quinta-feira, 30 de junho de 2011

Crítica (construtiva) ao Programa do XIX Governo para a Educação


“O Governo prioriza, na Administração Local e Reforma Administrativa, áreas como:

  •  A Educação através da transferência para os Municípios de competências em matéria de construção, manutenção e gestão das escolas particularmente no ensino básico”. (pag. 70 do programa)


O programa do XIX Governo de Portugal para a educação traz felizes alguns fazedores de opinião e muitos professores, a acreditar naquilo que se ouve na comunicação social e nos corredores das escolas. Com efeito, as medidas que propõe, com algumas alterações lexicais, seriam ajustadas a qualquer área da vida nacional. A Educação, segundo este programa, não contém especificidade alguma que exija cuidados diferenciados de reforma ou de mudança. Não duvido que haja quem pense que é assim mesmo que deve ser, sobretudo porque, se fosse de outro modo, teria de optar por opinar sobre outros assuntos.

Para além de agendar para o próximo governo (2015-2020) a obrigação de construir uma visão estratégica para o sistema educativo, e de seleccionar um conjunto de slogans (“Substituição da facilidade pelo esforço, do laxismo pelo trabalho, do dirigismo pedagógico (seja lá o que isso for) pelo rigor científico, da indisciplina pela disciplina, do centralismo pela autonomia”(pag. 109 do programa)), o programa do governo não se aproxima sequer daquilo que me parece ser o essencial.

Um dos indicadores dessa fuga ao núcleo central do problema da educação é, justamente, a intenção de transferir competências de gestão das escolas (as outras já foram transferidas há muito tempo) para os Municípios particularmente no ensino básico. Ora:
1.     O governo aposta na “Estabilização do processo de organização dos agrupamentos de escolas, privilegiando a verticalização pedagógica e organizacional de todos os níveis de ensino”(pag. 113 do programa); O memorando de entendimento do governo com a “troika” obriga a “Reduce costs in the area of education, with the aim of saving EUR 195 million by rationalising the school network by creating school clusters” (pag. 3 do memorando).
2.     Transferir competências de gestão para os municípios “particularmente no ensino básico” não é compatível com a:
a.     Verticalização pedagógica e organizacional de todos os níveis de ensino;
b.     O imperativo de poupar 195 milhões num primeiro ano e 175 milhões num segundo, através do aumento de agrupamentos verticais de escolas em todos os níveis de ensino.
3.     Transferir competências de gestão das escolas, sem apresentar uma única ideia sobre como deve ser organizada a gestão do funcionamento das escolas, ou mantendo as regras que existem, é sacudir a água do capote, não é governar.

É, com efeito, na promoção da eficiência organizacional da escola que se situa o verdadeiro cerne de qualquer mudança positiva no sistema educativo. Por muito que custe a muitos compreender, o núcleo central da escola é, por seu turno, o conjunto formado por alunos e professores. Tudo o resto pode existir assim ou de outro modo, ou até nem existir, mas uma escola, na sua função social, será já uma escola quando haja alguém para aprender e alguém para ensinar, de forma sistematizada. O funcionamento da escola só pode ser eficiente, se considerar este conjunto, formado por alunos e professores, como a base da constituição das unidades nucleares de funcionamento:
1.     Os programas das disciplinas são exigências sociais, mas os grupos de docentes, os coordenadores de grupo disciplinar e os coordenadores de departamento curricular, formados a partir deles, não são unidades funcionais nucleares.
2.     Os clubes são iniciativas que podem ser muito interessantes, mas os docentes, os coordenadores de cada clube e o coordenador dos coordenadores, formados a partir deles, não são unidades funcionais nucleares.
3.     Os programas de prevenção e combate à indisciplina na escola são muito importantes, mas os docentes e os coordenadores, formados a partir deles, não são unidades funcionais nucleares.
4.     O programa de substituição de professores em falta (vulgo: OPA – ocupação plena dos alunos) é tranquilizador, mas os docentes e os vários coordenadores, formados a partir dele, não são unidades funcionais nucleares.
5.     O programa de apoio educativo é indispensável, mas os professores e o coordenador, formados a partir dele, não são unidades funcionais nucleares.
6.     Os vários projectos de natureza não curricular poderiam até ser mais interessantes, mas os docentes e os coordenadores de cada projecto e o coordenador dos coordenadores, formados a partir deles, não são unidades funcionais nucleares.
7.     As turmas e conselhos de turma não podem ser unidades nucleares funcionais porque pulverizam a organização da escola.
8.     As equipas educativas podiam ser unidades funcionais nucleares, mas não são funcionais, porque são torpedeadas por todas as outras coordenações e só se concretizam as suas deliberações nos conselhos de turma.

