domingo, 10 de setembro de 2006

VERDADE E POLITICA


"Nunca ninguém duvidou que a verdade e a política sempre estiveram em bastante más relações e, tanto quanto eu saiba, também nunca ninguém incluiu a boa fé na classe das virtudes políticas. As mentiras sempre foram consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, como até do próprio estadista.

A história do conflito entre verdade e política é uma velha e complicada história e nada se ganharia com a mera simplificação ou predicação moral. No decurso da história, os investigadores e todos os que contam a verdade tiveram sempre consciência dos riscos que enfrentavam; enquanto não se imiscuíam nos negócios do mundo, podiam ser alvo de troça, mas aqueles que, dentre eles, forçasse os seus concidadãos a tomá-lo a sério, tentando libertá-los da falsidade e da ilusão, arriscava a sua própria vida.
"Se eles pudessem pôr as mãos num (tal) homem... matá-lo-iam", escreve Platão, na última frase da alegoria da caverna, referindo-se ao homem que descobrisse que a realidade da caverna era uma ilusão.
Hobbes, não Platão, encontrava consolação na existência de uma verdade neutra, em !assuntos" com os quais os "homens não se preocupavam" - isto é, com "a verdade da matemática", "a doutrina das linhas e das figuras" que "não se sobrepõe a nenhuma ambição, proveito ou apetite humano". Porque, escrevera Hobbes, não duvido que, se fosse contrário ao direito de um homem, à dominação, ou ao interesse dos homens que detêm o poder, que os três ângiulos de um triângulo sejam equivalentes a dois ângulos de um quadrado, essa doutrina, a não poder ser contestada, seria ainda assim suprimida pelo lançamento à fogueira de todos os livros de geometria, desde que aqueles que fossem por ela afectados tivessem força e meios para isso.

A época moderna, que acredita que a verdade nem é dada nem revelada, mas produzida pela mente humana, tem, desde Leibniz, englobado as verdades matemáticas, científicas e filosóficas, na espécie comum das verdades da razão, e distintas das verdades de facto. Utilizarei esta distinção por comodidade, sem entrar na discussão da sua legitimidade intrínseca. No interesse de descobrir que danos pode o poder político infligir à verdade, investigaremos esse assunto por razões mais políticas do que filosóficas, e, permitimo-nos, por isso, deixar de lado a questão de saber o que é a verdade, contentando-nos em tomar a palavra na acepção em que os homens comummente a entendem. E se pensarmos agora em verdades de facto - em verdades tão modestas, como o papel de um homem chamado Trostky, durante a revolução russa, que não aparece em nenhum dos livros de História Russa soviéticos -, imediatamente tomamos consciência de quanto essas verdades são bem mais vulneráveis do que todas as espécies de verdades racionais juntas. Quando combate a verdade racional, a dominação (para usar a linguagem de Hobbes) ultrapassa, por assim dizer, os seus limites, mas, quando falsifica ou nega os factos através da mentira, trava o combate no seu próprio terreno.

Ainda que as verdades politicamente mais relevantes sejam as verdades de facto, o conflito entre a verdade e a política foi descoberto e articulado pela primeira vez em relação às verdades racionais. O oposto de uma verdade racional é, ou o erro e ignorância nas ciências, ou ilusão ou opinião na filosofia. A falsidade deliberada, a pura mentira desempenha o seu papel apenas no domínio dos enunciados factuais; e parece significativo, ou melhor estranho que, no longo debate centrado sobre o antagonismo entre a verdade e a política, desde Platão até Hobbes, aparentemente, ninguém tenha acreditado que a mentira organizada, tal como a conhecemos hoje em dia, tenha podido ser uma arma eficaz contra a verdade.

Provavelmente nenhuma época passada foi mais tolerante do que a nossa quanto a opiniões tão diversas sobre questões religiosas ou filosóficas, mas quando se trata de verdades de facto que colidem com o lucro ou o prazer de um determinado grupo são encaradas, nos dias de hoje, com uma hostilidade nunca vista em alguma época passada.

Sem dúvida que sempre existiram os segredos de estado, que todo o governo precisa de classificar certas informações e de as ocultar do conhecimento público, e que os que revela segredos autênticos sempre foram considerados como traidores. Porém não è com isso que me preocupo aqui. Os factos que tenho em vista são do conhecimento público e, apesar disso, o público que os conhece pode com êxito e muitas vezes espontaneamente transformar em tabu a sua discussão pública, lidando com eles como se fossem aquilo que não são, isto é, segredos.

Mesmo na Alemanha de Hitler e na Rússia de Estaline era mais perigoso falar de campos de concentração e de extermínio cuja existência não era nenhum segredo, do que criticar o racismo, o anti-semitismo ou o comunismo.

Encarada do ponto de vista da política, a verdade tem um carácter despótico. Daí que seja odiada por tiranos que temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não são capazes de monopolizar; e desfruta de um estatuto relativamente precário para a perspectiva dos governos que se baseiam no consentimento e dispensam a coerção.

A marca distintiva das verdades de facto é que o seu contrário não é nem o erro nem a ilusão nem a opinião que, em si mesmas, não põem em causa a veracidade dos seus defensores, mas a falsidade deliberada ou mentira.

Hannah Arendt (adaptação)

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