quinta-feira, 14 de julho de 2011

A Crise da Educação (Hannah Arendt, 1957)

A Crise da Educação (Hannah Arendt, 1957)

Na América, a crise atual resulta do reconhecimento do carácter destrutivo destes três pressupostos e do esforço desesperado que está a ser feito para reformar todo o sistema de educação, isto é, para o transformar completamente. Mas, ao fazer isto, o que se está efetivamente a fazer — com exceção dos planos relativos a um aumento imediato das facilidades de ensino das ciências físicas e da tecnologia — nada mais é do que uma restauração: o ensino será outra vez conduzido com autoridade; nas horas de aula deixar-se-á de jogar e far-se-á de novo trabalho sério; dar-se-á maior importância aos conhecimentos prescritos pelo curriculum do que às atividades extracurriculares. Fala-se mesmo em transformar o atual curriculum de formação de professores, de forma a que os próprios professores tenham que aprender alguma coisa antes de serem colocados junto das crianças. Não se justifica estarmos aqui a equacionar as reformas propostas, aliás ainda em discussão, e que apenas têm interesse para a América.

Acresce que não tenho capacidade para discutir as questões mais técnicas — ainda que, a longo prazo, essas possam ser as as mais importantes — acerca de como reformar os curricula da escola primária e secundária em todos os países, de modo a adaptá-los às necessidades inteiramente novas do mundo atual. Há, porém, uma dupla questão que é para mim importante: que aspectos do mundo atual e da sua crise se revelaram efetivamente na crise da educação, isto é, quais são as verdadeiras razões pelas quais, durante décadas, foi possível falar e agir em tão flagrante contradição com o senso comum? E, em segundo lugar, que podemos aprender com esta crise acerca da essência da educação, não no sentido em que podemos sempre aprender com os nossos erros o que não se deve fazer, mas no sentido da reflexão sobre o papel que a educação desempenha em todas as civilizações, ou seja, da obrigação que a existência de crianças coloca a todas as sociedades humanas. Começaremos com esta segunda questão.

III
Uma crise na educação suscitaria sempre graves problemas mesmo se não fosse; como no caso presente, o reflexo de uma crise muito mais geral e da instabilidade da sociedade moderna. E isto porque a educação é uma das atividades mais elementares e mais necessárias da sociedade humana a qual não permanece nunca tal como é mas antes se renova sem cessar pelo nascimento, pela chegada de novos seres humanos. Acresce que, esses recém-chegados não atingiram a sua maturidade, estão ainda em devir. Assim, a criança, objecto da educação, apresenta-se ao educador sob um duplo aspecto: ela é nova num mundo que lhe é estranho, e ela está em devir. Ela é um novo ser humano e está a caminho de devir um ser humano. Este duplo aspecto nem é evidente nem se aplica às formas da vida animal. Corresponde a um duplo modo de relação — a relação ao mundo, por um lado, e, por outro, a relação à vida. A criança partilha o estado de devir com todos os seres vivos. Se se considera a vida e a sua evolução, a criança é um ser humano em devir, tal como o gatinho é um gato em devir. Mas a criança só é nova em relação a um mundo que já existia antes dela, que continuará depois da sua morte e no qual ela deve passar a sua vida. Se a criança não fosse um recém chegado ao mundo dos homens mas somente uma criatura viva ainda não desenvolvida, a educação seria unicamente uma das funções da vida. Então, ela consistiria apenas na manutenção da vida e naquelas tarefas de ensino e prática de vida que todos os animais assumem em relação aos seus filhos.

No entanto, pela concepção e pelo nascimento, os pais humanos, não apenas dão vida aos seus filhos como, ao mesmo tempo, os introduzem no mundo. Pela educação, os pais assumem por isso uma dupla responsabilidade — pela vida e pelo desenvolvimento da criança, mas também pelo continuidade do mundo. Estas duas responsabilidades não coincidem de modo algum e podem mesmo entrar em conflito. Num certo sentido, a responsabilidade de desenvolvimento da criança vai contra a responsabilidade pelo mundo: a criança tem necessidade de ser especialmente protegida e cuidada para evitar que o mundo a possa destruir. Mas, por outro lado, esse mundo tem necessidade de uma proteção que o impeça de ser devastado e destruído pela vaga de recém chegados que, sobre si, se espalha a cada nova geração.

