sexta-feira, 17 de junho de 2011

Nuno Crato - Ministro da Educação - Entrevista de 2010

Nuno Crato: "No Taguspark o passado é passado"
por Miguel Pacheco e Inês Cardoso, Publicado em 12 de Junho de 2010

Do autor da "Matemática das Coisas" esperava-se tudo menos que fosse chamado, de repente e sem aviso, para a presidência do Taguspark. Afinal o novo presidente - um académico - substitui na administração Américo Thomati e João Carlos Silva, arguidos no processo Face Oculta juntamente com Rui Pedro Soares. Sobre o parque, Nuno Crato ainda está a acertar ideias, mas já tem uma certeza: a ligação às universidade e ao mundo científico passa a ser prioridade.

Este projecto do Taguspark é um mundo novo que se abre?

Não sei se é um mundo novo, sei que é um desafio, uma viragem que naturalmente é transitória. Se as coisas correrem bem, vou estar aqui três anos.

Vai ter de sacrificar a vida académica?

Alguma parte vou ter de sacrificar, é inevitável, estas coisas ocupam muito tempo e exigem grande dedicação. Nada se faz na vida sem custos. Eu sou das pessoas que julgam, à partida, que conseguem fazer tudo, mas depois a realidade mostra que não se consegue fazer tudo ao mesmo tempo.

O convite surpreendeu-o?

Surpreendeu-me imenso. Pensei bastante, é um desafio, uma coisa difícil, mas por fim fui convencido, como se vê.

Não o assustou a projecção mediática do processo de corrupção? Não tem medo que os fantasmas do passado e da ligação ao processo Face Oculta? (Américo Thomati saiu do conselho de administração do Taguspark, depois de, com os administradores João Carlos Silva e Rui Pedro Soares, ter sido constituído arguido pelo Ministério Público por suspeita de corrupção passiva para ato ilícito)

Um bocadinho. Mas o Taguspark tem uma missão nobre, de juntar indústria, ciência, inovação tecnológica, educação... O episódio recente foi muito aborrecido, mas de certeza que se vai ultrapassar muito rapidamente.

Com a realização de uma auditoria, os próximos meses ainda vão ser muito centrados no passado?

Centrados em ultrapassar o passado.

Antes de surgir este convite, o que é que lhe apetecia fazer?

Vou sair de presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática dentro de três semanas, porque vai haver eleições e eu não me recandidato. Já lá estive três mandatos, não faz sentido mais tempo, porque é preciso renovação. Trabalho também na Fundação Francisco Manuel dos Santos. Estava a pensar dedicar-me um pouco mais à fundação e sobretudo esperava ter uma vida um pouco mais calma, escrever uns livros que tenho na cabeça... Depois apareceu este convite.

Que partiu de Isaltino Morais?

O convite foi de três entidades, o dr. Isaltino Morais, a Universidade Técnica de Lisboa e o Instituto Superior Técnico. Como estou na reitoria da Universidade Técnica, é um convite ao qual seria difícil dizer que não. Mas com todo o respeito que me merecem as pessoas que me convidaram, não tem a ver com as pessoas. O facto de ser um desafio novo pesou um bocadinho.

Estar muito ligado a Oeiras também?

Claro que a ligação a Oeiras pesou, nem que fosse por o Taguspark ser ao lado da minha casa! Mas acho que uma pessoa tem de pensar por si.

Deixa o ensino e as aulas para ser destacado para o Taguspark...

Sim, vou ter menos tempo para ensinar.


Mas continua crítico do nosso sistema educativo. Na semana passada soube-se que os alunos do 8.o ano com mais de 15 anos poderão saltar directamente para o 10.o É um erro de cálculo?

À partida, a medida não me parece positiva. Dirige-se a alunos que reprovaram, portanto têm dificuldade em seguir as matérias habituais. E agora vão ser capazes de fazer um exame às disciplinas todas, de repente, para passar? Não faz muito sentido, a não ser que se esteja a pensar que os exames vão ser muito fáceis. Habitualmente não se legisla sobre assuntos utópicos, ninguém legisla sobre os horários em Marte porque ninguém vive em Marte. Ou é uma medida absurda, porque não incide sobre quase ninguém, ou então está a pressupor que os exames vão ser muito fáceis.

Criou-se a ideia de que o sistema não consegue resolver o problema destes alunos.

