que o homem bom é feliz e o mau infeliz (507c).[8](.)
Cálicles não percebeu isto porque não vira o grande poder da proporção geométrica entre os homens e os mortais.
Esta concepção da alma harmoniosa e bem ordenada como semelhante, por um lado, à ordem natural do cosmos e, por outro, às obras de arte bem conseguidas, é a última tentativa (.) de assegurar um suporte teórico da convicção de que a vida de Sócrates é não só a melhor, mas também a mais feliz que um ser humano pode querer viver. Desta conclusão, que é "pela posse da justiça e da temperança que as pessoas felizes são felizes, e as pessoas infelizes são infelizes", Sócrates não pode derivar os paradoxos previamente enunciados contra Polo e Górgias: que cometer a injustiça é pior do que sofrê-la e de que o orador deve ser uma pessoa justa e saber o que é a justiça (508b-c). Estas conclusões são afirmadas como sendo as mais fortes, estabelecidas por "razões de ferro e diamante", [nas passagens 508e-509b].
O que torna estes argumentos tão fortes, tal como é dito? Sabemos que o argumento contra Polo não é suficientemente forte para estabelecer as conclusões de Sócrates e custa a crer que Platão não estivesse plenamente consciente disso. O argumento positivo contra Cálicles baseia-se completamente na suposição de que o que torna uma coisa boa é o próprio kosmos; e a ordem própria da alma é a temperança e a justiça. Como vimos, esta tese é baseada na analogia com os produtos da arte humana. (.) [E toda a argumentação, à excepção do argumento dedutivo para a unidade das virtudes, em 507a] é baseada na analogia. [E Platão conhecia a crítica ao argumento por analogia]. Platão deve ter compreendido que os argumentos positivos do Górgias eram insatisfatórios. E foi para os tornar melhores que escreveu a República.
O que falta [ao Górgias], em primeiro lugar, é uma psicologia moral [tal como é escrita na República]. (.). E também uma teoria do conhecimento (.) e uma teoria do objecto do conhecimento (.). Para passar deste technikos do Górgias para o filósofo-rei, necessitamos da doutrina das Formas. (.) [E] também de uma teoria do eros (.).
No entanto, o que o Górgias nos oferece não é de todo negligenciável. Nesta obra temos o argumento mais convincente para a posição moral de Sócrates no colapso total da alternativa de Cálicles, com um contraponto positivo no retrato do próprio Sócrates. A refutação mostra que os adversários de Sócrates não podem explicar o bem e o mal, o certo e o errado a partir das suas próprias vidas e das suas próprias convicções. O ideal socrático da excelência espiritual é estabelecido pelo único suporte que a refutação pode dar: só no seu caso a sua vida e a sua morte estão em harmonia com as suas doutrinas. (.)
O Górgias implica que esta harmonia entre a vida e a crença existe porque as doutrinas de Sócrates estão, e as teses dos seus adversários não, de acordo com o seu desejo racional de bem. (.)
No Górgias as coisas são mais simples, uma vez que o nosso desejo racional de bem está directamente relacionado, não com uma Forma transcendente, mas com o adorno da nossa alma com a virtude que torna uma vida admirável e amada. Aqui (.), a vida e a morte de Sócrates são apresentadas como a suporte principal do seu ensino moral (.). Nenhuma teoria e argumento ou prova filosófica que ignore este desejo fundamental em procurar padrões de assentimento ou concordância pode explicar adequadamente a prática do filósofo tal como é retratada nos diálogos de Platão.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

O PRIMEIRO GRANDE HERÉTICO

O primeiro grande herético do cristianismo foi Marcião. Apesar de o ter apelidado de "primogénito de Satã", a Igreja com fina consciência, tratou-o sempre com desusada consideração, porque era, com efeito, fora do dogma, uma varão em tudo exemplar.