Porque a criança tem necessidade de ser protegida contra o mundo, o seu lugar tradicional é no seio da família. É lá que, ao abrigo de quatro muros, os adultos regressam cada dia do mundo exterior e se unem na segurança da vida privada. Esses quatro muros, ao abrigo dos quais se desenrola a vida familiar, constituem uma proteção contra o mundo e, em particular, contra o aspecto público do mundo. Delimitam um lugar seguro sem o qual nenhuma coisa viva pode prosperar. Isto é válido, não somente para a vida da criança, mas também para a vida em geral — por todo o lado em que esta é constantemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança privadas, a sua qualidade vital é destruída. No mundo público, comum a todos, as pessoas contam, e também conta a obra, quer dizer, a obra produzida pelas nossas mãos, a obra pela qual cada um de nós contribui para o nosso mundo comum. Mas, aí, a vida enquanto vida não conta. O mundo não se pode interessar por ela e ela tem que se esconder e proteger do mundo.

Tudo o que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge da obscuridade. Por mais forte que seja a sua tendência para se orientar para a luz, aquilo que é vivo necessita da segurança da obscuridade para alcançar a maturidade. Talvez esta seja a razão pela qual os filhos de pais famosos geralmente se saem mal. A celebridade penetra nas quatro paredes, invade o espaço privado, trazendo consigo, em especial nas condições atuais, a luz implacável do domínio público que invade toda a vida privada de tal forma que as crianças deixam de ter um lugar seguro em que possam crescer. É exatamente esta mesma destruição do espaço de vida real que ocorre quando se procuram transformar as próprias crianças numa espécie de mundo. Entre esses grupos homogéneos de crianças emerge então uma espécie de vida pública e, independentemente do facto de essa vida não ser real e de toda essa tentativa ser uma espécie de fraude, permanece o facto desastroso de as crianças — isto é, os seres humanos em processo de devir, ainda não completados — serem forçadas, por essa razão, a expor-se à luz de uma existência pública.

Que a educação moderna, na medida em que tenta estabelecer um mundo próprio das crianças, destrói as condições necessárias para o seu desenvolvimento e crescimento, é algo que parece óbvio. Porém, é de facto estranho que esse pernicioso procedimento possa ser o resultado da educação moderna, tanto mais que essa educação declarava ter por único objectivo servir a criança e se rebelava contra os métodos do passado justamente por eles não tomarem na devida conta a natureza profunda e as necessidades da criança. O «século da criança», como lhe podemos chamar, pretendia emancipar a criança e libertá-la dos padrões de vida retirados do mundo dos adultos. Como foi então possível que as mais elementares condições da vida, necessárias para o crescimento e desenvolvimento da criança, tivessem sido ignoradas ou, simplesmente, não tivessem sido reconhecidas como tal? Como pôde acontecer que a criança fosse exposta àquilo que, mais do que qualquer outra coisa, caracteriza o mundo dos adultos, quer dizer, o seu aspecto público, e isto no preciso momento em que se tinha tomado consciência de que o erro de toda a educação passada tinha consistido em considerar a criança como nada mais que um pequeno adulto?

A razão para este estranho estado de coisas não tem diretamente a ver com a educação. Deve antes ser procurada nos juízos e nos prejuízos sobre a natureza vida privada e do mundo público, na sua mútua relação característica da sociedade moderna desde o início dos tempos modernos e que os educadores aceitaram quando — relativamente tarde — decidiram modernizar a educação com base nessas evidências, sem se darem conta das consequências que elas teriam sobre a vida das crianças. É particularidade da sociedade moderna, de nenhum modo evidente, considerar a vida, quer dizer, a vida na terra dos indivíduos e das famílias, como o maior dos bens. É por essa razão que, ao contrário de todos os séculos precedentes, a sociedade moderna emancipou a vida, e todas as atividades que têm a ver com a sua preservação e enriquecimento, do segredo da intimidade para a expor à luz do mundo público. É este o verdadeiro significado da emancipação das mulheres e dos trabalhadores, não certamente enquanto pessoas, mas na medida em que preenchem uma função no processo vital da sociedade.

