terça-feira, 8 de abril de 2014

Que Desgraça a Minha: Afinal, Serei Masoquista?

Que Desgraça a Minha: Afinal, Serei Masoquista?

Hoje pôs-se um dial lindo. Porque haveria eu de ter passado ontem à noite pela RTP1 à hora errada? Porque haveria eu de me confrontar com aquela coisa da educação especial? Terá sido o destino que me levou a passar por aquele canal na altura em que o meu amigo David Rodrigues estava quase a concluir a sua intervenção, e assim a convencer-me de que valeria a pena continuar no canal? Ou foi tudo má sina e enganos meus?
Não quero falar daquilo. 
Há, pelo menos, vinte anos que a conversa é aquela a que todos pudemos assistir na RTP1. Há, pelo menos, vinte anos que os pais, os administradores da educação e da segurança social, os profissionais de saúde, os académicos e os empresários da educação especial e do respetivo subsídio dizem a mesma coisa, ainda que com algumas palavras diferentes. A situação não evoluiu, muito menos beneficiou de algum progresso. Portanto, regrediu, por que o comboio continua em marcha, deixando as estações e apeadeiros em marcha atrás.
Há de facto muita emoção e muito juízo toldado neste assunto. Tirando estes fenómenos, alguns de puro egoísmo e sobranceria, não é os pais que devemos criticar. A maior parte deles não entende o que se passa. É natural que essa esmagadora maioria se enerve e se sinta profundamente desorientada. 
Aquilo que é condenável é que as suas queixas de ontem, dia 7 de abril 2014, tenham a mesma natureza das de há vinte anos atrás, pelo menos.
Aquilo que é condenável é que o governo português não tenha sido capaz de equacionar os problemas e de ter um plano para os ir superando de forma consistente, também se diz sustentada. Tem, pelo contrário, um grupo de trabalho para rever um Dec-Lei que, tendo resistido 10 vezes menos tempo do que aquele que veio substituir, nunca teve qualidade para se preservar mais do que um dia, gerando problemas como muitos daqueles que foram denunciados naquele programa de TV (deficiências permanentes e outros problemas… só para dar um exemplo).
Aquilo que é condenável é se esse grupo de trabalho não for capaz de inverter a decadência que o Dec-Lei, que está a ser revisto, gerou na Educação Especial e sobretudo no conceito e prática de uma educação inclusiva.
Aquilo que é condenável é que a representante da administração da educação ainda acredite na prioridade da afetação de recursos humanos para este ou aquele aluno e não diga, pelo menos (já que garantir não está nas suas mãos), que os recursos humanos das escolas são para todos os alunos e que a sua gestão eficiente (ou inclusiva) implica necessariamente uma outra organização da escola.
Aquilo que é condenável é que o subsídio de educação especial, um anacronismo com origem anterior ao 25 de Abril, ainda não tenha sido posto ao serviço de serviços afins à educação. Na verdade, esse subsídio tem origem em mecanismos de compensação da dispensa legal da escolaridade obrigatória. Inicialmente, só era atribuído a deficientes que fossem excluídos da escola regular, isto é, a quase todos. Algumas organizações de apoio a deficientes (associações de pais, na sua maioria) ainda nos finais do século XX promoviam formas subtis de exclusão escolar para aceder a esse subsídio sem dificuldades burocráticas. As instituições que, após o 25 de abril de 1974, se assumiram como promotoras da educação de crianças com deficiência, também encontraram nesse subsídio de educação especial uma das suas principais fontes de financiamento, contrariando de forma inequívoca os fundamentos da sua origem, entretanto obviamente corrigida. A confusão estava lançada: um subsídio à exclusão da frequência da escola estava a financiar a frequência de escolas especiais, tuteladas pelo ministério da educação, em contraponto com centros educativos tutelados pela segurança social. Quando, para resolver esta bagunça, o governo de Guterres decide que todas os estabelecimentos de educação, frequentados por alunos com deficiência, passavam a ter a tutela do ministério da educação e a beneficiar do seu financiamento, através do OGE, passou a sobrar um montante muito significativo de contribuições que a Segurança Social não sabia a quem atribuir, sendo certo que, fazendo parte dos regimes contributivos,  não podia ser utilizado para outro fim que não fosse o de subsidiar as famílias. A visão, o empreendedorismo, a inovação de alguns técnicos não demoraram a propor soluções para financiamento das sua atividades através desse dinheiro repentinamente disponível em grande uantidade. Abriu-se a caixa de Pandora. Muitas dessas iniciativas eram honestas e meritórias. Mas não estavam em sintonia com a legalidade do subsídio de educação especial. Este subsídio destinava-se e destina-se a financiar estabelecimentos de educação e professores especializados. O facto de, para despachar esses subsídios, se alargar o conceito de estabelecimentos de educação a empresas menos regulamentadas na sua atividade do que aviários (nem sequer eram regulamentadas), e o conceito de professores especializados a terapeutas, psicólogos e o mais que a imaginação pudesse angariar, gerou mais injustiça do que justiça. Há cerca de 15 anos, pelo menos, que se anda em busca de um procedimento uniformizado no país. Simplesmente, não é possível porque a abertura dos conceitos é muito mais compatível com a discricionaridade do que com o que possa estar certo ou errado: na verdade, nada está certo, o que facilita hipocritamente os cortes, em nome de procedimentos normalizadores, mas não clarifica direitos nem deveres. 
Compreendo a revolta dos pais. Não aceito a hipocrisia das empresas de educação especial. Nem aceito a incompetência da administração e do governo que não consegue resolver um problema com barbas que, para já, só requer regulamentação das organizações de técnicos de apoio às escolas e critérios de financiamento. Essa regulamentação não pode, não deve, manter ou alimentar a confusão entre técnicos de apoio às escolas com técnicos de complemento do Serviço Nacional de Saúde,  isto é, paramédicos cuja intervenção depende de diagnóstico e prescrições médicas (mas não de pediatras ou psiquiatras, por exemplo, a receitar fisioterapia em vez dos fisiatras). Essas empresas podem mesmo instituir-se como clínicas devidamente legalizadas pelos serviços de saúde. O que não podem, nem devem, é viver à sombra desta bagunça e não lutar, não propor a sua própria regulamentação, a sua legalização para defesa da qualidade da sua própria atividade, que muitas dessas empresas têm seguramente. Entretanto, seria dramático que, enquanto este processo de regulamentação esteja a ser negociado, sejam cortados os subsídios. Essa seria a forma mais cretina de estragar tudo. Esta pessegada dura já há tantos anos, que não seria problema, só para assegurar a manutenção (até ver) do dinheiro disponível, que se mantivesse durante mais dois ou três meses. A organização e a gestão de recursos disponíveis devem estar ao serviço de ideias claras e vantajosas para as crianças com deficiência.
Só que o problema é bem mais sério. Ao nível da educação, há pouco que possa ser feito por essas crianças que não passe por uma organização eficiente da escola. E o problema é que estamos cada vez mais distantes disso.

Embora não tenha sido apanhado completamente desprevenido, fiquei triste. Chorar alivia, mas não soluciona. Em todo o caso, deixo aqui uma lágrima para lavar o passado, e uma outra para lavar o futuro, como é habitual acontecer-me com os pingos de chuva.
Vou mesmo evitar dizer tudo o que penso sobre este assunto. Vou, por uma vez, ser moderado e não falar, por exemplo, de incompetência, promiscuidade, etc.

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