Nós temos um grande problema no sistema de ensino e em Portugal em geral: pensamos que todos são iguais e que não se pode progredir se não for todos ao mesmo tempo e todos da mesma maneira. Não é verdade. Há alunos com mais vocação para Letras, outros para Ciências, uns querem estudar outros não, alunos que andam mais depressa, os que andam mais devagar... E nós pensamos que sermos inclusivos - o chavão da moda - é fazer toda a gente andar ao mesmo tempo, o que só se pode fazer pondo-as a todas a andar devagar. E as excepções são para os que andam mais devagar, quando deviam ser feitas em todos os sentidos. Porque não se abre uma excepção destas para os alunos que estão a marcar passo no básico e com 13 ou 14 anos podiam estar no secundário?

Ensinar a várias velocidades?

Temos de fazer isso em Portugal, é indispensável. Devíamos ter alunos que conseguissem fazer as coisas de forma mais rigorosa e avançada, alunos que fizessem o percurso médio - a larga maioria - e alunos com apoios especiais. É um sistema que existe em muitos países.

Mas para diferentes velocidades não teria de haver professores com diferentes qualidades?

Ser professor é das profissões mais versáteis do mundo. Um professor de Matemática pode ensinar a diferentes velocidades.

É defensor de um exame de acesso à profissão. Mas um exame não avalia capacidades como saber comunicar com uma turma?

Não apanha...

E o que é mais importante para um professor?

Saber bem a matéria que vai ensinar. Depois é preciso ter uma certa capacidade de comunicação. Mas se não souber bem o que vai ensinar não está à vontade para conseguir motivar. A parte de saber bem a matéria podemos avaliar. A capacidade de comunicar aprende-se em formação, dialogando com os alunos, é uma fase posterior. O exame é necessário porque as escolas que formam professores apresentam professores com características muito diferentes.

O problema está no desequilíbrio entre cursos superiores?

Sim e neste momento passa-se uma coisa muitíssimo injusta. Os professores entram ou não na profissão apenas pela nota final de curso. Isto é extraordinariamente injusto porque toda a gente sabe que há escolas mais rigorosas e outras muito menos exigentes. A mensagem que se transmite com isto é, aos candidatos, que tirem o curso na escola de onde possam sair com melhor nota, às escolas, que dêem as melhores notas possíveis para terem maior taxa de sucesso.

Concorda que muitos dos problemas da escola, hoje, começam em casa?

Acho que sim. Há uma responsabilidade de todos, dos pais, dos professores, do ministério...

Os pais deviam perder alguma auto- ridade e os professores voltar a ga- nhá-la?

Maior autoridade para os professores não significa menor autoridade para os pais. O que precisamos é de perceber que a autoridade dos pais deve ser exercida não criticando os professores por serem exigentes, mas ajudando os professores a serem exigentes. É raríssimo um pai entrar numa escola por o aluno ter boas notas. Em contrapartida, aparecem muito frequentemente pais a queixar-se das fracas notas dos filhos, sem estarem preocupados com saber se eles de facto sabem ou não sabem o correspondente às notas.

No seu caso, que tem filhos, como é que os educou? Como é que se aplica a receita em casa?

Vivi nos Estados Unidos muitos anos e os meus filhos praticamente estudaram lá a primeira parte da vida deles. E o facto de eu dizer isto não quer dizer que tenha procedido da melhor maneira! Pelo menos tenho tentado transmitir a ideia de que há valor no conhecimento e de que têm de estudar e saber as matérias. Que o conhecimento deve ser o mais profundo possível e que aquilo que os professores dizem pode parecer chato, mas é importante para o futuro.

Às vezes diz-se que estamos a bater nos mínimos, sobretudo em português e matemática. Concorda?

Estamos a bater nos mínimos, estamos.

Porquê, por falta de exigência dos professores?

Por falta de exigência do ministério. No fundo, somos todos culpados, mas há uma entidade que é mais culpada que os outros, porque tema responsabilidade de estabelecer os mínimos e de promover o conhecimento. Essa entidade, o ministério, desistiu de o fazer.

Quando?

Há uns 20 anos. Foi desistindo, de há 20 anos a esta parte. Primeiro os exames praticamente acabaram, depois reapareceram mas só no secundário. Depois o ministério deixou-se dominar por uma série de teorias totalmente ineficazes sobre a aprendizagem, teorias românticas de que a criança deve aprender só o que gosta, que quando gosta aprende por si, que a disciplina vem de gostar da escola...

