sábado, 2 de julho de 2011

Excertos de Tese de Rosane Rodrigues (com algumas adaptações, poucas)



Nos centros urbanos devido a fatores como aumento do tráfego automotivo, violência e diminuição de espaços destinados às crianças, as ruas deixam de ser cenário para brincadeiras e trocas sociais uma vez que não é possível estar nelas sem a supervisão de um adulto. Tomaram o seu lugar a televisão, o vídeo-game e as atividades organizadoras do tempo livre infantil, estas últimas utilizadas como solução parental para dois problemas:
1-    As exigências acadêmicas cada vez maiores do mercado de trabalho;
2-    Ter os filhos em segurança enquanto os pais trabalham.

Cada vez mais cedo as crianças vêem seu dia ocupado por uma agenda repleta de compromissos, um cotidiano cada vez mais solitário e fisicamente inativo, com qualidade de vida diminuída na proporção em que a globalização e a padronização dos modos de vida das sociedades aumentam. É nessa perspectiva que se percebe uma sobrevalorização crescente, por parte dos pais do aspecto cognitivo sobre os demais aspectos.

O excesso de preocupação com o aspecto intelectual produz uma geração de crianças que Neto (1994, 2003) caracterizou como “intelectualmente ativas e corporalmente passivas”, o que segundo o autor deve despertar a atenção dos especialistas da educação e da saúde devido à sabida necessidade de atividade física na criação e desenvolvimento de hábitos e estilos de vida saudáveis. Não se sabe bem ao certo quais serão as consequências desta mudança estrutural da família e dos modos de vida, estudos apontam para um significativo aumento das doenças crônicas devido à diminuição da atividade física das crianças (Macoby, 2000; Mello et al., 2004).
(…)

O sistema educacional, sob o ponto de vista do capitalismo, é dirigido pela economia de mercado, sendo responsável pela formação do novo tipo de trabalhador exigido: mais competitivo, individualista, flexível e capaz de se adaptar às mudanças, necessita de pessoas que saibam trabalhar em grupo, mas para competir.

A escola quando produz capacidade para o trabalho produz uma mercadoria como outra qualquer. Illich (1985) afirma que a escola se transformou em “um processo planejado que prepara o homem para um mundo planejado”. Assim, a escola hoje é vendida como um produto aos seus consumidores (pais e alunos), está pautada numa educação que tem como intenção o sucesso futuro.

É essa mercadoria que supostamente proporcionará ao indivíduo a oportunidade de ser um bom profissional, ter melhores condições de vida. Foi difundida a ideia de que a escolarização é o único meio de condução da vida, havendo a crença de que apenas através da educação formal haverá uma possibilidade de ascensão social. Resultado disso é que a família, com vistas no futuro de seus membros, deixa que a escola os oriente sobre o modo de como cuidar e educar seus filhos, consagrando-a como fonte imprescindível na vida das pessoas. Tunes et al. (2004) através de entrevistas com grupos de mães, efetuadas em algumas cidades do Brasil, verificaram que as mães atribuíam muito valor ao processo de escolarização e concebiam a infância com ênfase em etapas de aquisições futuras, com forte orientação da vida da criança para o futuro. (…)

As AE podem ser consideradas “fenômenos educativos que estão ligados à escolarização” (Coridian, 2003), fruto do que Illich (1985) chamou de “mito do consumo interminável” de serviços da escola, isto é, o sistema educacional impõe graus de estudo intermináveis para as pessoas obterem sucesso, valoriza-se cada vez mais a especialização do ensino e o aumento do tempo na escola. Neste sentido tudo que aumente as possibilidades de os filhos obterem melhores resultados, interessa aos pais (Coridian, 2003). Em razão disso as famílias preocupam-se que seus filhos aprendam idiomas, informática, dança, visando ampliar-lhes o conhecimento, aumentando assim as chances de serem bem sucedidos na vida.

Esta preocupação com o futuro profissional dos filhos gerou o que Coridian (2003) denominou “mercado da angústia”, ou seja, o receio do fracasso escolar dos filhos, impulsiona os pais a consumirem todo tipo de produto que possa aumentar as chances de sucesso escolar: Livros, CD roms, jogos educativos, aulas particulares, cursos de desenho… Na visão de Neto (1994) estas atividades que ocorrem fora do sistema formal de ensino, são verdadeiras “escolas paralelas” e são responsáveis pela formação da “agenda” das crianças.

A prática de actividades extracurriculares está relacionada com a angústia dos pais em relação ao futuro dos filhos. Na sociedade competitiva contemporânea, a família e a escola preocupam-se não apenas com a educação das crianças, mas, sobretudo, em prepará-las para o competitivo mercado de trabalho, pois elas não são vistas pelo que são, mas sim como “pessoas que serão” (Qvortrup, 2000) e a formação é valorizada em detrimento das relações espontâneas entre as gerações (Mollo-Bouviere, 2005).

Alia-se a isso as modificações ocorridas nas instâncias tempo e espaço. Devido a transformações nas relações com o trabalho, ocorre uma divisão destas estruturas. O tempo antes cíclico e repetitivo, regido pelas estações do ano, agora divide-se em tempo de trabalho e tempo livre, sendo que ao tempo de trabalho é debitado um valor mercantil. Esta divisão é responsável pelo aparecimento da necessidade de gestão e uso do tempo das famílias. Ocorre também a separação do lugar em que se vive daquele em que se trabalha, o que provoca profundas modificações no quotidiano da humanidade, alterando significativamente o modo de vida das pessoas.

A rua converte-se em lugar de passagem e trânsito, perde a sua função socializadora e torna-se perigosa demais para que as crianças possam circular livremente por elas. A cidade segrega todos os que não estejam incluídos no grupo dos que produzam trabalho e dinheiro. A infância enclausura-se entre muros: das escolas, das casas, dos condomínios, dos clubes e exige-se dela cada vez mais e mais cedo que adquira competências que lhe garantam uma posição de destaque na vida futura.

Do “enclausuramento da infância” (Ariès, 1986), surgem instituições de controlo e regulação do tempo infantil. Estudiosos do desenvolvimento da criança, possuem opiniões distintas (Neto 1994, 2003; Gils, 1996, 2004; Mahoney et al., 2006; Eccles et al., 2003) à ocupação do tempo livre por actividades que de certa forma estão ligadas a este enclausuramento e estão a impedir oportunidades de jogo espontâneo da criança. A criança do terceiro milénio tem acesso à internet, vê televisão, tem contacto precoce com temas como violência, clonagem, terrorismo. Tem amigos virtuais e encontra-se com eles muito mais vezes do que com os reais, compra brinquedos ao invés de construí-los e usa muito mais os dedos do que as pernas.

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