Marcião, como todo o gnosticismo, parte de uma consciência hiper-sensível ao carácter de limitação, de defeito, de insuficiência adstrito a tudo o que é mundano. Por isso, não admite que o verdadeiro e supremo Deus tenha algo a ver com o mundo: ele é o absolutamente distinto e outro que não o mundo. De outro modo ficaria contaminado moral e ontologicamente com a imperfeição e limitação deste. Daqui que, segundo ele, não possa ser o supremo e autêntico Deus um criador do mundo; seria então criador do insuficiente, portanto, ele mesmo insuficiente. Criar algo é, afinal - interpreto agora Marcião - contaminar-se com o criado. O Deus criador é um poder segundo, é o deus do Antigo Testamento, um Deus que tem muito de intramundano, Deus da justiça e deus dos exércitos, o qual supõe que está referido indissoluvelmente ao crime e à luta. Pelo contrário, o verdadeiro Deus não é justo, é simplesmente bom, não é justiça mas caridade e amor. Existe eternamente alheio ao mundo e ausente do mundo, em absoluta distância dele, não tocado por ele. Mas por ser o absolutamente outro, que não o mundo, compensa-o e completa-o, de tanto não ter que ver com o mundo, salva-o. E esta é para um gnóstico a obra mais altamente divina: não criar o mundo (o mal) como um demiurgo pagão, mas pelo contrário, "descriá-lo", anular a sua maldade constitutiva - isto é, salvá-lo. Não aconteça que me pensem a fazer confissão de marcianismo. Mal posso fazê-la, pois Marcião fala de Deus, problema de teologia, e isto para mim é apenas uma ilustração à margem

