sábado, 12 de abril de 2008

TEXTO DE REFERÊNCIA - T. KUHN

TEXTO DE REFERÊNCIA

KUHN, Thomas (1977) A Tensão Essencial. Lisboa: Edições 70, 1989, Capítulo 13.

OBJECTIVIDADE, JUÍZO DE VALOR E ESCOLHA TEÓRICA

No penúltimo capítulo de um livro controverso, publicado há quinze anos, fiz considerações sobre as maneiras como os cientistas são levados a abandonar uma teoria ou paradigma outrora aceites em favor de outros. Esses problemas de decisão, escrevi, «não podem resolver-se por provas». Discutir o seu mecanismo é, por conseguinte, falar «de técnicas de persuasão, ou de argumentos e contra-argumentos numa situação em que não pode haver qualquer prova». Nestas circunstâncias, continuei, «a resistência durante toda a vida [a uma teoria nova] ... não é uma violação dos padrões científicos... Embora o historiador sempre possa encontrar homens — Priestley, por exemplo — que não foram razoáveis ao resistir durante tanto tempo como o fizeram, não encontrará um único ponto em que a resistência se torne ilógica ou não científica.» (1) Enunciados deste género levantaram, obviamente, a questão de saber por que razão, na ausência de critérios obrigatórios para a escolha científica, o número de problemas científicos resolvidos e a precisão das soluções de problemas individuais aumentaram tão acentuadamente com a passagem do tempo. Ao confrontar este resultado, esbocei no capítulo final um certo número de características que os cientistas partilham em virtude do treino que lhes faculta a pertença a uma ou outra comunidade de especialistas. Na ausência de critérios capazes de ditar a escolha de cada indivíduo, argumentei, fazemos bem em acreditar no juízo colectivo dos cientistas especializados. «Que melhor critério podia haver», perguntei retoricamente, «do que a decisão do grupo científico?» (2)

Vários filósofos lamentaram observações como esta de uma maneira que continua a surpreender-me. Os meus pontos de vista, dizia-se, fazem da escolha teórica «uma questão de psicologia de massas» (3). Kuhn acredita, disseram-me, que «a decisão de um grupo científico em adoptar um novo paradigma não se pode basear em boas razões de qualquer espécie, factuais ou outras» (4). Os meus críticos afirmam que os debates que rodeiam essas escolhas devem ser para mim «meras exposições persuasivas, sem substância deliberativa» (5). Afirmações deste género manifestam uma incompreensão total, coisa que disse em comunicações dirigidas a outros fins. Mas estes protestos transitórios tiveram efeitos insignificantes, e os mal-entendidos continuam a ser importantes. Concluo que, para mim, é coisa do passado descrever, mais extensamente e com maior acuidade, o que tinha em mente quando proferi afirmações como as que comentei. Se tive relutância em fazer isso no passado, ficou-se a dever em larga medida ao facto de eu ter preferido dedicar a minha atenção a áreas onde os meus pontos de vista divergem com maior acuidade dos pontos de vista correntemente aceites, do que no que respeita à escolha teórica.

Começarei por perguntar: quais são as características de uma boa teoria científica? Entre muitas das respostas usuais, seleccionei cinco, não porque sejam exaustivas, mas porque são individualmente importantes e em conjunto suficientemente variadas para indicar o que está em jogo. Em primeiro lugar, uma teoria deve ser exacta: quer dizer, no seu domínio, as consequências deduzíveis de uma teoria devem estar em concordância demonstrada com os resultados das experimentações e observações existentes. Em segundo lugar, uma teoria deve ser consistente, não só internamente ou com ela própria, mas também com outras teorias correntemente aceites e aplicáveis a aspectos relacionados da natureza. Terceiro, deve ter um longo alcance: em particular, as consequências de uma teoria devem estender-se muito para além das observações, leis ou subteorias particulares, para as quais ela estava projectada em princípio. Quarto, e relacionado de perto com o anterior, deve ser simples, ordenando fenómenos que, sem ela, seriam individualmente isolados e, em conjunto, seriam confusos. Quinto - uma rubrica um tanto ou quanto menos padronizada, mas de especial importância para decisões científicas reais -, uma teoria deve ser fecunda quanto a novas descobertas de investigação: deve desvendar novos fenómenos ou relações anteriormente não verificadas entre fenómenos já conhecidos (6). Estas cinco características - exactidão, consistência, alcance, simplicidade e fecundidade - são todas elas critérios padronizados para a avaliação da adequação de uma teoria. Se não fossem, ter-lhes-ia dedicado muito mais espaço no meu livro, porque concordo inteiramente com a visão tradicional de que elas desempenham um papel, quando os cientistas têm de escolher entre uma teoria estabelecida e uma rival recente. Juntamente com outras do mesmo género, elas fornecem a base partilhada para a escolha teórica.

Não obstante, os homens que devem usar estes critérios encontram habitualmente duas espécies de dificuldades ao escolher, digamos, entre a teoria astronómica de Ptolomeu e a de Copérnico, entre as teorias de combustão do oxigénio e do flogisto, ou entre a mecânica newtoniana e a teoria quântica. Individualmente, os critérios são imprecisos: os indivíduos podem legitimamente diferir quanto à respectiva aplicação em casos concretos. Além disso, quando desenvolvidos em conjunto, mostram repetidamente entrar em conflito uns com os outros; a exactidão pode, por exemplo, ditar a escolha de uma teoria, o alcance pode ditar a escolha da sua rival. Dado que estas dificuldades, sobretudo a primeira, também são relativamente familiares, dedicarei pouco tempo à sua elaboração. Embora a minha argumentação exija que as esclareça brevemente, as minhas considerações começarão a afastar-se das ideias prevalecentes só depois de ter feito essa elaboração.