Ora, os últimos seres a serem tocados por este processo de emancipação foram as crianças e aquilo que para as mulheres e para os trabalhadores significou uma verdadeira libertação — porque, neste caso, não era apenas de trabalhadores e de mulheres que se tratava mas também de pessoas que, desse modo, podiam legitimamente pretender aceder ao mundo público, isto é, passavam a ter o direito de o ver e de aí serem vistas, de falar e de serem ouvidas — constituiu um abandono e uma traição no caso das crianças que estão ainda num estádio em que o simples facto de viver e crescer tem mais importância que o fator da personalidade. Quanto mais completamente a sociedade moderna suprime a diferença entre o que é público e o que é privado, entre o que só se pode desenvolver à sombra e o que reclama ser mostrado a todos na plena luz do mundo público, dito de outro modo, quanto mais a sociedade moderna introduz, entre o privado e o público, uma esfera social na qual o privado é tornado público e vice-versa, mais difíceis se tornam as coisas para as crianças, as quais, por natureza, necessitam da segurança de um abrigo para poder amadurecer sem perturbações.

Por mais grave que seja o desrespeito que a educação moderna manifesta pelas condições do crescimento vital, a verdade é que tal não é de modo algum intencional. O objetivo central de todos os esforços da educação moderna tem sido o bem-estar da criança. Facto que não passa a ser menos verdadeiro se, ao contrário do que se esperava, os esforços feitos nem sempre conseguiram promover o bem-estar da criança. A situação é inteiramente diferente quando a educação não se dirige às crianças mas aos jovens, aos recém chegados e estrangeiros, àqueles que nasceram num mundo já existente mas que não conhecem.

Essas tarefas são então, primária ainda que não exclusivamente, da responsabilidade das escolas. São as escolas que têm que ver com o ensino e com a aprendizagem. O fracasso neste campo é hoje o mais grave problema na América. Procuremos ver o que é que lhe está subjacente.

Normalmente é na escola que a criança faz a sua primeira entrada no mundo. Ora, a escola é, de modo algum, não o mundo, nem deve pretender sê-lo. A escola é antes a instituição que se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo, de forma a tomar possível a transição da família para o mundo. Não é a família mas o Estado, quer dizer, o mundo público, que impõe a escolaridade. Desse modo, relativamente à criança, a escola representa de certa forma o mundo, ainda que o não seja verdadeiramente. Nessa etapa da educação, uma vez mais, os adultos são responsáveis pela criança. A sua responsabilidade, porém, não consiste tanto em zelar para que a criança cresça em boas condições, mas em assegurar aquilo que normalmente se designa por livre desenvolvimento das suas qualidades e características. De um ponto de vista geral e essencial, é essa a qualidade única que distingue cada ser humano de todos os outros, qualidade essa que faz com que ele não seja apenas mais um estrangeiro no mundo, mas alguma coisa que nunca antes tinha existido.

Na medida em que a criança não conhece ainda o mundo, devemos introduzi-a nele gradualmente; na medida em que a criança é nova, devemos zelar para que esse ser novo amadureça, inserindo-se no mundo tal como ele é. No entanto, face aos jovens, os educadores fazem sempre figura de representantes de um mundo do qual, embora não tenha sido construído por eles, devem assumir a responsabilidade, mesmo quando, secreta ou abertamente, o desejam diferente do que é. Esta responsabilidade não é arbitrariamente imposta aos educadores. Está implícita no facto de os jovens serem introduzidos pelos adultos num mundo em perpétua mudança. Quem se recusa a assumir a responsabilidade do mundo não deveria ter filhos nem lhe deveria ser permitido participar na sua educação.