FILOSOFIA E MISTICISMO


Chamemos Filosofia a um conhecimento teorético, a uma teoria. A teoria é um conjunto de conceitos - no sentido estrito do termo conceito. E este sentido estrito consiste em ser o conceito um conteúdo mental enunciável. O que não se pode dizer, o indizível ou inefável não é conceito, e um conhecimento que consista em visão inefável do objecto será tudo o que vocês queiram, inclusivé será, se vocês o quiserem, a forma suprema do conhecimento, mas não é o que procuramos sob o nome de filosofia. Se imaginarmos um sistema filosófico como o de Plotino ou o de Bergson, que mediante conceitos nos demonstra ser o verdadeiro conhecimento um êxtase da consciência, em que esta transpõe os limites do intelectual ou conceptual e toma contacto imediato com a realidade, portanto, sem a mediação ou intermédio do conceito, diríamos que são filosofias na medida em que provam a necessidade do Extase com meios não extáticos e deixam de o ser quando se lançam do conceito para a imersão no transe místico.
O autor místico convida-nos para uma viagem maravilhosa, a mais maravilhosa. Diz-nos que esteve mesmo no centro do universo, nas entranhas do absoluto. Propõe-nos que voltemos a fazer com ele a caminhada. Encantados, dispomo-nos a partir, e docilmente seguir o nosso guia. Logo nos surpreende um pouco que quem se submergiu em tão prodigioso lugar e elemento, em tão decisivo abismo, como é Deus ou o Absoluto ou o Uno, não tenha ficado mais perturbado, mais desumanizado, com uma nova linguagem. (Quando Gautier voltou a Paris da sua viagem a Espanha, toda a gente lho reconheceu na cara, porque a trazia queimada do sol transpirenaico. E, de acordo com alenda bretã, os que desciam ao purgatório de S. Patrício não voltavam a rir nunca mais; a rigidez dos músculos zigomáticos, solícitos obreiros do sorriso, mostrava como "autêntica" a sua excursão subterrânea.) O místico, todavia, regressou intacto, impermeável à matéria soberana que, durante algum tempo, o banhou. Se alguém nos diz que volta do fundo do mar, dirigimos um olhar à sua indumentária com a esperança de achar nela presos uns vagos restos de algas e corais, flora e fauna abissais.
Mas é tanto o fascínio que nos oferece a viagem proposta, que calamos esta momentânea estranheza e caminhamos resolutos junto ao místico. As suas palavras - os seus logoi - seduzem-nos. Os místicos têm sido habitualmente os mais formidáveis técnicos da palavra, os mais exactos escritores. É curioso e - como veremos - paradoxal que em toda as linguagens do mundo os clássicos do idioma, do verbo, tenham sido os místicos. Além de portentosos dizedores, os místicos tiveram sempre um grande talento dramático. O dramatismo é a tensão natural da nossa alma, produzida por algo que se nos anuncia para o futuro, do qual em cada instante nos aproximamos mais, de modo que a curiosidade, o temor ou o apetite suscitado por esse algo futuro se multiplica por si mesmo, acumulando-se sobre cada novo instante. Se a distância que nos separa desse futuro tão atractivo ou tão temível é dividida em etapas, a chegada a cada uma delas renova e aumneta a nossa tensão. Aquele que vai atravessar o deserto do Saará sente curiosidade pelas suas margens, onde termina a civilização, mas sente-a maior pelo que há para além das suas margens, pelo que é já deserto, e ainda maior pelo próprio centro deste, como se nesse centro o deserto fosse superlativo de si mesmo. Desta maneira, em vez de minguar a curiosidade conforme se vai usando, é como um músculo que i exercício alimenta e faz crescer. O que está para lá da primeira etapa interessa, mas interessa mais o que está para lá desse primeiro mais além, e assim sucessivamente. Todo o bom dramaturgo conhece o efeito de tensão mecânica que produz esta segmentação do caminho na direcção de um futuro anunciado. E por isso os místicos dividem sempre o seu itinerário para o êxtase em etapas virtuais. Umas vezes trata-se de um castelo dividido em moradas incluídas umas nas outras, como essas caixas japonesas que têm sempre dentro mais outra caixa - assim acontece com Stª Teresa de Ávila -; outras vezes é a subida a um monte com paragens na ascensão, como em S. João da Cruz; ou antes é uma escada onde cada degrau nos promete uma nova visão e uma nova paisagem, como na Escala espiritual de S. João Clímaco. Confessemos que, ao chegar a cada um desses estádios, sentimos alguma desilusão: o que daí divisamos não é nada de especial. Mas a esperança de que no próximo se manifestará já o insólito e magnífico mantém-nos alerta e com ânimo. Mas eis que, ao chegar à última morada, ao cimo do Carmelo, ao último degrau, o místico guia que não parou de falar um só momento nos diz: "Agora fique você aí sozinho; eu vou submergir-me no êxtase. Quando voltar, contar-lho-ei". Docilmente esperamos, iludidos com a perspectiva de ver o místico regressar diante dos nossos olhos directamente do abismo, jorrando ainda mistérios, com o odor acre dos ventos do além que durante algum tempo as roupas do navegante trazem pegado. Ei-lo que já regressa, aproxima-se e diz-nos: "Pois, sabe você que não posso contar-lhe nada ou pouco menos, porque o que vi é em si mesmo incontável, indizível, inefável?" E o místico, tão falador antes, tão mestre do falar, torna-se taciturno na hora decisiva, ou, o que é pior ainda e mais frequente, comunica-nos do transmundo notícias tão vulgares, tão pouco interessantes, que até desprestigiam o mais além. O clássico da linguagem faz-se especialista do silêncio.
Quero indicar com isto que a atitude sensata perante o misticismo, no sentido estrito desta palavra, não deve consistir na pedanteria de estudar os místicos como casos de clínica psiquiátrica - como se isto clarificasse algo de essencial da sua obra -, ou opondo-lhes quaisquer outras objecções prévias, mas, pelo contrário, aceitando tudo o que nos prpõem e tomando-os pela palavra. Pretendem chegar a um conhecimento superior ao da realidade. Se, com efeito, os despojos de sabedoria que o transe lhes proporciona valessem mais do que o conhecimento teorético, não duvidaríamos um momento em abandonar este e fazer-nos místicos. Mas o que nos dizem é de uma trivialidade e de uma monotonia insuperáveis. A isso respondem os místicos que o conhecimento através do êxtase, pela sua própria superioridade, transcende toda a linguagem, que é um saber mudo. Somente cada homem por si pode chegar a ele, e o livro místico diferencia-se de um livro científico por não ser uma doutrina sobre a realidade transcendente, mas o plano de um caminho para chegar a essa realidade, o discurso de um método, o itinerário da mente até ao absoluto. O saber místico é intransferível e, por essência, silencioso.
Em verdade, não poderiam tão-pouco valer este mutismo e este carácter intransferível de certo saber como objecções contra o misticismo. A cor que os nossos vêem e o som que os nossos ouvido ouvem são em rigor indizíveis. O matiz peculiar de uma cor real não pode ser expresso em palavras: é preciso vê-lo, e somente aquele que o vê sabe propriamente de que se trata. Seria, pois, um erro desdenhar do que o místico vê, porque somente ele o pode ver. Há que raspar do conhecimento a democracia do saber segundo a qual somente existiria o que toda a gente pode conhecer. Dito por outras palavras: aquele que não vê tem de fiar-se em quem vê. Mas como podemos certificar-nos de que alguém vê o que nós não vemos? O mundo está cheio de charlatães, de vaidosos, de enganadores, de dementes. O critério neste caso não me parece difícil de achar; eu acreditarei que alguém vê mais do que eu, quando essa visão superior, invisível para mim, lhe proporciona superioridades, visíveis para mim. Julgo pelos seus efeitos. Conste, pois, que não é a inefabilidade nem a impossível transferência do saber místico o que faz o misticismo pouco estimável. A minha objecção frente ao misticismo é que da visão mística não resulta benefício intelectual nenhum.
O misticismo tende a explorar a profundidade e especula com o abismático; pelo menos, entusiasma-se com as profundidades, sente-se atraído por elas. Pois bem, a tendência da filosofia é de sentido oposto. Não lhe interessa submergir-se no profundo, como a mística, mas, pelo contrário, emergir do profundo até à superfície. Contra o que é costume supor-se, é a filosofia um gigantesco anseio de superfície, quero dizer de trazer para a superfície e tornar patente, claro, evidente se for possível, o que estava subterrâneo, misterioso, latente. Detesta o mistério e os gestos melodramáticos do iniciado, do mistagogo.
A filosofia é um enorme apetite de transparência e uma resoluta vontade de meio-dia. O seu propósito radical é trazer para a superfície, declarar, descobrir o oculto ou velado - na Grécia a filosofia começou por chamar-se "alétheia", que significa desocultação, revelação ou desvelação; em suma, manifestação. E manifestar não é senão falar, "logos". Se o misticismo é calar, filosofar é dizer: descobrir na grande nudez e transparência da palavra o ser das coisas, dizer o ser. Face ao misticismo, a filosofia gostaria de ser o segredo aos gritos.