Começarei pela precisão que, para os fins presentes, inclui supostamente não só a concordância quantitativa, mas também a qualitativa. Em última instância, ela revela-se como o mais decisivo de todos os critérios: em parte, porque é menos equívoco do que os outros, mas especialmente porque os poderes de previsão e explicativos, que dependem dela, são características a que os cientistas não estão dispostos a renunciar. Infelizmente, contudo, as teorias nem sempre se podem discriminar em termos de precisão. O sistema de Copérnico, por exemplo, não era mais exacto do que o de Ptolomeu, até que foi drasticamente revisto por Kepler, mais de sessenta anos depois da morte de Copérnico. Se Kepler ou qualquer outro não tivesse encontrado razões para escolher a astronomia heliocêntrica, esses melhoramentos na exactidão nunca teriam sido feitos e o trabalho de Copérnico podia ter sido esquecido. É natural que a exactidão permita discriminações, mas não de modo que conduzam regularmente a uma escolha inequívoca. A teoria do oxigénio, por exemplo, era universalmente reconhecida como explicando as relações de peso observadas nas reacções químicas, uma coisa que a teoria do flogisto mal tentara fazer anteriormente. Mas a teoria do flogisto, ao contrário da sua rival, podia explicar que os metais eram muito mais semelhantes entre si do que os minerais de que provinham. Uma teoria combinava-se melhor assim com a experiência numa área, e a outra noutra área. Para escolher entre elas com base na precisão, um cientista tem de decidir a área em que a exactidão é mais significativa. Sobre essa questão, os químicos podiam diferir, e assim o fizeram, sem violar nenhum dos critérios antes delineados, ou quaisquer outros ainda a sugerir.

Por mais importante que possa ser, por conseguinte, a exactidão por si mesma raramente ou nunca é um critério suficiente para a escolha teórica. Outros critérios se devem aplicar também, mas não eliminam os problemas. Para ilustrar, selecciono apenas dois - consistência e simplicidade -, e examinarei como funcionam na escolha entre os sistemas heliocêntrico e geocêntrico. Como teorias astronómicas, tanto a de Ptolomeu como a de Copérnico eram internamente consistentes, mas as suas relações com teorias afins noutros campos era muito diferente. A Terra, em posição central e estacionária, era um ingrediente essencial da teoria física recebida, um sólido corpo doutrinário que explicava, entre outras coisas, como caíam as pedras, como funcionavam as bombas de água e por que razão as nuvens se moviam lentamente através do céu. A astronomia heliocêntrica, que exigia o movimento da Terra, era inconsistente com a então existente explicação científica destes e de outros fenómenos terrestres. O critério de consistência, por si, por esta razão, falava inequivocamente a favor da tradição geocêntrica.

A simplicidade, contudo, favoreceu Copérnico, mas só quando avaliada de um modo muito especial. Se, por um lado, os dois sistemas se comparassem em termos do trabalho de cálculo real exigido para prever a posição de um planeta num tempo particular, então revelariam ser substancialmente equivalentes. Tais cálculos eram os que os astrónomos faziam, e o sistema de Copérnico não lhes oferecia quaisquer técnicas de economia de trabalho; nesse sentido, não era mais simples do que o sistema de Ptolomeu. Se, por outro lado, indagássemos a quantidade de aparato matemático exigido para explicar, não os movimentos quantitativos pormenorizados dos planetas, mas apenas os seus aspectos qualitativos por grosso - prolongamento limitado, movimento retrógrado, e semelhantes - então, como qualquer criança de escola sabe, Copérnico só exigia um círculo por planeta, Ptolomeu dois. Neste sentido, a teoria copernicana era mais simples, um facto vitalmente importante para as escolhas feitas tanto por Kepler como por Galileu e, portanto, essencial para o triunfo derradeiro do copernicanismo. Mas este sentido de simplicidade não era o único à disposição, nem mesmo o mais natural para os astrónomos profissionais, homens cuja tarefa era o cálculo real da posição planetária.

Dado que o tempo é breve e multipliquei os exemplos algures, afirmarei apenas aqui que estas dificuldades na aplicação de critérios padronizados de escolha são típicas, e que não emergem com menos violência em situações do século XX do que nos exemplos mais antigos e melhor conhecidos, que acabei de esboçar. Quando os cientistas têm de escolher entre teorias rivais, dois homens comprometidos completamente com a mesma lista de critérios para escolha podem, contudo, chegar a conclusões diferentes. Talvez interpretem a simplicidade de maneira diferente ou tenham convicções diferentes sobre o âmbito de campos em que o critério de consistência se deva aplicar. Ou talvez concordem sobre estas matérias, mas difiram quanto aos pesos relativos a ser acordados a estes ou a outros critérios, quando vários deles se desenvolvem em conjunto. No que respeita a divergências deste género, nenhum conjunto de critérios de escolha já proposto é útil. Um pode explicar, como faz de modo característico o historiador, por que razão homens particulares fizeram escolhas particulares em tempos particulares. Mas, para este propósito, devemos ir além da lista de critérios partilhados para as características dos indivíduos que fizeram a escolha. Quer dizer, há que lidar com características que variam de um cientista para outro sem com isso arriscar minimamente a sua aderência aos cânones que tornam científica a ciência. Embora tais cânones existam e devam ser descobertos (sem dúvida, os critérios de escolha com que comecei estão entre eles), não são por si suficientes para determinar as decisões dos cientistas individuais. Para esse propósito, os cânones partilhados devem estudar-se de maneiras que diferem de um indivíduo para outro.

Algumas das diferenças que tenho em mente resultam da experiência anterior do indivíduo como cientista. Em que parte do campo trabalhava ele, quando se confrontou com a necessidade de escolher? Por quanto tempo trabalhou nele; qual foi o seu êxito; e quanto do seu trabalho dependeu de conceitos e técnicas impugnados pela nova teoria? Outros factores importantes para a escolha ficam fora das ciências. A eleição de Kepler pelo copernicanismo ficou a dever-se em parte à sua imersão nos movimentos neoplatónicos e herméticos da sua época; o Romantismo Germânico predispôs aqueles que afectou para o reconhecimento e a aceitação da conservação da energia; o pensamento social britânico do século XIX teve uma influência semelhante sobre a disponibilidade e aceitabilidade do conceito de Darwin da luta pela existência. Ainda outras diferenças significativas são funções da personalidade. Alguns cientistas põem mais ênfase do que outros na originalidade e têm mais vontade, portanto, em tomar riscos; alguns cientistas preferem teorias compreensivas, unificadas para soluções de problemas exactos e pormenorizados de alcance aparentemente mais restrito. Factores diferenciadores como estes são descritos pelos meus críticos como subjectivos, e são postos em constraste com os critérios partilhados ou objectivos de onde parti. Embora mais à frente ponha em questão este uso dos termos, vou aceitá-los por enquanto. 0 meu ponto é, portanto, que toda a escolha individual entre teorias rivais depende de uma mistura de factores objectivos e subjectivos, ou de critérios partilhados e individuais. Visto que os últimos em geral não aparecem na filosofia da ciência, o meu realce sobre eles fez que a minha crença nos primeiros não tivesse sido apercebida pelos meus críticos.