No caso da educação, a responsabilidade pelo mundo toma a forma da autoridade. A autoridade do educador e as competências do professor não são a mesma coisa. Ainda que não haja autoridade sem uma certa competência, esta, por mais elevada que seja, não poderá jamais, por si só, engendrar a autoridade. A competência do professor consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de transmitir esse conhecimento aos outros. Mas a sua autoridade funda-se no seu papel de responsável pelo mundo. Face à criança, é um pouco como se ele fosse um representante dos habitantes adultos do mundo que lhe apontaria as coisas dizendo: «Eis aqui o nosso mundo!» Todos sabemos como as coisas hoje estão no que diz respeito à autoridade. Seja qual for a atitude de cada um de nós relativamente a este problema, é óbvio que a autoridade já não desempenha nenhum papel na vida pública e privada — a violência e o terror exercidos pelos países totalitários nada têm a ver com a autoridade — ou, no melhor dos casos, desempenha um papel altamente contestado.

No essencial, significa isto que se não pede já a ninguém, ou se não confia já a alguém, a responsabilidade do que quer que seja. É que, em todo o lado onde a verdadeira autoridade existia, ela estava unida à responsabilidade pelo curso das coisas no mundo. Nesse sentido, se se retira a autoridade da vida política e pública, isso pode querer significar que, daí em diante, passa a ser exigida a cada um uma igual responsabilidade pelo curso do mundo. Mas, isso pode também querer dizer que, consciente ou inconscientemente, as exigências do mundo e a sua necessidade de ordem estão a ser repudiadas; que a responsabilidade pelo mundo está, toda ela, a ser rejeitada, isto é, tanto a responsabilidade de dar ordens como a de lhes obedecer. Não há dúvida de que, na moderna perda de autoridade, estas intenções desempenham ambas o seu papel e têm muitas vezes trabalhado juntas, de forma simultânea e inextricável.

Ora, na educação esta ambiguidade relativamente à atual perda de autoridade não pode existir. As crianças não podem recusar a autoridade dos educadores, como se estivessem oprimidas por uma maioria adulta — ainda que, efetivamente, a prática educacional moderna tenha tentado, de forma absurda, lidar com as crianças como se se tratasse de uma minoria oprimida que necessita de ser libertada. Dizer que os adultos abandonaram a autoridade só pode portanto significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo em que colocaram as crianças.
Há evidentemente uma estreita conexão entre a perda de autoridade na vida pública e privada e. o seu desaparecimento nos domínios prépolíticos da família e da escola. Quanto mais, na esfera pública, a desconfiança na autoridade se toma radical, maior é naturalmente a probabilidade de que a esfera privada permaneça imune. A isto se junta um facto adicional — e provavelmente decisivo. O facto de que, desde tempos imemoriais, fomos habituados, pela nossa tradição de pensamento político, a ver a autoridade dos pais sobre os filhos e dos professores sobre os alunos como o modelo para compreender a autoridade política. Ora, é precisamente nesse modelo, cujas raízes se estendem até Platão e Aristóteles, que reside a origem da extraordinária ambiguidade do conceito de autoridade em política.

Em primeiro lugar um tal conceito tem por base uma superioridade absoluta, superioridade essa que
nunca pode existir entre adultos e que, do ponto de vista da dignidade humana, nunca deveria existir. Em segundo lugar, esse modelo infantil de autoridade está fundado numa superioridade puramente temporal o que, portanto, o toma autocontraditório se aplicado a relações que, por natureza, não são temporais, como é o caso das relações entre governantes e governados. Assim, a natureza desta questão — quer dizer, tanto da presente crise de autoridade como do nosso pensamento político tradicional — implica que a perda de autoridade que se desencadeou na esfera política não alastre para a esfera privada. Não é certamente por acaso que o lugar no qual a autoridade política foi pela primeira vez posta em causa, isto é, a América, seja o lugar onde a moderna crise da educação se faça sentir mais fortemente.