Ortega y Gasset (adaptação)

domingo, 10 de setembro de 2006

VERDADE E POLITICA


"Nunca ninguém duvidou que a verdade e a política sempre estiveram em bastante más relações e, tanto quanto eu saiba, também nunca ninguém incluiu a boa fé na classe das virtudes políticas. As mentiras sempre foram consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, como até do próprio estadista.

A história do conflito entre verdade e política é uma velha e complicada história e nada se ganharia com a mera simplificação ou predicação moral. No decurso da história, os investigadores e todos os que contam a verdade tiveram sempre consciência dos riscos que enfrentavam; enquanto não se imiscuíam nos negócios do mundo, podiam ser alvo de troça, mas aqueles que, dentre eles, forçasse os seus concidadãos a tomá-lo a sério, tentando libertá-los da falsidade e da ilusão, arriscava a sua própria vida.
"Se eles pudessem pôr as mãos num (tal) homem... matá-lo-iam", escreve Platão, na última frase da alegoria da caverna, referindo-se ao homem que descobrisse que a realidade da caverna era uma ilusão.
Hobbes, não Platão, encontrava consolação na existência de uma verdade neutra, em !assuntos" com os quais os "homens não se preocupavam" - isto é, com "a verdade da matemática", "a doutrina das linhas e das figuras" que "não se sobrepõe a nenhuma ambição, proveito ou apetite humano". Porque, escrevera Hobbes, não duvido que, se fosse contrário ao direito de um homem, à dominação, ou ao interesse dos homens que detêm o poder, que os três ângiulos de um triângulo sejam equivalentes a dois ângulos de um quadrado, essa doutrina, a não poder ser contestada, seria ainda assim suprimida pelo lançamento à fogueira de todos os livros de geometria, desde que aqueles que fossem por ela afectados tivessem força e meios para isso.

A época moderna, que acredita que a verdade nem é dada nem revelada, mas produzida pela mente humana, tem, desde Leibniz, englobado as verdades matemáticas, científicas e filosóficas, na espécie comum das verdades da razão, e distintas das verdades de facto. Utilizarei esta distinção por comodidade, sem entrar na discussão da sua legitimidade intrínseca. No interesse de descobrir que danos pode o poder político infligir à verdade, investigaremos esse assunto por razões mais políticas do que filosóficas, e, permitimo-nos, por isso, deixar de lado a questão de saber o que é a verdade, contentando-nos em tomar a palavra na acepção em que os homens comummente a entendem. E se pensarmos agora em verdades de facto - em verdades tão modestas, como o papel de um homem chamado Trostky, durante a revolução russa, que não aparece em nenhum dos livros de História Russa soviéticos -, imediatamente tomamos consciência de quanto essas verdades são bem mais vulneráveis do que todas as espécies de verdades racionais juntas. Quando combate a verdade racional, a dominação (para usar a linguagem de Hobbes) ultrapassa, por assim dizer, os seus limites, mas, quando falsifica ou nega os factos através da mentira, trava o combate no seu próprio terreno.

