terça-feira, 29 de agosto de 2006

OUTRAS MENTES

"Existe um tipo especial de cepticismo que continua a ser um problema mesmo que admitas que a tua mente não é a única coisa que existe - e que o mundo físico que pensas ver e sentir à tua volta, incluindo o teu próprio corpo, existe realmente. É o cepticismo quanto à natureza ou até quanto à existência de mentes ou experiências diferentes da tua.
Que sabes realmente sobre aquilo que se passa na mente de qualquer pessoa? É claro que só observas os corpos das outras criaturas, incluindo os das pessoas. Observas aquilo que fazem, escutas aquilo que dizem e os outros sons que produzem, vês como respondem ao ambiente que as rodeia - quais as coisas que as atraem e quais as que as repugnam, aquilo que comem e assim sucessivamente. Também podes abrir outras criaturas, observar o interior dos seus corpos e comparar mesmo a sua anatomia com a tua.
Mas nada disto te dará acesso directo às suas experiências, pensamentos e sentimentos. As únicas experiências que podes realmente ter são as tuas próprias: se acreditas em alguma coisa acerca da vida mental de outras pessoas, só fazes com base na observação da sua constituição física e dos seus comportamentos.
Tomemos um exemplo simples: quando comes gelado de chocolate com um amigo, como sabes que o teu gelado e o do teu amigo têm o mesmo sabor para ele e para ti? Podes provar o gelado dele, mas o facto de ter o mesmo sabor que o teu apenas quer dizer que para ti o sabor é o mesmo: não tiveste nenhuma experiência do sabor que o gelado tem para ele. Parece que não há qualquer maneira de comparar directamente as experiências gustativas de ambos.
Bem, podes dizer que, uma vez que se trata de dois humanos e que ambos podem distinguir diferentes sabores de gelados - por exemplo, ambos podem distinguir de olhos fechados o sabor do chocolate do sabor da baunilha -, é provável que as experiências gustativas de ambos sejam semelhantes. Mas como podes sabê-lo? A única conexão que alguma vez observaste entre uma qualidade de gelado e um sabor foi no teu próprio caso; portanto, que razões tens para pensar que nos outros seres humanos se verificam correlações similares? Não será igualmente consistente com todos os dados disponíveis que o chocolate lhe sabe como a baunilha a ti e vice-versa?
A mesma questão pode ser colocada quanto a outros tipos de experiências. Como sabes que o teu amigo não vê as coisas vermelhas tal como tu vês as amarelas? É claro que, se lhe perguntares qual é a cor de uma boca-de-incêndio, te responderá que é vermelha, como o sangue e não amarela, como um dente de leão, mas isso acontece porque ele, tal como tu, usa a palavra vermelho para a cor que vê nas bocas-de-incêndio e no sangue, seja qual for essa cor. Talvez seja a cor a que tu chamas amarela, ou aquela a que chamas azul, até mesmo uma cor que nunca viste e que nem sequer podes imaginar.
Para o negares tens de apelar ao pressuposto de que as experiências de sabor e de cor estão uniformemente correlacionadas com certos estímulos físicos dos órgãos dos sentidos, independentemente da pessoa que recebe tais estímulos. Mas o céptico diria que não possuis quaisquer dados que apoiem este pressuposto e que, devido ao tipo de pressuposto em causa, não poderias de modo algum ter quaisquer dados a seu favor. A única coisa que podes observar é a correlação que ocorre no teu próprio caso.
Face a este argumento, poderás começar por conceder que neste caso existe um certo grau de incerteza. A correlação entre os estímulos e a experiência poderá não ser exactamente a mesma em todas as pessoas: poderá haver, para duas pessoas diferentes, ligeiras distinções entre as experiências de cor ou sabor de uma mesma qualidade de gelado. Na realidade, uma vez que as pessoas são fisicamente diferentes umas das outras, este facto não seria surpreendente. Mas talvez possas dizer que a diferença entre as experiências não poderá ser muito radical, porque senão já nos teríamos apercebido disso. Por exemplo, o gelado de chocolate não pode ter para o teu amigo o mesmo sabor que um limão tem para ti, pois faria caretas sempre que comesse um gelado de chocolate.
Repara, no entanto, que esta tese pressupõe outra correlação que varia de pessoa para pessoa: uma correlação entre a experiência interna e um certo tipo de reacções observáveis. Mas a mesma questão se levanta neste caso. Já observaste a conexão entre fazer caretas e o sabor a que, no teu caso, chamas amargo: Mas como sabes que essa conexão existe nas outras pessoas? Provavelmente, aquilo que leva o teu amigo a fazer caretas é uma experiência semelhante àquela que tens quando comes cereais ao pequeno-almoço.
Se continuarmos a fazer este tipo de perguntas persistentemente, passaremos de um cepticismo moderado e inofensivo acerca de saber se o gelado de chocolate sabe exactamente ao mesmo a ti e ao teu amigo para um cepticismo muito mais radical acerca de saber se existe alguma semelhança entre as tuas experiências e as do teu amigo. Como sabes que ele tem exactamente uma experiência do tipo a que tu chamas sabor quando põe alguma coisa na boca? Tanto quanto sabes, a experiência dele pode ser aquilo a que tu chamarias um som - ou talvez seja diferente de tudo o que alguma vez experimentaste ou de tudo o que possas imaginar.