Na verdade, esta perda geral da autoridade dificilmente poderia encontrar uma expressão mais radical do que no seu alastramento para a esfera pré-política, instância na qual a autoridade parece ser ditada pela própria natureza, independente de todas as mudanças históricas e condicionalismos políticos. Por outro lado, a forma mais clara que o homem moderno tem ao seu dispor para manifestar o seu descontentamento em relação ao mundo e o seu desagrado relativamente às coisas tal como elas são consiste na recusa de, relativamente aos seus filhos, assumir a responsabilidade pelo mundo. No fundo, é como se os pais dissessem diariamente aos seus filhos: «Neste mundo, nem mesmo nós estamos seguros em nossa casa. Como devemos mover-nos no mundo, que devemos saber, que competências devemos adquirir, são mistérios também para nós. Vocês devem pois procurar desenvencilhar-se o melhor possível por vós próprios. Em circunstância alguma nos podem pedir contas. Somos inocentes e lavamos as mãos quanto ao vosso destino.»

Como é óbvio, esta atitude nada tem a ver com o desejo revolucionário de uma nova ordem no mundo — Novus Ordo Seculorum — que, em tempos, animou a América. É antes um sintoma dessa indiferença moderna relativamente ao mundo que se pode observar diariamente em toda a parte mas que, de forma especialmente radical e desesperada, se manifesta nas atuais condições da nossa sociedade de massas. E verdade que não foi apenas na América que as modernas experiências educativas atingiram dimensões verdadeiramente revolucionárias, o que, até certo ponto, veio aumentar a dificuldade de reconhecer a situação com clareza e está na origem de um certo grau de confusão na discussão do problema. É que, contrariamente a todos os comportamentos de tipo revolucionário, há um fato que permanece indiscutível: nunca a América, enquanto realmente animada por esse espírito, sonhou iniciar a nova ordem por intermédio da educação mantendo-se, pelo contrário, conservadora nessa matéria.

Evitemos os mal-entendidos: penso que o conservadorismo, tomado enquanto conservação, faz parte da essência mesma da atividade educativa cuja tarefa é sempre acarinhar e proteger alguma coisa — a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o antigo, o antigo contra o novo. A própria responsabilidade alargada pelo mundo que a educação assume implica, como é óbvio, uma atitude conservadora. Mas, isto só é valido para o domínio da educação, ou melhor, para as relações entre crescidos e crianças e, de modo algum para o domínio político, onde agimos sempre entre e com adultos ou iguais.

Em política, a atitude conservadora — que aceita o mundo tal como ele é unicamente luta por preservar o status quo — só pode levar à destruição. E isto porque, nas suas grandes linhas como nos seus detalhes, o mundo está irrevogavelmente condenado à ação destrutiva do tempo, a menos que os humanos estejam determinados a intervir, a alterar, a criar o novo. As palavras de Hamlet, «o tempo está fora dos gonzos. Oh! sorte maldita, que nos fez nascer para restabelecer o seu curso», são verdadeiras para cada nova geração, ainda que, desde o início do nosso século, porventura tenham adquirido uma ainda validade maior do que anteriormente.

No fundo, estamos sempre a educar para um mundo que já está, ou está a ficar, fora dos seus gonzos. Esta é a situação básica do homem. O mundo é criado por mãos humanas para servir de casa aos humanos durante um tempo muito limitado. Porque o mundo é feito por mortais, ele é perecível. Porque os seus habitantes estão continuamente a mudar, o mundo corre o risco de se tomar tão mortal como eles. Para preservar o mundo contra a mortalidade dos seus criadores e habitantes, é necessário constantemente restabelecê-lo de novo. O problema é saber como educar de forma a que essa recolocação continue a ser possível, ainda que, de forma absoluta, nunca possa ser assegurada. A nossa esperança reside sempre na novidade que cada nova geração traz consigo. Mas, precisamente porque só nisso podemos basear a nossa esperança, destruímos tudo se tentarmos controlar o novo que nós, os velhos, pretendemos desse modo decidir como deverá ser. É justamente para preservar o que é novo e revolucionário em cada criança que a educação deve ser conservadora. Ela deve proteger a novidade e introduzi-la como uma coisa nova num mundo velho, mundo que, por mais revolucionárias que sejam as suas ações, do ponto de vista da geração seguinte, é sempre demasiado velho e está sempre demasiado próximo da destruição.