Ainda que as verdades politicamente mais relevantes sejam as verdades de facto, o conflito entre a verdade e a política foi descoberto e articulado pela primeira vez em relação às verdades racionais. O oposto de uma verdade racional é, ou o erro e ignorância nas ciências, ou ilusão ou opinião na filosofia. A falsidade deliberada, a pura mentira desempenha o seu papel apenas no domínio dos enunciados factuais; e parece significativo, ou melhor estranho que, no longo debate centrado sobre o antagonismo entre a verdade e a política, desde Platão até Hobbes, aparentemente, ninguém tenha acreditado que a mentira organizada, tal como a conhecemos hoje em dia, tenha podido ser uma arma eficaz contra a verdade.

Provavelmente nenhuma época passada foi mais tolerante do que a nossa quanto a opiniões tão diversas sobre questões religiosas ou filosóficas, mas quando se trata de verdades de facto que colidem com o lucro ou o prazer de um determinado grupo são encaradas, nos dias de hoje, com uma hostilidade nunca vista em alguma época passada.

Sem dúvida que sempre existiram os segredos de estado, que todo o governo precisa de classificar certas informações e de as ocultar do conhecimento público, e que os que revela segredos autênticos sempre foram considerados como traidores. Porém não è com isso que me preocupo aqui. Os factos que tenho em vista são do conhecimento público e, apesar disso, o público que os conhece pode com êxito e muitas vezes espontaneamente transformar em tabu a sua discussão pública, lidando com eles como se fossem aquilo que não são, isto é, segredos.

Mesmo na Alemanha de Hitler e na Rússia de Estaline era mais perigoso falar de campos de concentração e de extermínio cuja existência não era nenhum segredo, do que criticar o racismo, o anti-semitismo ou o comunismo.

Encarada do ponto de vista da política, a verdade tem um carácter despótico. Daí que seja odiada por tiranos que temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não são capazes de monopolizar; e desfruta de um estatuto relativamente precário para a perspectiva dos governos que se baseiam no consentimento e dispensam a coerção.

A marca distintiva das verdades de facto é que o seu contrário não é nem o erro nem a ilusão nem a opinião que, em si mesmas, não põem em causa a veracidade dos seus defensores, mas a falsidade deliberada ou mentira.

Hannah Arendt (adaptação)

