segunda-feira, 11 de setembro de 2006

FILOSOFIA E MISTICISMO


Chamemos Filosofia a um conhecimento teorético, a uma teoria. A teoria é um conjunto de conceitos - no sentido estrito do termo conceito. E este sentido estrito consiste em ser o conceito um conteúdo mental enunciável. O que não se pode dizer, o indizível ou inefável não é conceito, e um conhecimento que consista em visão inefável do objecto será tudo o que vocês queiram, inclusivé será, se vocês o quiserem, a forma suprema do conhecimento, mas não é o que procuramos sob o nome de filosofia. Se imaginarmos um sistema filosófico como o de Plotino ou o de Bergson, que mediante conceitos nos demonstra ser o verdadeiro conhecimento um êxtase da consciência, em que esta transpõe os limites do intelectual ou conceptual e toma contacto imediato com a realidade, portanto, sem a mediação ou intermédio do conceito, diríamos que são filosofias na medida em que provam a necessidade do Extase com meios não extáticos e deixam de o ser quando se lançam do conceito para a imersão no transe místico.
O autor místico convida-nos para uma viagem maravilhosa, a mais maravilhosa. Diz-nos que esteve mesmo no centro do universo, nas entranhas do absoluto. Propõe-nos que voltemos a fazer com ele a caminhada. Encantados, dispomo-nos a partir, e docilmente seguir o nosso guia. Logo nos surpreende um pouco que quem se submergiu em tão prodigioso lugar e elemento, em tão decisivo abismo, como é Deus ou o Absoluto ou o Uno, não tenha ficado mais perturbado, mais desumanizado, com uma nova linguagem. (Quando Gautier voltou a Paris da sua viagem a Espanha, toda a gente lho reconheceu na cara, porque a trazia queimada do sol transpirenaico. E, de acordo com alenda bretã, os que desciam ao purgatório de S. Patrício não voltavam a rir nunca mais; a rigidez dos músculos zigomáticos, solícitos obreiros do sorriso, mostrava como "autêntica" a sua excursão subterrânea.) O místico, todavia, regressou intacto, impermeável à matéria soberana que, durante algum tempo, o banhou. Se alguém nos diz que volta do fundo do mar, dirigimos um olhar à sua indumentária com a esperança de achar nela presos uns vagos restos de algas e corais, flora e fauna abissais.
Mas é tanto o fascínio que nos oferece a viagem proposta, que calamos esta momentânea estranheza e caminhamos resolutos junto ao místico. As suas palavras - os seus logoi - seduzem-nos. Os místicos têm sido habitualmente os mais formidáveis técnicos da palavra, os mais exactos escritores. É curioso e - como veremos - paradoxal que em toda as linguagens do mundo os clássicos do idioma, do verbo, tenham sido os místicos. Além de portentosos dizedores, os místicos tiveram sempre um grande talento dramático. O dramatismo é a tensão natural da nossa alma, produzida por algo que se nos anuncia para o futuro, do qual em cada instante nos aproximamos mais, de modo que a curiosidade, o temor ou o apetite suscitado por esse algo futuro se multiplica por si mesmo, acumulando-se sobre cada novo instante. Se a distância que nos separa desse futuro tão atractivo ou tão temível é dividida em etapas, a chegada a cada uma delas renova e aumneta a nossa tensão. Aquele que vai atravessar o deserto do Saará sente curiosidade pelas suas margens, onde termina a civilização, mas sente-a maior pelo que há para além das suas margens, pelo que é já deserto, e ainda maior pelo próprio centro deste, como se nesse centro o deserto fosse superlativo de si mesmo. Desta maneira, em vez de minguar a curiosidade conforme se vai usando, é como um músculo que i exercício alimenta e faz crescer. O que está para lá da primeira etapa interessa, mas interessa mais o que está para lá desse primeiro mais além, e assim sucessivamente. Todo o bom dramaturgo conhece o efeito de tensão mecânica que produz esta segmentação do caminho na direcção de um futuro anunciado. E por isso os místicos dividem sempre o seu itinerário para o êxtase em etapas virtuais. Umas vezes trata-se de um castelo dividido em moradas incluídas umas nas outras, como essas caixas japonesas que têm sempre dentro mais outra caixa - assim acontece com Stª Teresa de Ávila -; outras vezes é a subida a um monte com paragens na ascensão, como em S. João da Cruz; ou antes é uma escada onde cada degrau nos promete uma nova visão e uma nova paisagem, como na Escala espiritual de S. João Clímaco. Confessemos que, ao chegar a cada um desses estádios, sentimos alguma desilusão: o que daí divisamos não é nada de especial. Mas a esperança de que no próximo se manifestará já o insólito e magnífico mantém-nos alerta e com ânimo. Mas eis que, ao