Isso é disparatado porquê?

É romântico no sentido de idealista e é uma ideia lunática. É inevitável que a criança seja confrontada com coisas de que não gosta. E não se pode pensar que tudo é feito em função do gosto. Claro que devemos tentar tornar as matérias mais agradáveis, mas sem sacrificar os conteúdos. Os estudantes têm de perceber que existem barreiras que têm de ser ultrapassadas, existe a pressão da sociedade - pais e professores - para que aprendam as coisas. É romântico deixar tudo à motivação. O grande culpado da má educação em Portugal é o ministério.

E quando falamos de mínimos isso acontece nas universidades também?

Nas universidades talvez não estejamos a bater no fundo como noutros locais, mas a situação vai piorar a partir do momento em que se estabeleça a escolaridade obrigatória até ao 12.o ano. O último relatório da OCDE sobre o ensino básico e secundário diz claramente que não é importante alargar a escolaridade obrigatória, porque o importante não é o número de anos que o aluno passa na escola, mas a qualidade da aprendizagem.

É um erro esse alargamento?

Nós não podemos dizer que o alargamento em si seja um erro. O erro é não se exigir um maior rigor na aprendizagem que já existe. Se me fosse dada a escolha, eu iria primeiro consolidar as coisas até ao 9.o ano e depois preocupar-me em alargar a escolaridade obrigatória. Mas nós em Portugal, e também na Europa, particularmente em Bruxelas, olhamos mais para as aparências que para a realidade.

Gostaria de um dia estar na posição de ministro da Educação?

(Pausa) Sei lá! É muito difícil ser ministro da Educação e depende muito das circunstâncias. Ser ministro com um primeiro-ministro que não está interessado em apoiar as políticas para promover a aprendizagem real não serve de nada.

A experiência de professor é importante para um ministro da Educação?

O conhecimento dos problemas do ensino é importante. Mas não basta, é preciso ter ideias claras sobre as coisas.

No caso da actual ministra, é uma mais-valia?

Acho que sim. Tomou algumas medidas positivas. Uma delas foi a declaração de que ia fazer o exame de entrada na profissão para professores. A ministra anterior disse isso, passou três anos, conseguiu criar conflitos com toda a gente, mas não quis fazer o que era essencial, que era esta medida. Não teria criado conflitos quase nenhuns.

Com os sindicatos...

Os sindicatos representam quem lá está, não quem vai entrar. Não há o sindicato dos futuros metalúrgicos, há o sindicato dos metalúrgicos. Poderia ter alguma oposição do sindicato, porque uma das coisas mais negativas que se fez no anterior governo foi dar o poder quase absoluto às tendências mais radicais do sindicalismo dos professores. Dá a impressão de que não há mais nada que se possa fazer sem pedir autorização. Isso é uma péssima herança.

Há mais medidas anunciadas pela ministra que destaque?

Há uma coisa muito positiva que declarou fazer, que são as metas de aprendizagem. Nós temos uma série de programas que são fracos, estão mal estruturados, são palavrosos, pouco claros nos objectivos. E quando isso acontece o próprio ensino sofre muito. O facto de serem traçadas metas, conhecimentos concretos, mensuráveis, objectivos com o que os alunos têm que saber em cada ano de escolaridade, é altamente positivo.

Usou a expressão da beleza do rigor a propósito da matemática. Acha que o mesmo conceito é aplicável à vida, ao ensino, à economia, à política?

Sim, sim. Faz falta em tudo. Claro que o rigor tem significados diferentes consoante aquilo de que estamos a falar. Na matemática é uma coisa, na literatura é outra. Mas sim, acho que o rigor é uma coisa muito importante na vida.

E na política?

Na política também. Ser-se claro, ser-se honesto, dizer-se o que se pensa.

Também estamos a precisar de mais rigor?

Acho que estamos num ponto terrível. O país perdeu a confiança nos políticos a um nível difícil. O que se passa é gravíssimo. Se for na rua e perguntar a alguém qual o político honesto do actual governo, as pessoas todas dizem "sei lá". É grave as pessoas terem uma desconfiança tão grave nos políticos, na assembleia, no governo, em tudo. Agora a realidade é que algumas razões há para isso.