terça-feira, 29 de agosto de 2006

OUTRAS MENTES

"Existe um tipo especial de cepticismo que continua a ser um problema mesmo que admitas que a tua mente não é a única coisa que existe - e que o mundo físico que pensas ver e sentir à tua volta, incluindo o teu próprio corpo, existe realmente. É o cepticismo quanto à natureza ou até quanto à existência de mentes ou experiências diferentes da tua.
Que sabes realmente sobre aquilo que se passa na mente de qualquer pessoa? É claro que só observas os corpos das outras criaturas, incluindo os das pessoas. Observas aquilo que fazem, escutas aquilo que dizem e os outros sons que produzem, vês como respondem ao ambiente que as rodeia - quais as coisas que as atraem e quais as que as repugnam, aquilo que comem e assim sucessivamente. Também podes abrir outras criaturas, observar o interior dos seus corpos e comparar mesmo a sua anatomia com a tua.
Mas nada disto te dará acesso directo às suas experiências, pensamentos e sentimentos. As únicas experiências que podes realmente ter são as tuas próprias: se acreditas em alguma coisa acerca da vida mental de outras pessoas, só fazes com base na observação da sua constituição física e dos seus comportamentos.
Tomemos um exemplo simples: quando comes gelado de chocolate com um amigo, como sabes que o teu gelado e o do teu amigo têm o mesmo sabor para ele e para ti? Podes provar o gelado dele, mas o facto de ter o mesmo sabor que o teu apenas quer dizer que para ti o sabor é o mesmo: não tiveste nenhuma experiência do sabor que o gelado tem para ele. Parece que não há qualquer maneira de comparar directamente as experiências gustativas de ambos.
Bem, podes dizer que, uma vez que se trata de dois humanos e que ambos podem distinguir diferentes sabores de gelados - por exemplo, ambos podem distinguir de olhos fechados o sabor do chocolate do sabor da baunilha -, é provável que as experiências gustativas de ambos sejam semelhantes. Mas como podes sabê-lo? A única conexão que alguma vez observaste entre uma qualidade de gelado e um sabor foi no teu próprio caso; portanto, que razões tens para pensar que nos outros seres humanos se verificam correlações similares? Não será igualmente consistente com todos os dados disponíveis que o chocolate lhe sabe como a baunilha a ti e vice-versa?
A mesma questão pode ser colocada quanto a outros tipos de experiências. Como sabes que o teu amigo não vê as coisas vermelhas tal como tu vês as amarelas? É claro que, se lhe perguntares qual é a cor de uma boca-de-incêndio, te responderá que é vermelha, como o sangue e não amarela, como um dente de leão, mas isso acontece porque ele, tal como tu, usa a palavra vermelho para a cor que vê nas bocas-de-incêndio e no sangue, seja qual for essa cor. Talvez seja a cor a que tu chamas amarela, ou aquela a que chamas azul, até mesmo uma cor que nunca viste e que nem sequer podes imaginar.
Para o negares tens de apelar ao pressuposto de que as experiências de sabor e de cor estão uniformemente correlacionadas com certos estímulos físicos dos órgãos dos sentidos, independentemente da pessoa que recebe tais estímulos. Mas o céptico diria que não possuis quaisquer dados que apoiem este pressuposto e que, devido ao tipo de pressuposto em causa, não poderias de modo algum ter quaisquer dados a seu favor. A única coisa que podes observar é a correlação que ocorre no teu próprio caso.
Face a este argumento, poderás começar por conceder que neste caso existe um certo grau de incerteza. A correlação entre os estímulos e a experiência poderá não ser exactamente a mesma em todas as pessoas: poderá haver, para duas pessoas diferentes, ligeiras distinções entre as experiências de cor ou sabor de uma mesma qualidade de gelado. Na realidade, uma vez que as pessoas são fisicamente diferentes umas das outras, este facto não seria surpreendente. Mas talvez possas dizer que a diferença entre as experiências não poderá ser muito radical, porque senão já nos teríamos apercebido disso. Por exemplo, o gelado de chocolate não pode ter para o teu amigo o mesmo sabor que um limão tem para ti, pois faria caretas sempre que comesse um gelado de chocolate.
Repara, no entanto, que esta tese pressupõe outra correlação que varia de pessoa para pessoa: uma correlação entre a experiência interna e um certo tipo de reacções observáveis. Mas a mesma questão se levanta neste caso. Já observaste a conexão entre fazer caretas e o sabor a que, no teu caso, chamas amargo: Mas como sabes que essa conexão existe nas outras pessoas? Provavelmente, aquilo que leva o teu amigo a fazer caretas é uma experiência semelhante àquela que tens quando comes cereais ao pequeno-almoço.
Se continuarmos a fazer este tipo de perguntas persistentemente, passaremos de um cepticismo moderado e inofensivo acerca de saber se o gelado de chocolate sabe exactamente ao mesmo a ti e ao teu amigo para um cepticismo muito mais radical acerca de saber se existe alguma semelhança entre as tuas experiências e as do teu amigo. Como sabes que ele tem exactamente uma experiência do tipo a que tu chamas sabor quando põe alguma coisa na boca? Tanto quanto sabes, a experiência dele pode ser aquilo a que tu chamarias um som - ou talvez seja diferente de tudo o que alguma vez experimentaste ou de tudo o que possas imaginar.