IV
A verdadeira dificuldade da educação moderna reside pois no facto de, para lá de todas as considerações da moda sobre um novo conservadorismo, ser hoje extremamente difícil garantir esse mínimo de conservação e de atitude de conservação sem a qual a educação não é simplesmente possível. E há boas razões para isso. A crise de autoridade na educação está intimamente ligada com a crise da tradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo o que é passado. Para o educador, este aspecto é especialmente difícil uma vez que é a ele que compete estabelecer a mediação entre o antigo e o novo, razão pela qual a sua profissão exige de si um extraordinário respeito pelo passado. Ao longo dos séculos, isto é, durante o período da civilização romano-cristã, o educador nunca teve necessidade de tomar consciência desta sua qualidade especial. A reverência relativamente ao passado era parte essencial da estrutura romana de pensamento, estrutura essa que o cristianismo não alterou nem suprimiu antes estabeleceu sobre diferentes fundamentos.

Pertencia à essência da atitude romana (ainda que o mesmo se não possa dizer de todas as civilizações ou sequer da civilização ocidental no seu conjunto) considerar o passado enquanto passado como um modelo; em qualquer caso, tomar os antepassados como exemplos orientadores para os seus descendentes; acreditar que toda a grandeza reside no que foi e, portanto, que a velhice é a idade da maior realização humana; que o velho, na medida em que é já quase um antepassado, pode servir como modelo para os vivos. Ora, tudo isto está em contradição, não apenas com o nosso mundo e com os tempos modernos a partir do Renascimento, mas também, por exemplo, com a atitude grega relativamente à vida. Quando Goethe diz que envelhecer é «afastar-se gradualmente do mundo das aparências», o seu comentário está imbuído do espírito dos Gregos, para quem ser e aparecer coincidem. A atitude romana seria a de que é precisamente ao envelhecer e ao desaparecer lentamente da comunidade dos mortais que o homem alcança a sua forma de ser mais característica, mesmo se, em relação ao mundo das aparências, estiver em processo de desaparecimento. É que, para o espírito romano, só então o homem se aproxima desse modo de existência em que pode passar a ser uma autoridade para outros.

Com o imperturbado fundo de uma tal tradição, na qual a educação tem uma função política (o que constitui um caso único), é de facto relativamente fácil fazer o que deve ser feito em matéria de educação sem sequer parar para refletir sobre o que se está realmente a fazer. O ethos específico do princípio educativo está então em completo acordo com as convicções éticas e morais da sociedade no seu conjunto. Educar, nas palavras de Políbio, é apenas «permitir a alguém ser digno dos seus antepassados», tarefa na qual o educador pode ser um «par na discussão» e um «par no trabalho» porque, também ele, ainda que num nível diferente, passou a sua vida com os olhos postos no passado. Camaradagem e autoridade são assim, neste caso, dois lados de uma mesma realidade e a autoridade do professor está firmemente fundada na autoridade mais ampla do passado enquanto tal. Hoje, no entanto, já não estamos nesta situação. Faz por isso pouco sentido agir como se ainda aí estivéssemos, ou como se nos tivéssemos afastado, por assim dizer, acidentalmente, da direção correta e fôssemos livres de a ela regressar em qualquer momento.

Isto significa que, no mundo moderno, onde quer que a crise tenha eclodido, não podemos contentar-nos com continuar ou simplesmente voltar atrás. Um tal retrocesso só nos faria regressar à situação em que a crise emergiu. Além disso esse retrocesso seria simplesmente uma repetição ainda que talvez diferente na forma — uma vez que o número de possíveis noções absurdas e caprichosas que podem ser apresentadas como a última palavra em ciência é ilimitado. Por outro lado, a simples e irrefletida perseverança, quer atue no sentido da crise, quer adira à rotina que acredita ingenuamente que a crise não vai fazer submergir a sua esfera particular de vida, apenas pode, porque se rende ao curso do tempo, levar à ruína. Mais precisamente, apenas pode fazer crescer a estranheza face ao mundo que nos ameça já de todos os lados.

