A palavra “representação” é uma palavra muito ambígua. Falamos de representações para nos referirmos a imagens, a símbolos, à atividade dos atores de teatro ou cinema, etc. A lista de significados possíveis dessa palavra é uma das mais ricas do dicionário. Aquilo que devemos reter no uso que aqui se faz do termo “representação” é que ele não se refere nunca a uma imagem ou cópia de uma coisa exterior, de uma coisa com realidade ontológica. Pelo contrário, devemos considerá-lo como referindo-se a uma re-apresentação de uma coisa previamente construída. De algum modo, Platão teve a intuição de que assim deveria ser o conhecimento, mas esteve muito longe de dar à sua perspetiva uma dimensão construtivista. A sua busca incessante do universal e imutável impedia-o de alguma vez equacionar o problema deste modo. A sua “re-apresentação” (reminiscência) seria a das Ideias do Mundo das Ideias, vislumbradas pela alma humana numa vida anterior.
Este conceito de “representação” aplica-se igualmente às representações ditas “icónicas”, como os desenhos e as pinturas. Se desenharmos numa folha de papel uma bicicleta, é possível que a maior parte das pessoas “reconheça” o desenho como representando uma bicicleta. Sublinhemos, desde já, a palavra “reconhecer”. O seu uso quer significar que essas pessoas veriam no desenho algo que já tinham visto antes. Poderíamos dizer que o desenho as faz repetir uma experiência conhecida. O mesmo se pode dizer da forma como os visitantes de uma galeria de arte representam no seu espírito os quadros que lá encontram expostos, ou da forma como cada um se representa mentalmente o sorriso da Gioconda.
Se mostrasse o mesmo desenho a um, digamos, indígena da Amazónia que nunca tivesse visto rodas nem bicicletas, não lhe seria possível representar a mesma coisa que representa a maioria dos indígenas da Europa. Para ele, o desenho nunca poderia representar uma bicicleta, porque não a reconheceria nele.
Este será, porventura, um exemplo banal e até improvável, mas ilustra bem aquilo que pretendo pôr em evidência, que mesmo uma representação icónica (de um desenho) só funciona através do recurso à evocação de experiências ou “conhecimentos” que já possuímos. Do ponto de vista construtivista, podemos formular esta tese, dizendo: uma re-apresentação só funciona se nos levar a executar uma operação (ou uma série de operações) que já tínhamos aprendido antes.
Passemos agora, então, a um exemplo de construção mental. Escolho uma situação muito simples, mas mesmo assim, inteiramente abstrata: a situação da criança que se encontra na fase de começar a aprender a formação do plural na sua língua materna.
Na língua portuguesa, isso é mais complicado do que, por exemplo, em língua inglesa, porque o fonema que indica o plural é mais variável. Em Inglês, com muito poucas exceções, o plural forma-se sempre com um “s” final. Mas não é o código fonémico que aqui está em questão. É, pelo contrário, o estádio anterior à codificação linguística, o estádio em que a criança aprende a distinguir os elementos experienciais sobre os quais constrói o conceito de plural.
(…)
Para “reconhecer” uma coisa, é preciso possuir uma espécie de estrutura modelo, mais ou menos permanente, com a qual possam ser comparadas as experiências atuais (a cada momento do presente). No entanto, embora possamos admitir que o processo, a que a criança recorre, até funciona muito bem, a verdade é que ele não é suficiente para que consiga reunir várias coisas reconhecidas sob o conceito de plural.
Para que tome consciência de que há uma pluralidade - neste caso, de ovos - é ainda necessário que a criança se aperceba de que realizou uma comparação com a sua estrutura modelo chamada “ovo” mais do que uma vez, e de que esta comparação conduziu a um resultado positivo mais do que num caso.
Este exemplo, apesar da sua simplicidade, mostra claramente que a atribuição de um plural a uma situação percetiva requer, para além do trabalho percetivo, uma operação reflexiva, isto é, uma espécie de consciência do que nós próprios fazemos. No exemplo dos ovos, é precisamente a consciência de ter reconhecido um ovo mais do que uma vez.
Se compreendeu este exemplo, poderá ser tentado a perguntar o que é que ele tem a ver com o problema das representações. Pois bem, já vimos que, para reconhecer um ovo, precisamos de ter uma estrutura modelo como termo de comparação. Digamos que esta “estrutura modelo” é um tipo de representação indispensável. Se não a tivermos, não seremos nunca capazes de recolher experiências a partir de um conjunto, de uma classe de coisas. Todas as coisas que isloamos no campo visual, por exemplo, seriam indivíduos e nunca seríamos capazes de concluir que um indivíduo é semelhante a outro.
Prosseguindo no exemplo até à construção do plural, é necessário introduzir um segundo tipo de “re-apresentação”, justamente aquela representação que é necessária para reconhecer essa operação reflexiva a que me referia quando fazia apelo à operação específica a que corresponde a formação do plural linguístico. Se não a reconhecermos como tal, não seremos nunca capazes de saber quando e em que condições devemos formar um plural.
Se aceitarmos esta análise, então teremos de falar de dois tipos de representações:
- As re-apresentações de objetos sensoriais;
- As re-apresentações de operações ou operatórias
O que é a filosofia (2013)
Jorge Barbosa