Se continuarmos a seguir este caminho, seremos finalmente conduzidos ao mais radical dos cepticismos acerca das outras mentes. Como sabes que o teu amigo é consciente? Como sabes que há outras mentes para além da tua?
O único exemplo que já observaste de uma correlação entre mente, comportamento, anatomia e condições físicas é o teu. Mesmo que as outras pessoas e animais não tivessem quaisquer experiências, nem vida mental interna de qualquer tipo, mas fossem apenas máquinas biológicas elaboradas, teriam para ti a mesma aparência. Portanto, como sabes que não são assim de facto? Como sabes que os seres que te rodeiam não passam de robots sem mente? Nunca viste as suas mentes - nem poderias -, e todo o seu comportamento físico podia ser produzido unicamente por causas físicas. Talvez os teus familiares e vizinhos, o teu cão e o teu gato, não tenham qualquer tipo de experiências internas. Se assim for, nunca conseguirás descobri-lo.
Não podes sequer apelar para o comportamento deles, incluindo aquilo que dizem - porquanto isso pressupõe que existe uma conexão entre o seu comportamento externo e a sua experiência interna, tal como acontece contigo, e isso é precisamente o que não sabes.
Considerar a hipótese de nenhuma das pessoas à tua volta ser consciente produz uma sensação inquietante. Por um lado, esta hipótese parece ser concebível e nenhuns dados que, possivelmente, possas ter podem excuí-la decisivamente. Por outro lado, trata-se de algo que não podes realmente acreditar ser possível: a tua convicção de que há mentes nesses corpos, visão para lá desses olhos, audição nesses ouvidos, etc., é instintiva. Todavia, se a sua força vem do instinto, será mesmo conhecimento? Uma vez que admites a possibilidade de a crença na existência de outras mentes ser um erro, não precisarás de algo mais seguro para justificares a tua adesão a essa crença?
Há outro aspecto nesta questão que vai completamente no sentido oposto.
Geralmente, acreditamos que os outros seres humanos são conscientes, e quase toda a gente acredita que os outros mamíferos e as aves são também conscientes. Mas as pessoas nem sempre concordam sobre se os peixes, ou os insectos, as minhocas e as alforrecas, são conscientes. As pessoas têm ainda mais dúvidas sobre se os animais unicelulares, como as amebas e as paramécias, têm experiências conscientes, ainda que essas criaturas reajam claramente a estímulos de diversos tipos. A maior parte das pessoas acredita que as plantas não são conscientes, e quase ninguém acredita que as pedras, ou os lenços de papel, ou os automóveis, ou os lagos das montanhas, ou os cigarros, sejam conscientes. Para tomar outro exemplo biológico, a maioria de nós diria, se pensássemos nisso, que as células individuais que compõem os nossos corpos não têm qualquer experiência consciente.
Como sabemos estas coisas todas? Como sabes que, quando cortas um ramo de uma árvore, isso não a magoa, mas que ela não pode expressar a sua dor porque não pode mover-se? (Ou então talvez ela goste de ser podada.) Como sabes que as células musculares do teu coração não sentem dor ou excitação quando sobes um lanço de escadas a correr? Como sabes que um lenço de papel não sente nada quando te assoas a ele?
E quanto aos computadores? Supõe que os computadores são aperfeiçoados até ao ponto de poderem ser utilizados para controlar robots que se pareçam exteriormente com cães, respondam de uma forma complexa ao ambiente que os rodeia e se comportem em muitos aspectos como os cães, ainda que o seu interior seja apenas uma massa de circuitos e chips de silício. Teríamos alguma maneira de saber se essas máquinas seriam conscientes?
É claro que estes caos são diferentes uns dos outros. Se uma coisa é incapaz de movimento, não pode oferecer qualquer prova comportamental da existência de sentimentos ou percepções. Se não se tratar de um organismo natural, a sua constituição interna será radicalmente diferente da nossa. Mas que fundamentos teremos para pensar que só as coisas que se comportam como nós em pelo menos alguns aspectos e que têm uma estrutura física observável vagamente semelhante à nossa são capazes de ter experiências de qualquer tipo? Talvez as árvores sintam coisas de um modo totalmente diferente do nosso, mas não existe qualquer maneira de podermos descobri-lo, porque, no caso das árvores, não há qualquer possibilidade de podermos descobrir correlações entre a experiência e as manifestações observáveis, ou as condições físicas.
Só poderíamos descobrir tais correlações se pudéssemos observar quer as experiências, quer as manifestações externas em conjunto, mas não existe qualquer via de podermos observar as experiências directamente, excepto no nosso próprio caso. Pela mesma razão, também não existe qualquer possibilidade de observarmos a ausência de quaisquer experiências, nem, consequentemente, a ausência de tais correlações, m qualquer outro caso, excepto no nosso. Não podes dizer que uma árvore não tem experiências olhando para dentro de uma árvore, tal como não podes dizer que uma minhoca tem experiências olhando para dentro dela.
Portanto, a questão é esta: que podes realmente saber sobre a vida consciente neste mundo para além do facto de tu próprio teres uma mente consciente? Será possível que haja muito menos vida consciente do que supões (nenhuma além da tua), ou muito mais (até nas coisas que supões serem inconscientes)?"
Thomas Nagel

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