Se continuarmos a seguir este caminho, seremos finalmente conduzidos ao mais radical dos cepticismos acerca das outras mentes. Como sabes que o teu amigo é consciente? Como sabes que há outras mentes para além da tua?
O único exemplo que já observaste de uma correlação entre mente, comportamento, anatomia e condições físicas é o teu. Mesmo que as outras pessoas e animais não tivessem quaisquer experiências, nem vida mental interna de qualquer tipo, mas fossem apenas máquinas biológicas elaboradas, teriam para ti a mesma aparência. Portanto, como sabes que não são assim de facto? Como sabes que os seres que te rodeiam não passam de robots sem mente? Nunca viste as suas mentes - nem poderias -, e todo o seu comportamento físico podia ser produzido unicamente por causas físicas. Talvez os teus familiares e vizinhos, o teu cão e o teu gato, não tenham qualquer tipo de experiências internas. Se assim for, nunca conseguirás descobri-lo.
Não podes sequer apelar para o comportamento deles, incluindo aquilo que dizem - porquanto isso pressupõe que existe uma conexão entre o seu comportamento externo e a sua experiência interna, tal como acontece contigo, e isso é precisamente o que não sabes.
Considerar a hipótese de nenhuma das pessoas à tua volta ser consciente produz uma sensação inquietante. Por um lado, esta hipótese parece ser concebível e nenhuns dados que, possivelmente, possas ter podem excuí-la decisivamente. Por outro lado, trata-se de algo que não podes realmente acreditar ser possível: a tua convicção de que há mentes nesses corpos, visão para lá desses olhos, audição nesses ouvidos, etc., é instintiva. Todavia, se a sua força vem do instinto, será mesmo conhecimento? Uma vez que admites a possibilidade de a crença na existência de outras mentes ser um erro, não precisarás de algo mais seguro para justificares a tua adesão a essa crença?
Há outro aspecto nesta questão que vai completamente no sentido oposto.
Geralmente, acreditamos que os outros seres humanos são conscientes, e quase toda a gente acredita que os outros mamíferos e as aves são também conscientes. Mas as pessoas nem sempre concordam sobre se os peixes, ou os insectos, as minhocas e as alforrecas, são conscientes. As pessoas têm ainda mais dúvidas sobre se os animais unicelulares, como as amebas e as paramécias, têm experiências conscientes, ainda que essas criaturas reajam claramente a estímulos de diversos tipos. A maior parte das pessoas acredita que as plantas não são conscientes, e quase ninguém acredita que as pedras, ou os lenços de papel, ou os automóveis, ou os lagos das montanhas, ou os cigarros, sejam conscientes. Para tomar outro exemplo biológico, a maioria de nós diria, se pensássemos nisso, que as células individuais que compõem os nossos corpos não têm qualquer experiência consciente.
Como sabemos estas coisas todas? Como sabes que, quando cortas um ramo de uma árvore, isso não a magoa, mas que ela não pode expressar a sua dor porque não pode mover-se? (Ou então talvez ela goste de ser podada.) Como sabes que as células musculares do teu coração não sentem dor ou excitação quando sobes um lanço de escadas a correr? Como sabes que um lenço de papel não sente nada quando te assoas a ele?
E quanto aos computadores? Supõe que os computadores são aperfeiçoados até ao ponto de poderem ser utilizados para controlar robots que se pareçam exteriormente com cães, respondam de uma forma complexa ao ambiente que os rodeia e se comportem em muitos aspectos como os cães, ainda que o seu interior seja apenas uma massa de circuitos e chips de silício. Teríamos alguma maneira de saber se essas máquinas seriam conscientes?
É claro que estes caos são diferentes uns dos outros. Se uma coisa é incapaz de movimento, não pode oferecer qualquer prova comportamental da existência de sentimentos ou percepções. Se não se tratar de um organismo natural, a sua constituição interna será radicalmente diferente da nossa. Mas que fundamentos teremos para pensar que só as coisas que se comportam como nós em pelo menos alguns aspectos e que têm uma estrutura física observável vagamente semelhante à nossa são capazes de ter experiências de qualquer tipo? Talvez as árvores sintam coisas de um modo totalmente diferente do nosso, mas não existe qualquer maneira de podermos descobri-lo, porque, no caso das árvores, não há qualquer possibilidade de podermos descobrir correlações entre a experiência e as manifestações observáveis, ou as condições físicas.
Só poderíamos descobrir tais correlações se pudéssemos observar quer as experiências, quer as manifestações externas em conjunto, mas não existe qualquer via de podermos observar as experiências directamente, excepto no nosso próprio caso. Pela mesma razão, também não existe qualquer possibilidade de observarmos a ausência de quaisquer experiências, nem, consequentemente, a ausência de tais correlações, m qualquer outro caso, excepto no nosso. Não podes dizer que uma árvore não tem experiências olhando para dentro de uma árvore, tal como não podes dizer que uma minhoca tem experiências olhando para dentro dela.
Portanto, a questão é esta: que podes realmente saber sobre a vida consciente neste mundo para além do facto de tu próprio teres uma mente consciente? Será possível que haja muito menos vida consciente do que supões (nenhuma além da tua), ou muito mais (até nas coisas que supões serem inconscientes)?"
Thomas Nagel