sábado, 15 de julho de 2006

IL FAUT IMAGINER SISYPHE HEUREUX


... o mito de Sísifo.

"Il faut imaginer Sisyphe heureux."

Camus exprimia, no final do ensaio filosófico "Le Mythe de Sisyphe" (Galimmard, 1942), este desejo que partilho, por acreditar na possibilidade da existência redentora, ainda que esporádica, de fortes momentos de consciência por todos aqueles que se confrontam com a fatalidade do esforço inútil e sem esperança.

Sísifo foi condenado pelos deuses do Olimpo, por ter espalhado levianamente os seus segredos, a rolar um enorme rochedo, incessantemente, até ao cimo de uma montanha. Quando, finalmente, conseguia empurrá-la até ao alto, a pedra caía novamente em virtude do seu próprio peso. Os deuses foram sábios ao impor este castigo a Sísifo, por não existir punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Para Homero, pelo contrário, o conformismo de Sísifo perante tal medíocre tarefa faria dele o mais prudente, e o mais sábio, dos mortais que vagueavam pela Terra e, para outros, seria mesmo muito arguto.

No entanto, numa interpretação que prefiro, Camus faz de Sísifo o modelo do herói absurdo porque, como o herói sem carácter, nada faz para se valer desse título e apenas executa o seu destino aceitando-o e executando-o, repetida e persistentemente com ardor e determinação, apesar de saber da impossibilidade de o modificar. Num eterno retorno, Sísifo não acalenta a esperança de que, na próxima subida à montanha, a pedra não volte a cair; pelo contrário, sabendo que, uma vez mais, ela rolará fatalmente não se detém na esperança da subida e enfrenta, apenas, a inevitabilidade da descida sem nada fazer para o evitar. Sísifo é, assim, visto como absurdo tal como o seu tormento e como o motivo que o levou a suportá-lo. Sísifo despreza os deuses e odeia a morte (que poderia facilmente acabar com seu destino fatalista) mas crê-se apaixonado pela vida (o que lhe aumenta o carácter absurdo) cuja suprema recompensa é precisamente esse suplício indescritível, onde todo o seu ser se ocupa em não completar nada. Curiosamente, Sísifo não considera essa tarefa infame como um castigo e, num pseudo-final desse desvairado esforço, acredita que atingirá um objectivo, a sua (im)possível glória. E, de cada vez, vê a pedra desabar mas comunga com ela acreditando mesmo fazer parte dela, ignorando que a pedra depende dele para subir mas que, para descer, o seu esforço ou a sua vontade são totalmente em vão. O espírito de Sísifo está já inexoravelmente aliado ao da pedra e, assim, desce, cai, rola também e, apesar de haver uma certa discrepância quanto ao tempo levado por cada um, para atingir o fundo, ambos o atingem. Sísifo comunga e compartilha com o seu fim – porém não o conhece - e esse facto é relevante para si porque o impele a seguir o seu fatídico objectivo, quantas e infinitas vezes necessárias forem, até que essa percepção se torne, por fim, mais forte do que o seu destino e seja na descida, infinita, que talvez aflore a sua consciência e lhe seja permitido salvar-se.

A aparente inconsciência de Sísifo é o que torna a sua labuta trágica. Existiriam o castigo, a pena, a punição, se Sísifo pudesse livrar-se da sua supostamente indigna tarefa? Onde estaria o carácter punitivo do seu destino, se houvesse a mínima esperança de Sísifo ser bem sucedido? E porque razão o sucesso deveria, obrigatoriamente, estar no objectivo final? O sucesso de Sísifo não consiste na esperança utópica de manter o rochedo no alto da montanha mas, pelo contrário, nas suas inúmeras descidas ao sopé da montanha. Onde estaria a pena de Sísifo, se a cada mínimo rolar da rocha, fosse sustentado pela certeza de ser bem sucedido? O sucesso, assim como a felicidade de Sísifo, estão na sua incerteza e na sua desesperança. E, por isso, é trágico e é absurdo.

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