É forçoso que a verdade se contente em ser a coisa pobrezinha que é, e deixar desocupadas as graças que não lhe são próprias, para que se enfeitem com elas os outros modos e classes de coisas. A despeito do aspecto megalómano que primeiramente oferece a verdade, ao pretender abranger todas as coisas e engoli-las, trata-se, em rigor, de uma coisa nem mais nem menos modesta do que as outras.
Mesmo assim, não falta quem proclame o imperativo de ser dita toda a verdade aos portugueses. Dizem que é preciso dizer essa verdade toda, mas não a dizem e, quando a esboçam, não dizem mais do que aquilo que todos sabem. Enunciam a necessidade da verdade, mas não a verdade. Ainda bem, porque seria de um absolutismo doentio que alguém dissesse toda a verdade, não deixando nenhuma das suas parcelas para os outros. Com efeito, a verdade é uma coisa a partilhar, a dividir com os outros, a deixar, nessa generosa divisão, de ser o que é para que seja alguma coisa.
A levar a sério o apelo angustiado de comentadores, políticos, etc., para que se diga aos portugueses toda a verdade, talvez esse ímpeto prepotente se refira à verdade do futuro, isto é, à verdade profética, misteriosa, sagrada, venerável, indizível. Não pode, portanto, ser dita para não cair na vulgaridade, naquela coisa pacóvia que todos estão cansados de saber. É que a verdade do presente já não cai nessas malhas, porque já foi dividida, já todos têm a sua, e poucos são os que duvidam dela.
Essa verdade do futuro, profética, esse saber misterioso e místico é intransferível e, por essência, silencioso. Comunica-se, na melhor dos cenários, por um piscar de olhos, um jeito do corpo, um arranjo de cabelo, um movimento de lábios, um movimento distraído de mãos. É, mais do que uma promessa, um convite.
Então, para que estamos nós, povo português, a ser convidados? Nâo sei, não sou profeta, nem filho de profeta. Mas sempre posso dizer que quem aceitar o convite poderá um dia queixar-se de ter sido abusado, manipulado: aceitou correr atrás do perfume, cansou-se, suou até, mas a rosa manteve-se sempre a uma distância prudente.
O erro está em ver as coisas pelo extremo da sua solução e não pelo extremo inicial, que é o problema. Deste modo, algo que não é, nem tem mérito para ser, um dia poderá chegar a ser. Esta é a verdade toda: a verdade é uma coisa a ser. Que verdade queremos nós, afinal?
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