Com ou sem razão, algumas pessoas também dizem o mesmo relativamente a Isaltino de Morais, sobretudo quando esteve a braços com processos judiciais.

É um caso muito diferente. Estamos a falar de um autarca em Oeiras, que fez uma obra muito grande, e que tem sido votado sempre. Repare uma coisa, o estado actual da política em Portugal é um estado de desânimo pelo mal menor. As pessoas olham para o governo e pensam: "Nós não gostamos destas pessoas, mas o que se há-de fazer?" Isto é gravíssimo, as pessoas não olham para a actividade política como uma actividade digna, olham-na como uma coisa suja, de jogos de influência, de pouco interesse pelo que é o produto da política. É uma coisa muito degradante.

Qual é a solução?

É uma conversa inútil... Vamos tentar pensar em coisas positivas. Na educação, uma delas é dar maior liberdade às escolas.

No sentido da autonomia das escolas?

Não, isso é conversa, as escolas não têm autonomia nenhuma. Quando o ministério decide tudo, dos horários à colocação dos professores, como é que as escolas têm autonomia? Se caminharmos cada vez mais para dar autonomia, estaríamos a dizer às escolas que podiam desenvolver métodos pedagógicos melhores, adaptar-se aos seus alunos, à comunidade que têm, fazer pressão para acompanhar de forma diferente os alunos. Também não precisamos de um ministério das padarias. Precisamos de regras muito simples.

Menos ministério, mas mais claro..

Mais claro no que diz. O ministério devia sobretudo avaliar resultados e não controlar processos. Faz exactamente o contrário. Controla processos e não avalia resultados.

A avaliação dos professores...

... é indispensável. Mas feita com a avaliação do seu trabalho e o resultado do seu trabalho é o que os alunos sabem.

Mas o ambiente é essencial...

O que interessa é o valor acrescentado que o professor traz aos seus alunos. Um professor que pegue numa turma de 13 e acabe com 14 é, à partida, e se o fizer sistematicamente, pior professor que um professor que comece com 10 e acabe com 11. O que interessa é o progresso. Isto é a questão essencial para avaliar os professores. O ministério não quer avaliar a evolução dos alunos. Não quer avaliar os alunos.

E não quer porquê?

Porque tem medo dos resultados. O Ministério da Educação não quer expressamente avaliar os alunos. Não quer. As provas de aferição são uma anedota. Os exames são indigentes. Não há uma avaliação sistemática. Durante nove anos, os alunos têm 30 disciplinas diferentes e ao longo desses nove anos só são avaliados - externamente à escola - por duas vezes. Não existe praticamente aferição externa. E as provas de aferição são muito elementares.

E o ensino privado? Escapa?

Não, o ministério quer contaminar a escola privada com os defeitos da escola pública. Quer que tudo seja mau, mesmo que haja excepções. É o verdadeiro eixo do mal. Tivemos recentemente provas de aferição para o 4.o e o 6.o ano. Ao 6.o ano perguntava-se - com direito a usar máquina de calcular - quanto eram cinco mais dois. Também se perguntava quanto era oito a dividir por quatro - utilizando quadradinhos de chocolate, dando direito à máquina de calcular e permitindo desenhos. Isto é o nível a que se chegou. O ministério, quando permite que as provas tenham este tipo de perguntas, está a desautorizar o esforço dos professores. E só as escolas internacionais conseguem, por enquanto, fugir aos baixos níveis de exigência. Mas são caras e exclusivas.

Ainda há magia na Matemática, com calculadoras e outros métodos de cálculo?

Se hoje já há discos para que é que as pessoas aprendem a tocar piano? Devemos aprender a fazer contas. No século xix era necessário dominar um cálculo. Se for a um jantar de matemáticos, é natural que um deles utilize uma máquina de calcular. E ninguém se ri. Mas dominar o procedimento e perceber porque é que acontece assim dá-nos uma visão sobre o mundo. O que nos está a tornar preguiçosos é o uso indiscriminado da máquina de calcular. Aquilo para o qual as máquinas são fundamentais, eles não sabem. A máquina de calcular é muitas vezes utilizada para contas que devemos fazer de cabeça. Os alunos só devem usar máquina de calcular quando já sabem fazer contas e nunca antes.

O problema deste país, dos gestores, dos políticos, é não saberem a matemática das coisas...

(risos) É bom conhecer a matemática das coisas, mas há muitos outros problemas para além desse.

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