chegar à última morada, ao cimo do Carmelo, ao último degrau, o místico guia que não parou de falar um só momento nos diz: "Agora fique você aí sozinho; eu vou submergir-me no êxtase. Quando voltar, contar-lho-ei". Docilmente esperamos, iludidos com a perspectiva de ver o místico regressar diante dos nossos olhos directamente do abismo, jorrando ainda mistérios, com o odor acre dos ventos do além que durante algum tempo as roupas do navegante trazem pegado. Ei-lo que já regressa, aproxima-se e diz-nos: "Pois, sabe você que não posso contar-lhe nada ou pouco menos, porque o que vi é em si mesmo incontável, indizível, inefável?" E o místico, tão falador antes, tão mestre do falar, torna-se taciturno na hora decisiva, ou, o que é pior ainda e mais frequente, comunica-nos do transmundo notícias tão vulgares, tão pouco interessantes, que até desprestigiam o mais além. O clássico da linguagem faz-se especialista do silêncio.
Quero indicar com isto que a atitude sensata perante o misticismo, no sentido estrito desta palavra, não deve consistir na pedanteria de estudar os místicos como casos de clínica psiquiátrica - como se isto clarificasse algo de essencial da sua obra -, ou opondo-lhes quaisquer outras objecções prévias, mas, pelo contrário, aceitando tudo o que nos prpõem e tomando-os pela palavra. Pretendem chegar a um conhecimento superior ao da realidade. Se, com efeito, os despojos de sabedoria que o transe lhes proporciona valessem mais do que o conhecimento teorético, não duvidaríamos um momento em abandonar este e fazer-nos místicos. Mas o que nos dizem é de uma trivialidade e de uma monotonia insuperáveis. A isso respondem os místicos que o conhecimento através do êxtase, pela sua própria superioridade, transcende toda a linguagem, que é um saber mudo. Somente cada homem por si pode chegar a ele, e o livro místico diferencia-se de um livro científico por não ser uma doutrina sobre a realidade transcendente, mas o plano de um caminho para chegar a essa realidade, o discurso de um método, o itinerário da mente até ao absoluto. O saber místico é intransferível e, por essência, silencioso.
Em verdade, não poderiam tão-pouco valer este mutismo e este carácter intransferível de certo saber como objecções contra o misticismo. A cor que os nossos vêem e o som que os nossos ouvido ouvem são em rigor indizíveis. O matiz peculiar de uma cor real não pode ser expresso em palavras: é preciso vê-lo, e somente aquele que o vê sabe propriamente de que se trata. Seria, pois, um erro desdenhar do que o místico vê, porque somente ele o pode ver. Há que raspar do conhecimento a democracia do saber segundo a qual somente existiria o que toda a gente pode conhecer. Dito por outras palavras: aquele que não vê tem de fiar-se em quem vê. Mas como podemos certificar-nos de que alguém vê o que nós não vemos? O mundo está cheio de charlatães, de vaidosos, de enganadores, de dementes. O critério neste caso não me parece difícil de achar; eu acreditarei que alguém vê mais do que eu, quando essa visão superior, invisível para mim, lhe proporciona superioridades, visíveis para mim. Julgo pelos seus efeitos. Conste, pois, que não é a inefabilidade nem a impossível transferência do saber místico o que faz o misticismo pouco estimável. A minha objecção frente ao misticismo é que da visão mística não resulta benefício intelectual nenhum.
O misticismo tende a explorar a profundidade e especula com o abismático; pelo menos, entusiasma-se com as profundidades, sente-se atraído por elas. Pois bem, a tendência da filosofia é de sentido oposto. Não lhe interessa submergir-se no profundo, como a mística, mas, pelo contrário, emergir do profundo até à superfície. Contra o que é costume supor-se, é a filosofia um gigantesco anseio de superfície, quero dizer de trazer para a superfície e tornar patente, claro, evidente se for possível, o que estava subterrâneo, misterioso, latente. Detesta o mistério e os gestos melodramáticos do iniciado, do mistagogo.
A filosofia é um enorme apetite de transparência e uma resoluta vontade de meio-dia. O seu propósito radical é trazer para a superfície, declarar, descobrir o oculto ou velado - na Grécia a filosofia começou por chamar-se "alétheia", que significa desocultação, revelação ou desvelação; em suma, manifestação. E manifestar não é senão falar, "logos". Se o misticismo é calar, filosofar é dizer: descobrir na grande nudez e transparência da palavra o ser das coisas, dizer o ser. Face ao misticismo, a filosofia gostaria de ser o segredo aos gritos.

Ortega y Gasset (adaptação)

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