Não me refiro ao Governo, obviamente, nem à direcção do PCP, naturalmente, mas a esse lugar com alguns lugares vazios que vai de um a outro, sem uma representação política à altura das exigências e das responsabilidades que lhe cabem, actualizadas pela actual governação, mas que tem esbarrado em preconceitos ideológicos, défice programático e idiossincrasias individuais. Já não se trata, como sugeriu Mário Soares, de exigir "um bocadinho mais de esquerda" a este Governo, nem de confiar nas palavras de Vitalino Canas quando vem prognosticar que os portugueses irão ver melhoradas as suas condições de vida nos próximos tempos.
Se o desemprego não diminui, se os salários não aumentam, se os serviços públicos recuam, se o fosso que separa os ricos dos pobres se alarga, se o investimento no sector produtivo não arranca, se o capital financeiro vive os seus dias de glória, se esta situação teve uma contribuição inquestionável deste Governo, será difícil convencer os portugueses a esquecerem-se do que se passou até agora porque daqui por diante o sol brilhará para todos nós. É que estão à vista e fazem-se sentir diariamente os pontos negros que o Governo semeou na vida dos portugueses desde que tomou posse.
Vai valendo a intervenção dos sindicatos e da CGTP, porque no plano partidário a esquerda parece viver dos rendimentos eleitorais. Se excluirmos o lamentável episódio da greve geral, em que com toda a propriedade a direcção do PCP teve mais olhos do que barriga, a elevada adesão às greves, das maiores que se têm registado nos últimos anos, constitui um indicador insofismável da oposição dos trabalhadores às políticas que vêm sendo seguidas. Mantém-se, contudo, a disjunção entre a resposta sindical e a resposta política, com o risco acrescido de a intervenção sindical ver a sua actuação enfraquecida por incapacidade de articulação da frente política.
Esta situação configura um bloqueamento das escolhas político-partidárias com relevância para a governação, cada vez mais confinadas ao PS e ao PSD, como vem acontecendo desde 1987. Há 20 anos que a lógica da alternância entre estes dois partidos vem impondo uma governação cujo fio condutor acompanha disciplinadamente as exigências do programa de estabilidade e crescimento, as orientações do Banco Central Europeu e os critérios de desenvolvimento da OCDE, remetendo para mais tarde, em cada ciclo governativo que se inicia, a melhoria das condições de vida dos portugueses. Pelos efeitos que acabam sempre por ter ao longo de todo o sector produtivo, as negociações salariais da função pública constituem um exemplo particularmente ilustrativo desta política.
De tanto conviver com as políticas de direita nestes últimos 30 anos, o PS acabou por se deixar contaminar por elas e a direcção do PCP vai pedindo um pouco mais de paciência aos trabalhadores, de paciência revolucionária, claro. Do que se trata, porém, é de equacionar o que vai ser ou poderá vir a ser a vida política portuguesa à luz desta conjuntura. Deixar que se instale na esquerda uma cultura imune ao escrutínio daqueles que na rua combatem e protestam contra este estado de coisas, ou construir alternativas que rompam com esta sonolência, despertando a vida partidária para patamares mais conscientes da sua missão. Fazer da vida partidária um objecto de contemplação e dos partidos políticos uma ferramenta de estimação pode ser um excelente exercício de narcisismo ideológico mas dificilmente acrescenta algum valor à acção política. Torna-se necessário que alguma coisa aconteça na esquerda para que alguma coisa mude no país. Usando uma fórmula que fez o seu caminho e teve o seu tempo, há indicadores que sugerem existirem condições objectivas para a mudança.
Haverá condições subjectivas?
Dirigente da Renovação Comunista e membro do MIC