A descrição, feita nos oito pontos anteriores, das equipas de trabalho que se constituem numa escola ou agrupamento de escolas, só pode pecar por defeito. Desta fragmentação organizacional resulta
1.   Que, no mínimo, 80% dos professores tenham de assumir alguma modalidade de coordenação (director de turma, coordenador de departamento curricular, etc.).
2. A inevitabilidade de o coordenador, responsável pela avaliação do desempenho dos professores, ser coordenado, pelo menos numa das suas actividades, por um qualquer professor avaliado.
3.     Que um aluno que precise de apoio educativo tenha de esperar pela reunião do conselho de turma, para ser encaminhado para a equipa de professores que presta esse apoio.
4.     Que assuntos tratados numa equipa só sejam operacionalizáveis em outra equipa.
5.     Que o combate à indisciplina possa ser um assunto estranho ao conselho de turma e tratado por uma equipa externa àquela que lida todos os dias com o aluno em causa.
6.     Que os professores tenham, nas suas várias actividades, de se preocupar mais em articular o que, na sua origem, está desarticulado, do que em ser realistas e pragmáticos na superação de dificuldades.
7.     Que o formalismo substitua, com prejuízo óbvio, a substância das iniciativas e das soluções.

Pode o governo deixar ficar as coisas como estão, com a ideia de deixar espaço livre à iniciativa das escolas, só que, ficando como estão, não existe qualquer espaço livre, a não ser que se estimule a desobediência das escolas às leis da república portuguesa.

Se o governo pretende mudar, ou melhor, se pretende que um outro governo venha a mudar muito lentamente, com efeitos práticos a partir de 2030, esta situação, então estamos conversados. 

Se pretende mudar alguma coisa, a partir de agora, seria bom que o programa de governo o dissesse.

O que me parece certo é que apostar na autonomia das escolas e na municipalização da gestão (ou de parte da gestão) das escolas, sem que o governo assuma a liderança de transformação das suas condições de funcionamento, é uma fuga à responsabilidade.

Pelo contrário, é preciso repensar a escola, a partir de um modelo funcional baseado em equipas educativas (formadas, a partir de um conjunto de alunos correspondente a 4 ou 5 turmas actuais, pelos seus professores) que assumam a responsabilidade de:
1.     Cumprir com rigor científico as exigências dos programas;
2.     Providenciar sistemas e modalidades de apoio educativo aos seus alunos
3.     Agir de forma preventiva e correctiva nos comportamentos de indisciplina e violência
4.     Garantir a substituição de professores que tenham necessidade de faltar
5.     Contribuir para a elaboração e actualização do Projecto Educativo da Escola
6.     Flexibilizar a gestão do currículo, de forma a garantir a sua mais elevada eficiência para todos os alunos
7. Gerir, com autonomia, respondendo perante o director da escola, todas as funções, actualmente atribuídas ao conselho de turma.
8.     Proceder à avaliação do desempenho dos professores, através do seu coordenador.

Nestas condições, é possível conceber e pôr em prática iniciativas que correspondam a algo que se possa chamar “autonomia” das escolas. Também parece mais viável proceder a transferências de competências de gestão para os municípios, não para um nível de ensino em particular, mas para todos.

No entanto, é preciso esclarecer o que se quer dizer com “competências de gestão” a atribuir às autarquias. Não será seguramente a gestão das escolas: para isso, está lá o director. Mas faz todo o sentido que estruturas municipais:
1.     Assumam a tarefa de avaliação do desempenho das escolas e do seu director
2.     Se responsabilizem pela promoção de programas de apoio à aprendizagem não curricular
3.     Assumam responsabilidades no domínio da organização das ofertas educativas e formativas aos alunos e das respectivas redes
4.     Promovam programas de formação contínua a professores
5.    Coordenem e promovam a execução de projectos nacionais (leitura, matemática, educação sexual, etc.)

Mas não devemos esperar por 2015, muito menos por 2030, para começar a trabalhar nesse sentido.
Com efeito, a nível municipal, tal como no interior das escolas, existem também indicadores de estruturas disfuncionais, em particular, os conselhos municipais de educação e os conselhos gerais de escola.

Para abreviar, digamos que não faz sentido que os conselhos gerais (que agrupam as autarquias, os professores, os funcionários das escolas, os pais, organizações da comunidade) sejam constituídos a nível de escola ou agrupamento de escolas. A fragmentação, por todas as escolas e agrupamentos de escolas do concelho, da participação das organizações da comunidade, externas à escola, retira-lhes qualquer eficácia. Se a ideia era agrupar, depois, os vários conselhos gerais, o melhor teria sido não os dividir desde o início.

O redimensionamento destes conselhos gerais para o nível concelhio, ou, de preferência, para o nível de unidades territoriais, dispensa a existência dos conselhos municipais de educação. De qualquer modo, é a esta estrutura municipal (qualquer que seja o seu nome), a ser coordenada pela autarquia, que se deve atribuir a responsabilidade de progressivamente assumir as escolas de cada unidade territorial como suas.
Esta evolução é urgente; se não a começarmos desde já, é muito provável que aquilo que seja necessário fazer mais tarde já seja outra coisa, igualmente complexa que, por isso mesmo, tenderá a ser adiada.

Jorge Barbosa, 30 de Junho de 2011

1 comentário:

Margarida Sa Pires disse...

Obrigado pelo visão objectiva, concreta e eficaz da situação. Vou espalhar pelos meus contactos. Pode ser que chegue aos ouvidos de quem tem o poder de decidir.
Reforço a ideia que deixei em 'InterActic 2.0'. Os professores só REagem. Geralmente demitem-se quando chamados a dar uma opinião. Este momento de autoavaliação até 31 de Agosto pode e deve ser usado nesse sentido. Não teremos, cada um de nós, o poder de decidir?