O que disse até aqui é, antes de mais, apenas a descrição do que acontece nas ciências, em períodos de escolha teórica. Como descrição, além disso, não foi contestada pelos meus críticos que rejeitam, em vez disso, a minha asseveração de que esses factos da vida científica têm importância filosófica. Aceitando que existe o problema, começarei por isolar algumas diferenças de opinião, embora pense que não sejam grandes. Começarei por perguntar como é que os filósofos da ciência puderam negligenciar, durante tanto tempo, os elementos subjectivos que, garantem eles, entram regularmente nas escolhas teóricas reais feitas pelos cientistas individuais? Por que razão estes elementos lhes parecem apenas um índice de fraqueza humana, e não um índice da natureza do conhecimento científico?

Uma resposta a esta questão é, naturalmente, que poucos filósofos, se mesmo algum, reivindicaram a posse de uma lista de critérios quer completa, quer inteiramente bem articulada. Durante algum tempo, por conseguinte, podiam esperar com razão que uma investigação ulterior eliminasse as imperfeições residuais e produzisse um algoritmo capaz de ditar uma escolha unânime e racional. Até esta realização, os cientistas não teriam qualquer alternativa a não ser fornecer subjectivamente o que ainda faltava à melhor lista corrente de critérios objectivos. Que alguns deles ainda pudessem fazer isso, inclusive com uma lista aperfeiçoada na mão, seria, então, apenas um índice da inevitável imperfeição da natureza humana.

Esse género de resposta pode ainda mostrar-se correcta, mas penso que já nenhum filósofo espera que o seja. A procura de procedimentos de decisão algorítmicos continuou durante algum tempo e produziu resultados poderosos e esclarecedores. Mas todos esses resultados pressupõem que os critérios individuais de escolha se podem enunciar sem ambiguidade e também que, se houver mais do que um, uma função de peso apropriada estaria à disposição para a respectiva aplicação. Infelizmente, onde a escolha em jogo é entre teorias científicas, fizeram-se poucos progressos para o primeiro destes desideratos e nenhuns para o segundo. A maior parte dos filósofos da ciência deviam, por conseguinte, penso eu, olhar agora para o género de algoritmo que se tem procurado tradicionalmente como um ideal absolutamente inatingível. Concordo inteiramente, e de hoje em diante considerá-lo-ei assim.

Um ideal, porém, para se manter credível, exige alguma importância demonstrada pelas situações em que se supõe aplicar. Ao assegurar que tal demonstração não exige quaisquer factores subjectivos, os meus críticos parecem apelar, implícita ou explicitamente, para a distinção bem conhecida entre os contextos de descoberta e de justificação (7). Quer dizer, aceitam que os factores subjectivos que eu invoco desempenham um papel significativo na descoberta ou invenção de novas teorias, mas também insistem em que esse processo inevitavelmente intuitivo fica fora dos limites da filosofia da ciência e não tem importância para a questão da objectividade científica. A objectividade entra na ciência, continuam eles, através dos processos pelos quais as teorias são testadas, justificadas ou julgadas. Esses processos não envolvem ou, pelo menos, não precisam de envolver quaisquer factores subjectivos. Podem ser governados por um conjunto de critérios (objectivos) partilhados pela totalidade do grupo competente para julgar.

Já argumentei que essa posição não se ajusta às observações da vida científica, e devo supor agora que isso me foi concedido. O que está aqui em jogo é uma questão diferente: se esta invocação da distinção entre contextos de descoberta e de justificação fornece ou não uma idealização plausível e útil. Penso que não, e posso defender melhor a minha posição sugerindo, em primeiro lugar, uma fonte provável da sua eficácia aparente. Suspeito que os meus críticos foram enganados pela pedagogia da ciência ou pelo que chamei algures ciência do livro de texto. No ensino da ciência, as teorias são apresentadas juntamente com aplicações exemplares, e essas aplicações podem ver-se como provas. Mas não é essa a sua principal função pedagógica (os estudantes de ciência são desalentadoramente propensos a receber a palavra dos professores e dos textos). Sem dúvida, algumas delas faziam parte dos dados na época em que as decisões reais estavam a ser tomadas, mas representam apenas uma fracção das considerações importantes para o processo de decisão. O contexto da pedagogia difere quase tanto do contexto de justificação como do contexto de descoberta.

Uma documentação completa sobre esse ponto exigiria uma argumentação mais longa do que a que é adequada aqui, mas merecem menção dois aspectos do modo como os filósofos em geral demonstram a importância dos critérios de escolha. Tal como os manuais de ciência pelos quais muitas vezes se modelam, os livros e os artigos sobre filosofia da ciência referem-se várias vezes às famosas experiências cruciais: o pêndulo de Foucault, que demonstra o movimento da Terra; a demonstração da atracção gravitacional de Cavendish; ou a medida da velocidade relativa do som na água e no ar, de Fizeau. Estas experiências são paradigmas razoáveis para a escolha científica; ilustram os géneros mais eficazes de argumentos que podiam estar à disposição de um cientista, hesitante sobre qual das duas teorias devia seguir; são os veículos para a transmissão de critérios de escolha. Mas também têm outra coisa em comum. Na altura em que foram realizadas, nenhum cientista precisava, ainda, de ser convencido da validade da teoria, cujos resultados se costumam agora demonstrar. Essas decisões desde há muito que se tomaram com base em dados muito mais equívocos. As experiências cruciais e exemplares, a que os filósofos se referem várias vezes, só teriam sido historicamente importantes para a escolha teórica se tivessem produzido resultados inesperados. O seu uso, enquanto ilustrações, fornece uma economia necessária para a pedagogia da ciência, mas dificilmente esclarecem o carácter das escolhas que os cientistas são levados a fazer.

As ilustrações filosóficas padronizadas da escolha científica têm outras características perturbadoras. Os únicos argumentos discutidos são, como indiquei anteriomente, os favoráveis à teoria que, de facto, acabou por triunfar. Lemos que o oxigénio podia explicar as relações de peso; o flogisto, não; mas não se diz nada sobre o poder da teoria do flogisto ou sobre as limitações da teoria do oxigénio. As comparações da teoria de Ptolomeu com a de Copérnico procedem do mesmo modo. Talvez estes exemplos não devessem mencionar-se, já que põem em contraste uma teoria desenvolvida com uma que ainda está na infância. Mas, não obstante, os filósofos em geral usam-nas. Se o único resultado de tal atitude fosse a simplificação da situação de decisão, nada teríamos a objectar. Mesmo os historiadores não pretendem lidar com a total complexidade factual das situações que descrevem. Mas estas simplificações desvirtuam a situação, fazendo crer que a escolha é completamente a problemática. Quer dizer, eliminam um elemento essencial das situações de decisão que os cientistas devem resolver, se quiserem que o campo respectivo vá em frente. Nessas situações, há sempre pelo menos algumas boas razões para cada escolha possível. Então, as considerações importantes para o contexto da descoberta são também importantes para a justificação; os cientistas que partilham os interesses e as sensibilidades do indivíduo que descobre uma teoria nova aparecem provavelmente, ipso facto, com desproporcionada frequência, entre os primeiros apoiantes dessa teoria. Por isso, tem sido difícil construir algoritmos para a escolha teórica, e também por isso é que essas dificuldades têm parecido tão completamente dignas de resolução. As escolhas que apresentam problemas são as que os filósofos da ciência precisam de compreender. Procedimentos de decisão filosoficamente interessantes devem funcionar onde, na sua ausência, a decisão pode ainda estar em dúvida.

Tudo isto já o disse antes, ainda que só resumidamente. Há pouco, contudo, reconheci outra fonte mais subtil da plausibilidade aparente da posição dos meus críticos. Para a apresentar, descreverei rapidamente um diálogo hipotético com um deles. Ambos concordamos em que cada cientista escolhe entre teorias rivais, ao desenvolver alguns algoritmos bayesianos que lhe permitam calcular um valor para p (T, E), isto é, para a probabilidade de uma teoria T baseada em provas empíricas E, disponíveis quer a ele, quer aos outros membros do seu grupo profissional num determinado período de tempo. As «provas empíricas», além disso, são interpretadas por ambos de forma ampla para incluir considerações como a simplicidade e fecundidade. O meu crítico afirma, contudo, que só existe um desses valores para p, o que corresponde à escolha objectiva, e acredita que todos os membros racionais do grupo devem chegar a ela. Eu afirmo, por outro lado, pelas razões dadas anteriormente, que os factores que ele chama objectivos são insuficientes para determinar qualquer algoritmo. Em vista da discussão, concedi que cada indivíduo tem um algoritmo e que todos os seus algoritmos têm muito em comum. Não obstante, continuo a manter que os algoritmos dos indivíduos são, em última instância, todos diferentes, em virtude das considerações subjectivas com que cada um deve completar os critérios objectivos, antes de se poderem realizar quaisquer cálculos. Se o meu crítico hipotético for liberal, pode agora conceder que estas diferenças subjectivas desempenham um papel na determinação do algoritmo hipotético em que cada indivíduo confia durante os estádios iniciais da competição entre teorias rivais. Mas ele provavelmente também reivindicará que, enquanto as provas aumentam com a passagem do tempo, os algoritmos de indivíduos diferentes convergem para o algoritmo da escolha objectiva, com que se iniciou a sua apresentação. Para ele, a unanimidade crescente das escolhas individuais é testemunho da sua objectividade crescente e, portanto, da eliminação de elementos subjectivos do processo de decisão.

É o suficiente quanto ao diálogo que, naturalmente, imaginei, para revelar a inconsequência subjacente a uma posição aparentemente plausível. Só precisam de convergir, enquanto os testemunhos mudam com o tempo, os valores de p que os indivíduos calculam a partir dos respectivos algoritmos individuais. De modo concebível, esses algoritmos tornam-se também mais parecidos com o tempo, mas a unanimidade derradeira da escolha teórica não fornece qualquer prova de que isso seja assim. Se se exigem factores subjectivos para explicar as decisões que inicialmente dividem a profissão, eles ainda devem estar presentes mais tarde, quando a profissão chega a acordo. Embora não discuta aqui o ponto, a consideração das ocasiões em que uma comunidade científica se divide sugere que eles, na realidade, permanecem.

A minha argumentação dirigiu-se, até aqui, a dois pontos. Primeiro, forneceu provas de que as escolhas que os cientistas fazem entre teorias rivais dependem não só dos critérios partilhados - os que os meus críticos chamam objectivos -, mas também dos factores idiossincráticos, dependentes da biografia e da personalidade individuais. Estes últimos são, de acordo com o vocabulário dos meus críticos, subjectivos, e a segunda parte do meu argumento tentou impedir alguns caminhos prováveis de negação das suas implicações filosóficas. Vou passar agora para uma abordagem mais positiva, voltando rapidamente à lista de critérios partilhados – pré cisão, simplicidade e semelhantes -- com que comecei. A eficácia considerável desses critérios não depende, como quero agora sugerir, de serem suficientemente articulados para ditar a escolha de cada indivíduo que os subscreve. Contudo, se fossem articulados nessa medida, deixaria de funcionar um mecanismo comportamental fundamental para o avanço científico. O que a tradição considera como imperfeições elimináveis nas suas regras de escolha, considero-o em parte como resposta à natureza essencial da ciência.

Como acontece muitas vezes, começo pelo óbvio. Critérios que influenciam decisões, sem especificar o que devem ser essas decisões, são familiares em muitos aspectos da vida humana. Em geral, contudo, não se chamam critérios ou regras, mas máximas, normas ou valores. Consideremos as máximas, em primeiro lugar. O indivíduo que as invoca quando é urgente escolher, acha-as em geral frustrantemente vagas e, muitas vezes, também em conflito umas com as outras. Comparem «Quem não arrisca não petisca» com «Homem prevenido vale por dois», ou comparem «Mão posta ajuda é» com «Tudo o que é de mais deita por fora». Individualmente, as máximas ditam escolhas diferentes; em conjunto, não ditam nenhuma. Todavia, ninguém sugere que não seja importante fornecer etiquetas como estas às crianças, na sua educação. Máximas opostas modificam a natureza da decisão a ser tomada, acentuam os resultados essenciais que apresentam e apontam para os aspectos restantes da decisão, para os quais cada indivíduo deve assumir a responsabilidade por si próprio. Uma vez invocadas, máximas como estas modificam a natureza do processo de decisão e podem assim mudar o seu resultado.

Os valores e as normas fornecem mesmo exemplos mais claros de orientação eficaz, na presença do conflito e do equívoco. Melhorar a qualidade de vida é um valor, e um carro em cada garagem foi em tempos a norma que daí se seguiu. Mas a qualidade de vida tem outros aspectos, e a velha norma tornou-se problemática. Ou ainda, a liberdade de expressão é um valor, mas também a preservação da vida e da propriedade. Na aplicação, ambos entram muitas vezes em conflito, de modo que o exame de consciência judicial, que ainda permanece, se exigiu para proibir comportamentos como a incitação à revolta ou gritar «Fogo!» num teatro repleto. Dificuldades como estas são uma fonte adequada para a frustração, mas raramente culminam em acusações de que os valores não têm qualquer função, ou em apelos para o seu abandono. Esta resposta está excluída para a maior parte de nós devido a uma aguda consciência de que existem sociedades com outros valores, e de que estas diferenças de valores resultam em outros modos de vida, em outras decisões sobre o que se pode e não pode fazer.

Naturalmente, estou a sugerir que os critérios de escolha, com que comecei, funcionam não como regras, que determinam a escolha, mas como valores, que a influenciam. Duas pessoas profundamente empenhadas nos mesmos valores podem, contudo, em situações particulares, tomar decisões diferentes como, de facto, o fazem. Mas essa diferença de resultado não devia sugerir que os valores que os cientistas partilham têm menos importância crítica do que as suas decisões ou o desenvolvimento do empreendimento em que participam. Valores como precisão, consistência e alcance podem mostrar-se ambíguos na aplicação, tanto individual como colectivamente; isto é, podem ser uma base insuficiente para um algoritmo partilhado de escolha. Mas eles especificam muita coisa: o que cada cientista deve considerar ao atingir uma decisão, o que pode e não pode considerar importante, e o que se lhe pode legitimamente exigir como base para a escolha que fez. Mude-se a lista, por exemplo, acrescentando a utilidade social como critério, e teremos algumas escolhas particulares diferentes, mais parecidas com as que se esperam de um engenheiro. Subtraia-se da lista a precisão, e o empreendimento que daí resulta pode não se assemelhar absolutamente nada à ciência, mas talvez à filosofia. Diferentes disciplinas criativas caracterizam-se, entre outras coisas, por conjuntos diferentes de valores partilhados. Se a filosofia e a engenharia estão muito próximas das ciências, pensem na literatura ou nas artes plásticas. Que Milton não tenha situado o Paradise Lost num universo copernicano não significa que concordava com Ptolomeu, mas que tinha que fazer outras coisas além da ciência.

O reconhecimento de que os critérios de escolha podem funcionar como valores, quando incompletos como regras, julgo eu que tem um certo número de vantagens acentuadas. Primeira, como já argumentei extensamente, explica em pormenor aspectos do comportamento científico, que a tradição considerou anómalos ou mesmo irracionais. 0 que é mais importante ainda, permite que os critérios pautados funcionem completamente nos primeiros estágios da escolha teórica, período em que são mais necessários, mas durante o qual, de acordo com a visão tradicional, funcionam mal ou nem sequer funcionam. Copérnico estava a responder-lhes durante os anos necessários para converter a astronomia heliocêntrica, de um esquema conceptual global, numa maquinaria matemática para a previsão das posições planetárias. Eram essas previsões o que os astrónomos avaliavam; sem elas, Copérnico dificilmente seria ouvido, coisa que acontecera antes com a ideia de uma Terra em movimento. O facto de a sua própria versão ter convencido tão poucos é menos importante do que o seu reconhecimento da base sobre a qual os juízos se teriam de fazer para que o heliocentrismo pudesse sobreviver. Embora se deva invocar a idiossincrasia para explicar por que razão Kepler e Galileu se converteram muito cedo ao sistema de Copérnico, as lacunas preenchidas pelos seus esforços para o aperfeiçoar eram especificados apenas pelos valores partilhados.

Esse ponto tem um corolário que pode ainda ser mais importante. A maior parte das teorias apresentadas como novidade não sobrevivem. Em geral, as dificuldades que as fizeram aparecer são explicadas por meios mais tradicionais. Mesmo quando tal não acontece, em geral exige-se muito trabalho, tanto teórico como experimental, antes de a nova teoria poder manifestar precisão e alcance suficientes para originar uma convicção amplamente distribuída. Em suma, antes de o grupo a aceitar, uma teoria nova foi testada ao longo do tempo pela investigação de muitos homens, alguns trabalhando nela, outros lidando com a sua rival tradicional. Semelhante modo de desenvolvimento, contudo, exige um processo de decisão que permita a homens racionais discordar, e essa discordância devia ser excluída pelo algoritmo partilhado, que os filósofos em geral procuraram. Se ele estivesse à sua disposição, todos os cientistas concordantes tomariam a mesma decisão ao mesmo tempo. Com padrões de aceitação de nível baixo, passariam de um ponto de vista global e atractivo a outro, nunca dando à teoria tradicional uma oportunidade para fornecer atractivos equivalentes. Com padrões mais elevados, ninguém que satisfizesse o critério de racionalidade estaria inclinado a tentar a nova teoria, para a articular de modo a que mostrasse a sua fecundidade ou revelasse a sua precisão e alcance. Duvido que a ciência sobrevivesse à mudança. O que de um ponto de vista pode parecer a perda e a imperfeição de critérios de escolha concebidos como regras pode, quando os mesmos critérios se vêem como valores, aparecer como um meio indispensável de propagar o risco que a introdução ou o apoio à novidade sempre acarreta.

Mesmo os que me seguiram até aqui desejarão saber como é que um empreendimento baseado em valores do género que acabei de descrever pode desenvolver-se como o faz uma ciência, produzindo repetidamente técnicas novas e poderosas de predição e controlo. Infelizmente, não tenho qualquer resposta para esta questão, mas isso é apenas outra maneira de dizer que não reivindico a resolução do problema da indução. Se a ciência progredisse devido a algum algoritmo partilhado e obrigatório de escolha, também seria incapaz de explicar o seu sucesso. Sinto agudamente essa lacuna, mas a sua presença não altera a minha posição quanto à tradição.

Apesar de tudo, não é por acaso que a minha lista dos valores que orientam a escolha científica é, tanto como a respectiva diferença, idêntica à lista tradicional das regras que ditam a escolha. Dada qualquer situação concreta a que se possam aplicar as regras do filósofo, os meus valores funcionariam como as suas regras, produzindo a mesma escolha. Toda a justificação da indução, toda a explicação das razões do funcionamento das regras, se aplicará também aos meus valores. Consideremos agora uma situação em que a escolha pelas regras partilhadas se mostrasse impossível, não porque as regras estejam erradas, mas porque são, como regras, intrinsecamente incompletas. Os indivíduos devem então escolher e guiar-se ainda pelas regras (agora valores), quando o fazem. Com esse propósito, contudo, cada um deve primeiro incorporar em si as regras, e cada um fará isso de um modo um tanto ou quanto diferente, mesmo que a decisão prescrita pelas regras, completadas de várias maneiras, se possa revelar unânime. Se, além disso, considerar que o grupo é suficientemente grande para que as diferenças individuais se distribuam numa curva normal, então, qualquer argumento que justifique a eleição por regras, do filósofo, será imediatamente adaptável à minha escolha por valor. Um grupo demasiado pequeno, ou uma distribuição excessivamente obliquada por pressões históricas externas, impediria, naturalmente, a transferência do argumento (8). Mas são essas, justamente, as circunstâncias sob as quais o progresso científico é ele próprio problemático. Então, não se espera a transferência.

Ficarei satisfeito se estas referências a uma distribuição normal das diferenças individuais e ao problema da indução fizerem que a minha posição se apresente muito próxima de pontos de vista mais tradicionais. No tocante à escolha da teoria, nunca pensei que os meus desvios tenham sido grandes e, portanto, surpreendi-me com as acusações de «psicologia de massas», citadas no começo. No entanto, é suficiente verificar que as posições não são totalmente idênticas e, com essa finalidade, pode ser útil uma analogia. Muitas propriedades dos líquidos e dos gases podem explicar-se com base na teoria cinética pela suposição de que todas as moléculas se deslocam à mesma velocidade. Entre tais propriedades, estão as regularidades conhecidas como a lei de Boyle e de Charles. Outras características, especialmente a evaporação, não podem explicar-se de modo tão simples. Para lidar com elas, deve supor-se que as velocidades moleculares diferem, que são distribuídas ao acaso, governadas pelas leis da contingência. 0 que tenho estado aqui a sugerir é que também a escolha teórica só em parte se pode explicar por uma teoria que atribua as mesmas propriedades a todos os cientistas que devem fazer a escolha. Aspectos essenciais do processo conhecido em geral como verificação só se entendem recorrendo aos aspectos a respeito dos quais podem diferir os homens, permanecendo cientistas. A tradição pressupõe que tais aspectos são vitais para o processo de descoberta, o que imediatamente e por essa razão se desenrola fora dos limites filosóficos. Que esses aspectos possam ter funções significativas também no problema central filosófico da justificação da escolha teórica é o que os filósofos da ciência têm categoricamente negado até agora.

O que resta por dizer pode agrupar-se num epílogo um tanto ou quanto miscelâneo. Em nome da clareza e para evitar escrever um livro, utilizei ao longo desta comunicação alguns conceitos e locuções tradicionais, sobre cuja viabilidade expressei algures sérias dúvidas. Para os que conhecem o trabalho em que fiz isso, termino indicando três aspectos do que disse, que representariam melhor a minha concepção se se expressassem noutros termos, e indico simultaneamente as direcções principais que essa recolocação devia prosseguir. As áreas que tenho em mente são: a invariância do valor, subjectividade e comunicação parcial. Se a minha visão do desenvolvimento científico for novidade - matéria onde existe espaço legítimo de dúvida - é em áreas como esta, melhor do que na escolha de teorias, que se deviam procurar os meus principais desvios da tradição.

Ao longo desta comunicação supus implicitamente que, quaisquer que tivessem sido as respectivas origens, os critérios ou valores desenvolvidos na escolha teórica estão fixados de uma vez por todas, não sendo afectados pela participação respectiva nas transições de uma teoria para outra. Falando em geral, mas mesmo muito em geral, considerei que fosse esse o caso. Se a lista dos valores importantes permanecer breve (mencionei cinco, nem todos independentes) e se a respectiva especificação for vaga, então, valores como a precisão, alcance e fecundidade são atributos permanentes da ciência. Mas basta um pouco de conhecimento da história para sugerir que tanto a aplicação destes valores como, mais obviamente, os pesos relativos que lhes estão ligados variaram acentuadamente com o tempo e também com o campo de aplicação. Além disso, muitas destas variações no valor têm sido associadas a mudanças particulares na teoria científica. Embora a experiência dos cientistas não forneça qualquer justificação filosófica para os valores que desenvolvem (essa justificação resolveria o problema da indução), esses valores são, em parte, apreendidos dessa experiência e evoluíram com ela.

Todo o assunto necessita de mais estudo (os historiadores aceitaram, em geral, como verdadeiros, os valores científicos, embora não tivessem aceitado os métodos científicos), mas algumas observações esclarecerão o género de variações que tenho em mente. A precisão, enquanto valor, tem denotado cada vez mais, com o tempo, concordância quantitativa ou numérica, por vezes à custa da qualitativa. Antes do início dos tempos modernos, contudo, a precisão nesse sentido só era critério para a astronomia, a ciência da região celeste. Em qualquer outra parte nem se esperava nem procurava. No entanto, durante o século XVII, o critério da concordância numérica alargou-se à mecânica; durante finais do século XVIII e princípios do século XIX, estendeu-se à química e a outros temas como a electricidade e o calor, e neste século a muitas partes da biologia. Ou pensem na utilidade, uma rubrica de valor que não aparece na minha lista inicial. Também apareceu significativamente no desenvolvimento científico, mas de modo mais forte e firme para os químicos do que, digamos, para os matemáticos e para os físicos. Ou consideremos o alcance. Ainda é um valor científico importante, mas avanços científicos notáveis alcançaram-se repetidamente à sua custa, e o peso que lhe foi atribuído em tempos de escolha diminuiu quase consequentemente.

O que pode parecer particularmente penoso acerca de mudanças como esta é que elas ocorrem em geral na sequência de uma mudança de teoria. Uma das objecções à nova química de Lavoisier consistiu nos obstáculos que ele pôs à realização do que tinha sido anteriormente um dos objectivos tradicionais da química: a exploração das qualidades, como a cor e a textura, assim como as mudanças respectivas. Com a aceitação da teoria de Lavoisier, tais explicações deixaram durante algum tempo de ser um valor para os químicos; a capacidade de explicar a variação qualitativa deixou de ser um critério importante para a avaliação da teoria química. É claro que se essas mudanças de valor tivessem ocorrido tão depressa ou tivessem sido tão completas como as mudanças da teoria a que estão ligadas, então a escolha de teoria seria escolha de valor, e nenhuma podia fornecer uma justificação para a outra. Mas, historicamente, a mudança de valor é em geral um concomitante tardio e amplamente inconsciente da escolha, e a grandeza da primeira é em geral menor do que a última. Para as funções que atribuí aqui aos valores, essa estabilidade relativa fornece uma base suficiente. A existência de um laço retroactivo mediante o qual a mudança teórica afecta os valores que conduzem a essa mudança não torna o processo de decisão circular, prejudicial em qualquer sentido.

Quanto a um segundo aspecto em que o meu recurso à tradição pode parecer enganador, devo ser muito mais cuidadoso. Isso exige as capacidades de um filósofo da linguagem comum, que eu não possuo. Nem sequer é necessário um ouvido muito agudo para a linguagem para cair na conta da forma insatisfatória como os termos «objectividade» e, mais especialmente, «subjectividade», funcionaram nesta comunicação. Vou sugerir rapidamente os aspectos em que creio que a linguagem se extraviou. «Subjectivo» é um termo com vários usos estabelecidos: num deles opõe-se a «objectivo»; noutro, a «juízo». Quando os meus críticos descrevem as características idiossincrásicas a que faço apelo, como subjectivas, recorrem, julgo que erroneamente, ao segundo destes sentidos. Quando se queixam de que privo a ciência da objectividade, misturam esse segundo sentido de subjectividade com o primeiro.

Uma aplicação padronizada do termo «subjectivo» faz-se em matérias de gosto, e os meus críticos parecem supor que foi isso o que fiz com a escolha de teoria. Mas, ao fazerem isso, esquecem-se de um padrão de distinção que vem de Kant. Como as informações sensíveis, que também são subjectivas no sentido agora em discussão, os assuntos de gosto são indiscutíveis. Suponham que, ao sair de um cinema com um amigo, depois de ver um western, eu excluo: «Gostei muito desta trapalhada incrível!» O meu amigo, caso não tenha gostado do filme, pode dizer que tenho mau gosto, um assunto com o qual, nestas circunstâncias, concordaria facilmente. Mas, supondo que eu não menti, ele não pode discordar da afirmação de que gostei do filme, ou não pode tentar persuadir-me de que o que disse sobre a minha reacção estava errado. O que é discutível na minha observação não é a minha caracterização do meu estado interno, a minha exemplificação de gosto, mas o meu juízo de que o filme era uma trapalhada. Se o meu amigo discordasse deste ponto, podíamos argumentar pela noite dentro, cada um comparando o filme com outros bons que tivéssemos visto, cada um revelando, implícita ou explicitamente, alguma coisa sobre o modo como julga o mérito cinematográfico, sobre a sua estética. Embora um de nós possa ter persuadido o outro, antes de se retirar, não necessita de ter feito isso para demonstrar que a nossa diferença é sobre o juízo e não sobre o gosto.

As avaliações ou as escolhas de teorias têm, penso eu, exactamente este carácter. Não quer dizer que os cientistas digam apenas que gostam ou não gostam desta e daquela teoria. Depois de 1926, Einstein disse pouco mais do que isso sobre a sua oposição à teoria quântica. Mas pode sempre exigir-se aos cientistas que expliquem as respectivas escolhas, para exibir as bases para os seus juízos. Esses juízos são eminentemente discutíveis, e quem se recusar a discutir o seu próprio juízo não pode esperar ser levado a sério. Embora haja, muito ocasionalmente, líderes do gosto científico, a sua existência tende a provar a regra. Einstein foi um desses poucos, e o seu crescente isolamento da comunidade científica, no final da vida, revela como é limitado o papel que o gosto pode desempenhar na escolha teórica. Bohr, ao contrário de Einstein, discutiu as bases para o seu juízo e manteve-se activo. Se os meus críticos introduzem o termo «subjectivo» num sentido que o opõe ajuízo - sugerindo assim que torno a escolha de teorias, indiscutível, uma matéria de gosto - enganaram-se seriamente quanto à minha posição.

Voltemos agora ao sentido em que «subjectividade» se opõe a «objectividade», e note-se primeiro que ele levanta questões totalmente separadas das que acabaram de ser discutidas. Que o meu gosto seja mau ou refinado, a minha afirmação de que gostei do filme é objectiva, a menos que tenha mentido. No entanto, para o meu juízo de que o filme foi uma trapalhada, a distinção objectivo-subjectivo não se aplica em absoluto, pelo menos não obvia nem directamente. Quando os meus críticos dizem que privo a escolha teórica de objectividade, devem, por conseguinte, recorrer a um sentido de subjectividade muito diferente, presumivelmente àquele em que as tendências e gostos pessoais funcionam em vez, ou em face, dos factos reais. Mas esse sentido de subjectividade não se ajusta melhor do que o primeiro ao processo que tenho estado a descrever. Onde se devem introduzir factores dependentes da biografia ou da personalidade individuais a fim de tornar os valores aplicáveis, não se põem de lado quaisquer padrões de factualidade ou de realidade. A minha discussão da escolha teórica indicia decerto algumas limitações de objectividade, mas não pelo isolamento de elementos adequadamente ditos subjectivos. Nem sequer estou totalmente satisfeito com a noção de que o que tenho estado a apresentar sejam limitações. A objectividade devia ser analisável em termos de critérios como precisão e consistência. Se estes critérios não fornecem todas as orientações que habitualmente esperamos deles, então o que o meu argumento mostra pode ser o significado, e não os limites, da objectividade.

Voltemos, em conclusão, a um terceiro aspecto, ou conjunto de aspectos, em que esta comunicação precisa de ser reorganizada. Ao longo dela, supus que as discussões sobre a escolha teórica não eram problemáticas, que os factos a que se apelava em tais discussões eram independentes da teoria, e que o resultado das discussões se chama, adequadamente, escolha. Algures, impugnei todas estas suposições, argumentando que a comunicação entre proponentes de teorias diferentes é inevitavelmente parcial, que o que cada um considera como factos depende em parte da teoria que partilha, e que uma transferência de lealdade do indivíduo, de teoria para teoria, se descreve muitas vezes mais adequadamente como conversão, e não como eleição. Embora tudo isto seja tão problemático como controverso, o meu empenhamento não diminui. Agora, não os defenderei, mas devo pelo menos tentar indicar como o que aqui disse se pode ajustar para se conformar com aqueles aspectos, mais centrais, da minha visão do desenvolvimento científico.

Com esse propósito, recorro a uma analogia que desenvolvi noutros lugares. Os proponentes de teorias diferentes são, afirmei, como os que têm linguagens maternas diferentes. A comunicação entre eles faz-se através da tradução, o que levanta todas as dificuldades familiares às traduções. E claro que esta analogia é incompleta, visto que o vocabulário das duas teorias pode ser idêntico e a maior parte das palavras funciona do mesmo modo em ambas. Mas algumas palavras dos vocabulários básicos, como também do teórico, das duas teorias - palavras como «estrela» e «planeta», «mistura» e «composto», ou «força» e matéria» - funcionam de modo diferente. Tais diferenças são inesperadas e serão descobertas e localizadas apenas por sucessivas experiências do fracasso de comunicação. Sem prosseguir neste assunto, afirmo simplesmente a existência de limitações significativas que os proponentes de teorias diferentes encontram para poderem comunicar entre si. As mesmas limitações tornam difícil ou, mais provavelmente, impossível que um indivíduo tenha ambas as teorias juntas no espírito e as compare ponto por ponto entre si e com a natureza. No entanto, esse género de comparação é o processo de que depende a aptidão de toda a palavra como «escolha».

Todavia, apesar da incompletude da sua comunicação, os proponentes de teorias diferentes podem exibir uns aos outros, nem sempre facilmente, os resultados técnicos concretos obtidos pelos praticantes de cada teoria. Exige-se pouca ou nenhuma tradução para aplicar pelo menos alguns critérios de valor a estes resultados. (A precisão e a fecundidade são os mais imediatamente aplicáveis, seguidos talvez pelo alcance. A consistência e a simplicidade são muito mais problemáticas.) Por mais incompreensível que a nova teoria possa ser para os partidários da tradição, a exibição de resultados concretos e tangíveis persuadirá pelo menos alguns deles de que devem descobrir como é que esses resultados se alcançam. Para tal fim, devem aprender a traduzir, manejando talvez comunicações já publicadas como uma pedra de Rosetta ou, muitas vezes com melhores resultados, visitando o inovador, falando com ele, observando-o a ele e aos seus estudantes a trabalhar. Estas exposições podem não resultar na adopção da teoria: alguns defensores da tradição podem voltar a casa e tentar ajustar a velha teoria para produzir resultados equivalentes. Mas outros, se a nova teoria veio para ficar, descobrirão que, num dado ponto do processo de aprendizagem linguística, deixaram de traduzir e começaram antes a falar como nativos do novo idioma. Não ocorreu nenhum processo totalmente semelhante à escolha mas, apesar de tudo, eles estão a praticar já a nova teoria. Além disso, os factores que os levaram a arriscar a conversão que sofreram são precisamente aqueles que esta comunicação acentuou, ao discutir um processo um tanto ou quanto diferente que, de acordo com a tradição filosófica, foi rotulado de escolha teórica.

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(1) The Structure of Scientific Revolutions, 2.ª ed. (Chicago, 1970), pp. 148, 151-52, 159. Todas as passagens de onde se retiraram estes fragmentos apareceram na mesma forma na primeira edição, publicada em 1962.

(2) Ibid., p.170.

(3) Imre Lakatos, «Falsification and the Methodology of Scientific Re­search Programmes», in I. Lakatos e A. Musgrave, eds., Criticism and the Growth of Knowledge (Cambridge, 1970), pp. 91-195. A frase citada, que aparece nap. 178, está em itálico no original.

(4) Dudley Shapere, «Meaning and Scientific Change», in R. G. Colodny, ed., Mind and Cosmos: Essays in Contemporary Science and Philosophy, University of Pittsburgh Series in the Philosophy of Science, vol. 3 (Pitts­burgh, 1966), pp. 41-85. A citação encontra-se nap. 67.

(5) Israel Scheffer, Science and Subjectivity (Indianapolis, 1967), p. 81.

(6) 0 último critério, fecundidade, merece maior ênfase do que já rece­beu. Um cientista, ao escolher entre duas teorias, sabe habitualmente que a sua decisão terá uma relação com a sequência da sua carreira de investiga­ção. Naturalmente, está especialmente atraído por uma teoria que promete os êxitos concretos pelos quais os cientistas são em geral recompensados.

(7) 0 exemplo menos equívoco desta posição é provavelmente o que é desenvolvido in Scheffler, Science and Subjectivity, cap. 4.

(8) Se o grupo for pequeno, é mais provável que flutuações casuais re­sultem na partilha, pelos seus membros, de um conjunto de valores atípicos e, por conseguinte, fazendo escolhas diferentes das que seriam feitas por um grupo maior e mais representativo. O ambiente externo - intelectual, ideoló­gico ou económico - deve afectar sistematicamente o sistema de valores de grupos muito mais amplos, e as consequências podem incluir dificuldades em introduzir o empreendimento científico em sociedades com valores hos­tis, ou talvez mesmo o fim desse empreendimento no interior de sociedades, onde ele floresceu outrora. No entanto, é preciso ser muito cauteloso nesta área. As mudanças no ambiente onde se pratica a ciência podem também ter efeitos fecundos sobre a investigação. Os historiadores recorrem muitas ve­zes, por exemplo, a diferenças entre os ambientes nacionais para explicar por que razão as inovações são iniciadas e prosseguidas desproporcionadamente, em primeiro lugar, em países particulares, e. g., o darwinismo na Grã-Bretanha, a conservação na Alemanha. Actualmente, não sabemos nada de substancial sobre os requisitos mínimos do meio social no interior do qual um empreendimento como o da ciência possa florescer.

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