A reflexão sobre os princípios da educação deve ter em conta este processo de estranheza face ao mundo. Pode-se mesmo admitir que se está aqui face a um processo automático, desde que se não esqueça que o pensamento e a ação humanos têm o poder de interromper e fazer parar este processo. No mundo moderno, o problema da educação resulta pois do fato de, pela sua própria natureza, a educação não poder fazer economia nem da autoridade nem da tradição, sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efetuar num mundo que deixou de ser estruturado pela autoridade e unido pela tradição. Daqui resulta que, não apenas os professores e os educadores mas também cada um de nós, na medida em que vivemos em conjunto num único mundo com as crianças e os jovens, devemos adotar relativamente a eles uma atitude radicalmente diferente daquela que temos uns com os outros. O domínio da educação deve ser radicalmente separado dos outros domínios, em especial da vida política pública.

Dessa forma, podemos aplicar exclusivamente ao domínio da educação o conceito de autoridade e a atitude relativamente ao passado que lhe são apropriadas mas que, no mundo dos adultos, deixaram de ter validade geral e já não podem pretender voltar a tê-la.

Na prática, a primeira consequência que daqui decorre é a compreensão clara de que a função da escola é ensinar às crianças o que o mundo é e não iniciá-las na arte de viver. Uma vez que o mundo é velho, sempre mais velho do que nós, aprender implica, inevitavelmente, voltar-se para o passado, sem ter em conta quanto da nossa vida será consagrada ao presente. Em segundo lugar, há que perceber que o significado da linha traçada entre crianças e adultos é que não é possível educar adultos e que não se devem tratar as crianças como se fossem adultos. Porém, em circunstância alguma se deve permitir que esta linha se transforme num muro que isole as crianças da comunidade dos adultos, como se elas não vivessem no mesmo mundo e como se a infância fosse um estado humano autónomo, capaz de viver segundo as suas próprias leis. Não há uma regra geral que, em cada caso, permita determinar o momento em que desaparece a linha de demarcação entre a infância e a adultez.

Essa linha varia muitas vezes em função da idade, de país para país, de uma civilização para outra e mesmo de um para outro indivíduo. Mas, diversamente do que acontece com a aprendizagem, a educação deve poder ter um termo previsível. Na nossa civilização, esse momento final coincide, na maior parte dos casos, com a aquisição de um primeiro diploma de grau superior (mais do que com um diploma de fim dos estudos secundários), uma vez que a preparação para a vida profissional nas universidades e institutos técnicos, ainda que tendo a ver com a educação, é no entanto uma espécie de especialização. Enquanto tal, ela não aspira já a introduzir o jovem no mundo como um todo, mas apenas num sector particular e limitado do mundo. Não é possível educar sem ao mesmo tempo ensinar: uma educação sem ensino é vazia e degenera com grande facilidade numa retórica emocional e moral. Mas podemos facilmente ensinar sem educar e podemos continuar a aprender até ao fim dos nossos dias sem que, por essa razão, nos tomemos mais educados. Tudo isto são detalhes que devem ser deixados à atenção dos especialistas e dos pedagogos.

O que nos diz respeito a todos e, consequentemente, não pode ser confiado à pedagogia enquanto ciência especializada, é a relação entre adultos e crianças em geral ou, em termos ainda mais gerais e exatos, a nossa relação com o facto da natalidade: o facto de que todos chegamos ao mundo pelo nascimento e que é pelo nascimento que este mundo constantemente se renova. A educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, mais ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens. A educação é também o lugar em que se decide se se amam suficientemente as nossas crianças para não as expulsar do nosso mundo deixando-as entregues a si próprias, para não lhes retirar a possibilidade de realizar qualquer coisa de novo, qualquer coisa que não tínhamos previsto, para, ao invés, antecipadamente as preparar para a tarefa de renovação de um mundo comum.

Sem comentários: