quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Contrato Social - O que devem saber mesmo (e sobretudo) aqueles que preferem a ignorância


O  Contrato social (1762) só pode ser bem compreendido na sua unidade de quatro livros que, em conjunto, formam o que é anunciado no subtítulo: exposição dos princípios do direito político (no comentário ao preâmbulo, ver-se-á melhor o que quer dizer esta ideia). Esses princípios são:
  1. Associação legítima (Livro I)
  2. Soberania do povo (Livro II)
  3. Forma de governo (Livro III)
  4. Coesão do Estado (Livro IV)
No comentário, será tida em conta esta preocupação com a unidade da obra de Rousseau. Mas temos de ser claros: a compreensão do Livro I e o bom uso do comentário aqui disponibilizado supõem uma leitura prévia de toda a obra..
Existem várias edições do Contrato Social em coleções de bolso. Uma das mais recentes é a de GF-Flamarion, 2001 que aqui será utilizada. O comentário que aqui se produz não tem os mesmos objetivos, nem segue o mesmo método do comentário que está incluído nessa edição. Portanto, não é nem uma duplicação nem um extrato. O Contrato Social pode, então, ser estudado, de forma independente e complementar, a partir desses dois comentários, ou de outros..  
Tema do Livro I

O livro I é preparatório dos seguintes: contém o início de cada um deles. Mas, nem por isso, deixa de ter uma unidade específica que corresponde à enunciação do problema. Este problema é formulado por duas vezes, uma no preâmbulo e outra no primeiro capítulo do livro I, e tem a ver com a legitimidade da ordem política: 1) “Pretendo saber se na ordem civil pode haver alguma regra de administração legítima e segura”; 2) “O homem nasce livre, mas, por todo o lado, está a ferros (...) Como é que esta mudança ocorreu? Não sei. O que é que a pode tornar legítima? Creio ser capaz de resolver esta questão”. 
Nos dois casos, Rousseau parte de um facto: a ordem civil, isto é, a ordem das sociedades humanas instituídas - por oposição ao “estado de natureza”, descrito no Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), no qual, por hipótese, não há relações estabelecidas entre os homens. Este facto é visto sob duas perspetivas. A primeira é a dos governos estabelecidos (administração equivale, no discurso de Rousseau, a governo). A segunda é a perda da liberdade. A questão é, portanto, dupla: é possível um governo legítimo? Uma ordem civil pode restituir a liberdade aos homens? Ver-se-á que a sua solução comum conduz estas duas questões à unidade.
objectivo do comentário. Método e Apresentação. 

A noção de comentário é suscetível de muitas definições. Mas bastará esclarecer como ela é entendida neste texto. Um texto filosófico é um pensamento em obra, um trabalho que um pensamento faz a partir do mundo que ele tem para pensar, de questões que ele se coloca, de pensamentos com os quais se confronta. 
Explicar um texto é colocar em evidência a forma como esse trabalho se realiza e dar conta dos efeitos que produz. Sempre que lemos um texto filosófico, fazemo-lo porque estamos comprometidos com um trabalho de pensamento. Abordamo-lo a partir do mundo que temos para pensar, de questões que nos colocamos, de pensamentos com os quais nos confrontamos. Presente na leitura de um qualquer texto, esse compromisso comanda todo o trabalho de explicação do texto. Quando é esta a dimensão que governa explicitamente a explicação, estamos a falar de comentário.
O modo de exposição pretende permitir que se navegue com facilidade no texto. A divisão em capítulos oferece bastante comodidade; será, por isso, respeitada. As referências sem indicação de página, tendo em conta que cada um pode ter acesso a uma edição diferente da mesma obra, mencionam o Livro, o capítulo, o parágrafo. Por exemplo, L I, Cap. III, § 2 deverá ler-se : livro I, capítulo III, parágrafo 2. 

Um livro de autor, em particular sendo esse autor Rousseau, não é de entendimento fácil numa primeira leitura. Acompanhar a leitura desse livro com a leitura de um comentário pode ajudar, mas nem por isso a tarefa deixa de se revestir de alguma complexidade, sobretudo porque o próprio comentário, respeitando o pensamento do autor, não pode ou não deve evitar confrontar-se com as articulações desse pensamento. Na verdade, a interpretação de um livro em particular implica, na maior parte dos casos, o conhecimento tão completo quanto possível da obra completa do filósofo. Mesmo que se verifiquem casos em que se possa dispensar o conhecimento da obra integral, esse não é seguramente o caso de Rousseau. A leitura parcelar da sua obra tem conduzido a interpretações contraditórias e a algumas até absurdas.
Tendo em vista facilitar a compreensão do comentário que segue, são aqui transcritas algumas das teses fundamentais do Livro I do “Contrato Social” (até ao cap. V):
  1. “O homem nasceu livre, e está a ferros por todo o lado”
  2. A família humana (social) está em descontinuidade com a família natural (animal)
  3. Os laços sociais são sempre de natureza convencional.
  4. Como todos os seres vivos, o ser humano tende para a sua conservação;
  5. Uma vez que tem condições para julgar sobre o que lhe é útil, o homem é senhor de decidir sobre o que lhe é adequado para se conservar.
  6. Se uma ordem política, baseada na relação dominação/servidão produz homens covardes, uma ordem política baseada na autonomia dos indivíduos produzirá homens aptos a exercer a sua livre vontade. 
  7. Uma ordem política legítima precisa de uma educação que torne os cidadãos aptos a exercer a sua liberdade.
  8. O poder político precisa da obrigação (do dever), coisa que a força não tem poder para lhe dar.
  9. Aquele que obedece verdadeiramente fá-lo voluntariamente
  10. Só o direito traz à ordem política a legitimidade e a segurança. 
  11. Autoridade é um poder ao qual devo obedecer por obrigação, isto é, por uma decisão livre da minha vontade. 
  12. Só há obrigação de direito, só há obediência voluntária
  13. A liberdade não é uma propriedade e, portanto, não pode ser alienada
  14. A paternidade não é uma propriedade
  15. A paternidade não detém todos os direitos sobre as novas gerações, mas tão só aqueles que são necessários ao cumprimento da sua missão
  16. A criança deve receber os meios para a sua conservação e os meios para se desenvolver como ser autónomo
  17. Nós não temos a nossa vida nem a nossa liberdade; nós somos vivos e livres, somos a nossa vida e a nossa liberdade.
  18. A convenção tem de reconhecer e preservar a liberdade daqueles que ela compromete
  19. Nenhuma ordem política pode basear-se na privação da liberdade.
  20. Por natureza, os homens não estão em guerra nem em paz uns com os outros, são “épars”(dispersos);
  21. A guerra é uma realidade política (não uma realidade natural).
  22. A guerra é uma modalidade de relação das sociedades políticas umas com as outras.
  23. Privarmo-nos da nossa liberdade é equivalente a suicidarmo-nos, privar um homem da sua liberdade é o mesmo que matá-lo
  24. A dominação de uma vontade por outra é a inscrição no espaço político de uma relação, cujo modelo é o estado de guerra
  25. Uma sociedade que se baseie na alienação da liberdade é uma sociedade que vive em estado de guerra consigo mesma
  26. A forma como se manifesta a existência de um povo como unidade política, é a expressão da sua vontade
  27. A formação da vontade que dá origem ao povo como “corpo político” é o “acto através do qual um povo é um povo”.
  28. Toda a decisão (deliberação) do corpo político (povo) implica em si mesma, como condição de possibilidade, a decisão de todos de querer algo em conjunto
  29. O “pacto social” não é um momento inicial, que dá origem à formação de um povo, mas um fundamento reiterado em cada “deliberação pública”, da vontade geral.

Preâmbulo

O preâmbulo, no início do primeiro livro do Contrato Social, foi redigido no final: utiliza uma terminologia que será explicada e justificada mais tarde. Ao redigi-lo, Rousseau tem um duplo objetivo: definir o objeto da sua “investigação” (§ 1) e mostrar o que a motiva (§§ 2 e 3).
O que Rousseau procura é uma “regra de administração”. A expressão pode induzir em confusão. Atualmente, uma “regra de administração” significa habitualmente o regulamento em vigor num serviço administrativo. Ora, não é disso que esta obra trata. A administração engloba, na terminologia de Rousseau, tudo o que diz respeito ao governo: a implementação e execução da lei. A regra não é um procedimento técnico, é aquilo que permite medir e avaliar. 
Procurar uma “regra de administração” é, então, procurar o padrão (o metro padrão, podemos dizer1) que permita avaliar as diferentes formas de governo e julgar a forma como um governo exerce o seu poder. 
Mas, quando se empreende uma investigação, convém saber que ponto de vista se assume, o que é que nos motiva. Ora, Rousseau responde com clareza a esta questão: empenhando-se nesta investigação, Rousseau tem a intenção de “se instruir” sobre o assunto. Para ele, é um dever porque, como cidadão de Genebra, tem o direito de votar. Isso significa que qualquer cidadão, na medida em que tem uma palavra a dizer sobre os “assuntos públicos”, isto é, a julgar a forma de governo e a forma como o governo cumpre a sua tarefa, deve ter uma ideia sobre a regra, ou sobre os princípios que um governo deve respeitar. 
Partindo desta articulação central do preâmbulo, é possível:
1) Fazer luz sobre a abordagem original de Rousseau,
2) Explicar a forma como formula o seu problema,
3) Compreender como relacionar a abordagem de Rousseau com a nossa. 
Uma Abordagem Original.

Nesta obra, Rousseau vai “escrever sobre a política” (§ 2). Não é o primeiro a escrever sobre esse assunto, e ele sabe isso. A sua obra inscreve-se na continuidade de uma longa tradição da filosofia política, cujos enquadramentos se encontram em Platão (no diálogo “O Político” e sobretudo na “República”) e em Aristóteles (em “As Políticas”). Mas Rousseau está sobretudo a pensar na filosofia política moderna. Segundo ele, essa filosofia política moderna é representada por alguns grandes autores, como Maquiavel, Bodin, Hobbes, Grotius, Pufendorf, Locke, Burlamaqui e Monstesquieu 2. Implícita ou explicitamente, como veremos, Rousseau confronta-se com estes autores. Mas, quaisquer que sejam os pontos de acordo ou de desacordo que tenha com cada um, a sua intenção é demarcar-se de todos eles. Pretende adotar um ponto de vista novo, o ponto de vista do cidadão. 
Um cidadão, diz ele, é um “elemento do soberano” (§3).Recorrendo a esta expressão, Rousseau antecipa o que pretende demonstrar a seguir. A soberania é o poder de legislar, de fazer a lei, de tomar decisões que obriguem todos os membros da sociedade. Numa república, isto é, num “estado legítimo”, o povo é o soberano: a sua vontade declarada, a vontade geral é lei. Através do seu voto, todos os cidadãos contribuem para a formação e para a expressão da vontade geral. É neste sentido que o cidadão é um elemento do soberano. É necessário, portanto, ter o cuidado de não confundir esta soberania, de que o povo é um elemento, com a soberania do governo (ou administração) que tem a seu cargo executar as leis e fazê-las respeitar. Esta tarefa é confiada aos magistrados: este termo de “magistrados” não designa somente aqueles que tenham a responsabilidade de sancionar as infrações às leis, mas, mais genericamente, todos aqueles que contribuem para pôr em prática as leis. 
Ora, quem, antes de Rousseau, “escreveu sobre a política”, fê-lo: 
  1. -  ou colocando-se no ponto de vista daqueles que pretendem influenciar os que governam: o pensador político pretende ser o conselheiro do príncipe. É o caso de Maquiavel.  
  2. -  ou colocando-se no ponto de vista dos príncipes: procura-se dizer o que deve ser um bom governo. Foi o que fez Platão na “República”, e os teóricos do “direito natural” como Pufendorf ou Burlamaqui.  
  3. -  ou observando e explicando como funcionam os diversos sistemas de legislação. É deste modo que Rousseau interpreta o “Espírito das Leis” de Montesquieu.  
Rousseau, por seu turno, pretende colocar-se no ponto de vista do cidadão. O cidadão tem, sobretudo, necessidade de estar em condições de se pronunciar sobre a legislação, sobre a forma de governo adotada, e sobre a forma como o governo desempenha o cargo que lhe foi confiado. É esta postura que determina o problema que Rousseau enuncia no § 1. 
A problemática do Cidadão.

O objeto do “Contrato Social” é, com efeito, um problema, o de saber se pode haver, ou não, “na ordem civil... uma regra de administração legítima e segura”. A ideia de “possibilidade” é suscetível de uma dupla interpretação: do ponto de vista teórico, a possibilidade é o caráter a priori pensável de uma ideia; do ponto de vista da prática, é o seu caráter realizável que importa considerar. Por seu turno, os dois adjetivos “legítima e segura” remetem para as suas dimensões. É legítimo o que é conforme aos princípios do direito. Uma regra de administração legítima é, portanto, um princípio de legislação e um princípio de governo baseado no direito. É seguro aquilo em que podemos confiar, que tenha solidez e que, por essa razão, seja realizável. Temos, portanto, de evitar a utopia que não tem em conta “aquilo que os homens são”, isto é, aquilo que governa os seus comportamentos, e “aquilo que as leis podem ser”, o que pode constituir um sistema legislativo viável.  
Estes dois imperativos têm de ser considerados em conjunto. Ao contrário dos “conselheiros do príncipe” que só se preocupam com a eficácia (que, aos olhos de um governante, é sempre a obediência dos subordinados), é necessário fazer prevalecer a legitimidade. E, ao contrário dos que preferem deduzir a política da moral, deve reconhecer-se que, nas suas relações no seio do estado civil, os homens são determinados pelo interesse. Note-se, entretanto, que estes dois princípios, que devem ser “aliados”, não desempenham o mesmo papel. O direito permite e autoriza: uma forma de legislação será admitida se respeitar os princípios do direito. O interesse prescreve: desempenha o papel de motor, porque é o interesse que motiva os comportamentos sociais. Uma comunidade política resulta do facto de os homens poderem encontrar nela possibilidades de satisfazer os seus interesses. 
O problema que se coloca ao direito político, deveríamos mesmo dizer o problema do direito político, é, portanto, o de saber se é possível que uma sociedade política respeite o direito, que seja legítima, e simultaneamente que satisfaça o interesse, isto é, que seja realizável. Ora, o ponto de vista do cidadão é aquele que permite que o problema possa ser colocado e, ao mesmo tempo, que possa ser resolvido. Porque, como elemento do soberano, o cidadão participa na tomada de decisões (estabelecimento das leis, constituição do governo), é um actor político e porque, embora submetido às leis e devendo obedecer aos governantes, deve também cuidar para que os seus direitos sejam respeitados. Dito de forma simples, o cidadão é aquele que tem interesse no direito. O direito político é o ponto de vista do cidadão sobre a política. Na sexta das “Lettres écrites de la montagne” (1764), Rousseau diz que este ponto de vista é de natureza “crítica”. Por crítica, devemos entender não a contestação, mas a diligência do espírito que põe os princípios à prova. A crítica da política é um dever do cidadão. 
Uma Abordagem que nos diz respeito.

Ao definir assim a motivação da sua investigação, Rousseau permite-nos pensar na nossa própria motivação e no nosso próprio ponto de vista, como o de um não especialista que lê o Contrato Social. Há dois tipos de especialistas na política: aqueles que têm a seu cargo exercer funções de governo, a que Rousseau chama magistrados, e aqueles que fazem da política o objeto do seu estudo (ciências políticas ou filosofia política). Ora, justamente, não é a nenhum destes especialistas que, em primeiro lugar, a política diz respeito, mas ao homem comum, ao cidadão. 
Aquilo que Rousseau diz de si mesmo, não valerá para qualquer membro de uma sociedade que se queira democrática? Ser cidadão é exercer um poder e, ao mesmo tempo, defender os seus direitos. Ser cidadão é ter o direito de “se instruir” nos assuntos políticos e é ter interesse neles. Esta é a forma mais conforme à intenção de Rousseau de ler este texto: ele quer dar-nos meios para exercer esse juízo crítico sobre a política, que constitui o nosso dever de cidadão.

Rousseau acabou agora mesmo (no preâmbulo) de formular o seu problema e de determinar como o vai abordar. E recomeça de novo. Será que a primeira formulação foi uma falsa partida? De forma nenhuma. O preâmbulo refere-se à forma geral do problema. Agora, trata-se de lhe dar um conteúdo e de indicar em que direção a solução deve ser procurada.
Colocar um problema é enunciar os dados que o definem e caracterizam. Rousseau enuncia os dados do seu problema de uma forma notavelmente concisa: “O homem nasceu livre, e está a ferros por todo o lado”. A liberdade e a servidão. Mas estes dados não são, os dois, da mesma natureza. O primeiro é uma tese. O segundo, uma constatação. Uma tese: o homem nasceu livre. A forma verbal escolhida (“est né”) poderia fazer-nos crer que se refere a um dado histórico: o homem nasceu livre no passado. Não é esse o significado que lhe deve ser dado. O uso que Rousseau faz desse tempo verbal, decalcado do Latim e do Grego, designa um estado: o homem, pela sua natureza, é livre. Por exemplo, ainda no francês atual, uma senhora, digamos a senhora Sarkosy, será identificada nos documentos oficiais como Madame Sarkosy, née Bruni (nascida Bruni - nome de família de solteira). É neste sentido que o termo “est né” (nasceu, ou é nascido) deve ser entendido. Foi isto mesmo o que compreenderam os redatores da Declaração universal dos direitos do homem, em 1789, quando escreveram: “os homens nascem e mantêm-se livres e iguais em direito”. Há aqui um pressuposto, explicitamente assumido, que diz respeito às relações dos homens entre si: nenhum homem está, naturalmente, submetido a outro. Paradoxalmente, o segundo dado, que é um dado de facto e que, portanto, é suscetível de ser objeto de argumentação através do recurso à experiência, é considerado por Rousseau como evidente, como óbvio. E isso, porque remete para a experiência comum, que ninguém pode contestar de boa fé. A dependência é uma condição comum aos homens. É de resto uma condição tão comum que não poupa sequer aqueles que são considerados ou que se consideram dominadores: “Assim se crê o senhor dos outros, que não deixa de ser mais escravo do que eles”. A perda de liberdade é um facto antropológico: não afeta este ou aquele homem em particular, mas a própria condição do homem.  
Estes dados bastam para enunciar o problema. Mas não nos devemos enganar. Este problema não é um problema teórico, não se trata de compreender como é que essa inversão pôde ocorrer; é um problema político, isto é, um problema prático: “como tornar essa mudança legítima”. O problema teórico já tinha sido colocado por Rousseau, a propósito da desigualdade no segundo Discurso (tinha tentado compreender como é que a passagem do homem para o estado civil se tinha traduzido no aparecimento e desenvolvimento exacerbado das desigualdades sociais). O Contrato Social situa-se num outro terreno, no do direito político. Tornar legítima esta mudança não é seguramente legitimar a servidão, é pensar como é que um estado civil pode ser conforme ao direito. Ao mesmo tempo é-nos apresentado o princípio da legitimidade: a liberdade. Se é verdade que a liberdade é a condição legítima da humanidade e a servidão a sua condição no estado civil, então o problema é o de saber se um estado civil, uma comunidade política, é capaz de reconhecer e respeitar essa liberdade.
A liberdade é o direito fundamental do homem. Poder-se-ia esperar que Rousseau defendesse esta tese, através de uma definição da natureza do homem. Era o que faziam aqueles a que se chamou os “teóricos do direito natural”. A via que ele vai seguir é diferente. Não é a natureza do homem, mas a dos laços sociais que estarão na base deste princípio essencial: nenhuma dependência natural existe entre os homens. A força pode produzir uma imposição (uma coacção), não uma obediência. Portanto, só o acordo livre das vontades - uma convenção - pode ser o fundamento de uma ordem política legítima. Ao contrário da imposição, a obrigação é essa relação, através da qual a obediência é apreendida como um dever. É assim que devemos entender a noção de ordem social, a respeito da qual Rousseau diz que é um “direito sagrado” e o “fundamento de todos os outros”.
Uma das formulações do problema colocado por Rousseau é então: como é que uma obrigação legítima é possível? A noção de convenção traz consigo a forma de uma resposta a este problema. Só a convenção está em condições de fundamentar uma obrigação dos homens uns para com os outros. É isto que os capítulo II a V vão demonstrar. Sobre a convenção, podemos construir uma ordem política. Isto é o que será demonstrado nos capítulos VI a IX. Das duas partes do livro I, a primeira procede, portanto, de forma negativa, refutando todas as outras hipóteses avançadas, e mostrando na livre convenção das vontades o único fundamento possível (no duplo sentido referido no preâmbulo) da ordem política. A segunda parte é exposta de forma positiva e dedica-se a mostrar o que é que esse fundamento convencional3 implica. 

Poderemos fundamentar na natureza a submissão dos homens uns aos outros? Se fosse esse o caso, haveria uma subordinação natural e, portanto, uma forma natural de organização política: uma ordem política legítima seria aquela que estivesse em conformidade com o que a natureza prescreve. É esta a hipótese que Rousseau contesta neste capítulo. A sua crítica desenvolve-se numa ordem de credibilidade decrescente das seguintes conceções:
  1. A primeira (§§ 1 a 3) faz da sociedade uma extensão da família, e do poder paternal o modelo do poder político. 
  2. A segunda considera que há uma diferença de natureza que faz com que certos homens estejam destinados a comandar e outros a obedecer.
  3. A última (§ 9) atribui a origem do poder político à transmissão por herança de uma autoridade confiada por Deus.
A refutação destas crenças é, para Rousseau, a oportunidade para apresentar as suas teses mais importantes sobre direito político.   
A Família é uma Instituição Humana.

Fazer de conta que aceitamos o que pretendemos refutar é um processo bem conhecido de crítica. Rousseau usa frequentemente este processo. Quando defende uma tese contrária à que está a comentar, podemos contar com uma refutação com recurso ao absurdo. É o que acontece, por exemplo, no capítulo III. Neste capítulo II, a sua abordagem é mais subtil. Na verdade, não se trata tanto de recusar a tese, mas de corrigi-la, e, finalmente, fazê-la virar-se contra si mesma.
A família é “a mais antiga das sociedades e a única natural”: esta é a tese. Rousseau admite esta tese. Com efeito, os laços familiares são os primeiros que os homens conhecem e esses laços têm a sua origem na natureza4. Mas a aceitação desta tese implica uma reformulação que a altera de uma ponta à outra. Rousseau reconhece a existência de um laço natural, determinado pela dependência em que se encontra a criança no domínio da sua alimentação e da sua segurança. Como toda a dependência (como se verá melhor mais tarde), esta também produz submissão, e não obrigação. Com efeito, esta dependência só dura enquanto durarem as suas causas. A sociedade natural familiar mostra sobretudo aquilo que ela não é. E ela não é uma verdadeira sociedade (“civil” ou “política”): não é uma instituição durável, impõe em vez de obrigar, baseia-se na negação da independência pessoal. Por outro lado, esta família natural não tem nada de propriamente humano, ela é uma característica dos animais em geral. A família humana não é a família natural, mas a família instituição. A família instituída mantém-se para além da dependência e baseia-se na vontade dos seus elementos. Se encontramos na família as características da sociedade, isso é porque a sociedade as colocou nela. Projetamos, na ideia que fazemos de família natural, aquilo que vemos na família civil. Desta posição, Rousseau retira duas teses importantes:
  1. A família humana (social) está em descontinuidade com a família natural (animal)
  2. Os laços sociais são sempre de natureza convencional 5.
Quererá isto dizer que os laços naturais não têm nada a ver com os laços sociais convencionais? De forma nenhuma. Têm um fator em comum: a utilidade. É considerado útil aquilo que serve para garantir a conservação de um determinado ser. O que faz com que um ser se ligue a outro é sempre a procura de alguma forma de utilidade. Esta é uma aplicação particular do princípio, segundo o qual, o “interesse prescreve”. Mas a dependência natural da criança, determinada pela necessidade, cria uma ligação necessária, enquanto a ligação social, através da qual um homem se liga a outros, é voluntária: resulta de um juízo sobre o que é, ou não, útil para a sua conservação. Encontramos aqui uma dupla tese sobre a natureza do homem:
  1. Como todos os seres vivos, o ser humano tende para a sua conservação;
  2. Uma vez que tem condições para julgar sobre o que lhe é útil, o homem é senhor de decidir sobre o que lhe é adequado para se conservar.
Conservar a sua vida, preservar a sua liberdade são, então, os direitos e os deveres fundamentais do ser humano. Estas teses não nos são apresentadas como condições prévias, mas como consequências necessárias de uma observação de facto: a diferença entre a família natural e a família humana. Em sentido mais lato, essas teses decorrem do próprio conceito de sociedade.  
Rousseau não só recusa ver na família o fundamento natural da sociedade, como também mostra que a sociedade contribui com a sua dimensão tipicamente humana para as ligações familiares. Deste modo, Rousseau dá um passo decisivo para a tese que pretende demonstrar: a ligação social é convencional, baseia-se no livre compromisso daqueles que o formam.  

A Servidão é sempre forçada

A segunda forma, que a hipótese de uma origem natural das ligações sociais pode tomar, é a ideia, segundo a qual os homens seriam, uns, destinados a comandar, e outros, a obedecer. Esta hipótese, tal como é analisada, não contempla, apesar de tudo, a escravatura. É, por um lado, mais restrita e, por outro, mais lata. Mais restrita, porque a escravatura pode ser vista como uma relação convencional. Não se trata, portanto, da escravatura por natureza. Mais lata, na medida em que a escravatura é uma relação de direito civil (o escravo pertence ao seu senhor), é mesmo a relação mais ampla de direito político que podemos considerar (um homem domina outro).  
É por esta razão que, recorrendo a um procedimento muito polémico, Rousseau coloca no mesmo plano Grotius, Hobbes, Calígula e Aristóteles. É neste último que encontra a afirmação mais clara do princípio que lhes é comum: alguns homens são naturalmente aptos para decidir e comandar, outros para obedecer e executar.6 Note-se que o debate poderia incidir sobre a aptidão para decidir e portanto sobre a capacidade para julgar. Mas Rousseau não aborda de forma nenhuma a questão deste modo. O seu ponto de vista é o da origem do consentimento dos homens à sua servidão, a que chama “covardia”: a renúncia à liberdade de querer. O mais notável é que ele considera esse consentimento como um facto: “Aristóteles tinha razão” (§ 8). Há uma manifestação deste facto antropológico identificado no capítulo I, § 1: a servidão é a condição efetiva do homem no estado civil. Aborda, deste modo, uma temática essencial da modernidade, a que o amigo de Montaigne, Étienne de La Boétie (“Le Discours de la servitude volontaire”) tinha dado a expressão mais clara e mais célebre7: se há dominação é porque a dominação é consentida, é porque os homens renunciam à liberdade da sua vontade. No entanto, Rousseau só concorda com o facto para contestar melhor a sua causa. Não é por natureza que os homens são covardes; é a dominação a que estão submetidos que os torna covardes. E esta dominação é uma força que limita as vontades. .
Este argumento traz consigo várias teses essenciais:
  1. A primeira, de grande modernidade, é a referência aos mecanismos psicossociológicos de interiorização da imposição e, por essa via, a importância da educação: tal como há uma educação para a dominação, também poderia haver uma educação para a liberdade. É, em larga medida, esta educação que o “Emílio” (publicado na mesma altura do Contrato social) pretende descrever. 
  2. Mas há também teses políticas que decorrem dessa sua postura:
    1. Se uma ordem política, baseada na relação dominação/servidão produz homens covardes, uma ordem política baseada na autonomia dos indivíduos produzirá homens aptos a exercer a sua livre vontade. Esta é uma dimensão muitas vezes negligenciada do conceito de vontade geral.
    2. Mais importante ainda: uma ordem política legítima precisa de uma educação que torne os cidadãos aptos a exercer a sua liberdade. 

Toda a dominação é imposta.

O tom irónico do último parágrafo deste capítulo diz muito a respeito do crédito que Rousseau atribui à hipótese que vai contestar. Um texto célebre de século XVII, o “Patriarca” de Filmer, tinha tentado fundamentar o absolutismo em termos próximos dos evocados aqui: os reis seriam os herdeiros dos chefes originários escolhidos por Deus para os homens. Locke tinha dedicado uma obra inteira, o primeiro “Tratado do Governo Civil”, a refutar esta tese. Rousseau tinha estranhado (no segundo Discurso) que tivesse sido possível dar-lhe tanta importância. Neste capítulo, bastam algumas linhas. É o suficiente para arruinar, de uma só vez, a pretensão de fundamentar um poder legítimo numa ordem de sucessão hereditária (de qualquer modo era este o princípio da monarquia francesa) e numa caução transcendente (que correspondia ainda à teoria da monarquia de direito divino). Na verdade, para Rousseau, esta pseudo-legitimação do poder é simplesmente uma manifestação de força. 
A forma negativa adotada pelo raciocínio nos capítulos II, III e IV não nos deve enganar: a série de refutações a que Rousseau se dedica orienta-se, de facto, para a demonstração de várias teses positivas. Essas teses serão todas reunidas no capítulo V na seguinte afirmação: “temos sempre de recorrer a uma primeira convenção”. Este capítulo III sobre o “direito do mais forte” só pode ser bem compreendido dentro da perspetiva de que é indispensável uma primeira convenção. O objetivo de Rousseau não é o de demonstrar que a força não dá nenhum direito, mas sobretudo o de pôr em evidência as consequências que tem de admitir quem concorde com essa tese.
Mais uma vez, o seu ponto de partida encontra-se na realidade das sociedades políticas. Que o direito positivo (entendido como o conjunto de prescrições legais em vigor) seja muitas vezes o resultado de uma relação de força travestido em direito, e que a obrigação seja um disfarce de dominação, isso não é uma ideia muito nova. Rousseau, no capítulo II, citando o Marquês d’Argenson, já tinha sublinhado esta ideia numa nota. Neste capítulo III, recorda que este é um assunto muito propício à ironia. Podemos, por exemplo, pensar na célebre “moral” de La Fontaine: “A razão do mais forte é sempre a melhor”. 
Mas Rousseau parte de uma postura diferente: Não se limita a constatar, ele também explica. Para ele a origem deste facto está na própria natureza da ordem política. Uma sociedade civil, ou política, consiste numa ordem instituída. A instituição é o estabelecimento de uma regra e a constituição de uma ordem estável. Ora, a força é, por natureza, impotente para formar uma regra (ela só produz efeitos) e para produzir uma ordem (ela só é efetiva no momento em que se exerce). Logo que a imposição diminui, os efeitos desaparecem, deixa de haver obediência ao poder. O poder que pretenda perdurar tem, portanto, necessidade de obter a aparência de um poder de direito. Quantos golpes de estado procuraram perpetuar-se com o aval de referendos! Pascal, cujas obras Rousseau apreciava, tinha mostrado nos “Pensées” (Secção V, n° 304, na edição Brunschvicg), como as “cordas da imaginação” assumem o controlo das “cordas da necessidade”. O poder político precisa da obrigação, coisa que a força não tem poder para lhe dar. Esta é a tese de Rousseau. 
Rousseau, no entanto, faz este argumento dar mais um passo em frente, deslocando-o para o terreno do direito político. O simulacro do direito, por uma espécie de homenagem do vício à virtude, põe em evidência aquilo que procura imitar. A verdadeira obediência não pode ser obtida pela imposição, tem de basear-se no consentimento daquele que obedece. Aquele que obedece verdadeiramente fá-lo voluntariamente. É por isso que a obediência por prudência não é uma verdadeira obediência. Ser prudente é ter em conta as consequências: se desobedecer, sofrerei este ou aquele castigo. Neste sentido, é uma simples antecipação da imposição. Uma linha divisória separa a imposição, que tem a ver com a necessidade (encadeamento de causas e efeitos) da obediência que tem a ver com a moralidade (acto de vontade).  
O argumento pelo absurdo que é apresentado no § 2 reproduz esse movimento, pondo em evidência, por oposição à força, aquilo que define o direito. São consideradas duas dimensões: a relação com o tempo e a obediência por dever. A força, como acabamos de ver, é, por natureza, precária. Uma relação de forças é sempre instável, porque uma força pode agora aumentar e depois diminuir. Isso é não só possível como é mesmo necessário: ao exercer-se, a força desgasta-se e enfraquece. Não só “ninguém é alguma vez suficientemente forte para ser sempre senhor”, como também “a dominação obtida pela força está inexoravelmente condenada a ver desaparecer a sua superioridade”. Uma força, que deixe de ser eficaz, não é uma força, mas uma fraqueza. O direito, pelo contrário, na medida em que exprime o que deve ser e não o que é, escapa à usura do tempo: podem desrespeitar o meu direito (retirar-me um bem, privar-me da minha liberdade) que nem por isso deixa de ser um direito meu. O direito distingue-se da força também porque não produz uma imposição que implique o desprezo pela minha vontade, mas um dever que, do interior, determina a minha vontade. Por um lado, a obediência por imposição é um simulacro da obrigação, e, por outro lado, é um simulacro ineficaz: essa obediência é afetada pela mesma precariedade da força de que ela é o efeito. Só o direito traz à ordem política a legitimidade e a segurança.   
O terceiro parágrafo, ao retirar as consequências do que acaba de ser dito, destrói, nos seus fundamentos, o argumento tradicional, segundo o qual era um dever dos cristãos obedecer aos governos instituídos. Era deste modo que os teóricos do “direito divino” (em particular, Bossuet na sua Política retirada das próprias palavras da Escritura) interpretava esta passagem de uma Epístola do apóstolo Paulo (Romanos, 13, 1-2): “Que cada um se submeta às autoridades instituídas. Pois não há autoridade que não venha de Deus, e aquelas que existem são constituídas por Deus. Aquele que resiste à autoridade rebela-se contra a ordem estabelecida por Deus”. As duas analogias, sugeridas por Rousseau, a da doença e a da pistola do bandido, têm a função de recusar este emprego da noção de autoridade. Uma doença é uma coisa da ordem da necessidade, a ameaça de um bandido é uma coisa da ordem da imposição. Uma e outra são forças, não autoridades. Para Rousseau, autoridade é um poder ao qual devo obedecer por obrigação, isto é, por uma decisão livre da minha vontade. 
Só há obrigação de direito, só há obediência voluntária: esta é a tese principal deste capítulo. Sem uma obrigação e uma obediência deste género, não é possível nenhuma ordem política. Este é um princípio do direito político e não um princípio normativo imposto do exterior à política. O direito político consiste, então, em estabelecer as normas (ou princípios) que decorrem da própria natureza da ligação política.

Não devemos deixar-nos induzir em erro pelo título deste longo capítulo. Na verdade, Rousseau não se refere à escravatura em geral. No capítulo II, já tinha refutado a hipótese, segundo a qual haveria escravos por natureza. Esta hipótese não é reexaminada aqui. Sobretudo, Rousseau não discute diretamente (fá-lo-á como um incidente) a questão de saber se a escravatura pode ser legítima. Uma ideia desta natureza parece-lhe absurda, mas, sobretudo, entende que não merece ser objeto de debate aqui.
O que ele pretende demonstrar, já o sabemos, é que a autoridade política só pode basear-se numa convenção. A tese que pretende refutar, neste capítulo, é muito mais perigosa para ele do que as precedentes. Consiste, com efeito, em afirmar que alguns homens podem voluntariamente, por uma convenção livremente adotada, desfazer-se da sua liberdade em proveito de outros homens, portanto, tornar-se escravos. No fundo, seria uma espécie de “contrato de submissão”. Se tal coisa fosse possível, então teríamos que admitir também a possibilidade de uma servidão legítima. O capítulo “Da Escravatura” tem o objetivo demonstrar que uma convenção de submissão é uma coisa impossível. Desta vez também, a refutação é um meio, não um fim. Rejeitar esta hipótese implicar enunciar uma outra: só é possível uma convenção, supondo e mantendo a liberdade daqueles que a celebram entre si. Este é o desafio de Rousseau. 
A estrutura do capítulo IV é complexa. Vejamos em primeiro lugar as suas articulações. 
Duas partes deste capítulo destinam-se a apresentar os dois argumentos que pretendem fundamentar a submissão numa convenção. O primeiro argumento sustenta que uma convenção desse género pode ser celebrada entre um povo e os seus “chefes” (§§ 2 a 6), trocando o povo a liberdade pela segurança. O segundo argumento (§§ 7 a 13) admite a possibilidade de uma convenção de submissão celebrada entre o vencedor e o vencido, trocando o vencido a liberdade pela vida.
A primeira parte apresenta dois momentos contrastados. O primeiro (§§ 2 a 5) mostra que, admitindo uma convenção através da qual um homem se tornasse escravo de um outro, seria impossível encontrar para isso um fundamento de ordem política. O segundo (§ 6) recusa essa suposição: a convenção de escravatura é, no seu próprio princípio, uma impossibilidade.
A segunda parte apresenta a seguinte tese: o direito de matar o vencido, ao fazer do vencedor senhor da sua vida (§ 7), mostra que a guerra é uma relação de um Estado com outro Estado, e não uma relação entre cidadãos (§§ 8 e 9). Desta tese, retira os princípios do “direito de guerra” que excluem o “direito de matar”. (§§ 10 a 12).
No fim do capítulo (§§ 13 e 14) reconduz essas pretensas convenções aos efeitos de imposições, e nega que possam fundamentar qualquer tipo de obrigação. 
Ao longo de todo este capítulo, seguindo um método, a partir de agora, bem estabelecido, a refutação é o meio usado para produzir teses positivas. É a essas teses que devemos estar atentos. 
Uma Analogia Impossível. (§ 2-5)

Rousseau começa por evocar uma analogia estabelecida por Grotius: a relação, através da qual “um homem em particular” pode “tornar-se escravo de quem queira” seria idêntica à relação através da qual um “povo livre” pode “submeter-se a uma ou a várias pessoas” 8. Esta relação pode ser equacionada em termos de alienação 9. Grotius vai buscar a sua definição de alienação a Aristóteles: “podemos falar da posse de uma coisa quando depende de nós aliená-la ou não. Por alienação, entendo a dádiva e a venda”10. Aceitando a definição de Aristóteles, Rousseau vai recusar a analogia, e depois vai mostrar que a liberdade não é uma propriedade, e, portanto, não pode ser alienada.
Um povo pode vender a sua liberdade? A venda é uma troca de um bem que se possui por um outro. Que pode dar um “chefe” em troca da submissão do povo? Os meios de subsistência? Podemos pensar assim, se estivermos a pensar na relação do senhor com o escravo: o senhor pode fornecer ao escravo os meios necessários à sua subsistência. No que diz respeito a um povo, esta suposição é absurda, pois os meios de subsistência, incluindo os dos chefes, são produzidos pelo trabalho do povo. Será, então, a segurança a moeda de troca? Este argumento, frequentemente invocado, também não é defensável: a segurança garantida pela submissão é a privação da liberdade. Esta troca consistiria, então, em perder a liberdade para ganhar... a perda da liberdade? Conceber esta alienação como uma dádiva ainda é mais absurdo: oferecer a sua liberdade para nada seria pura loucura. Este último argumento já anuncia a tese fundamental que será desenvolvida no § 6: renunciar à sua liberdade é renunciar a si mesmo. Um gesto desta natureza, equivalente ao suicídio, contradiz a “lei fundamental” (cap. II, § 2): a conservação de si mesmo é a primeira finalidade de toda a existência.
Rousseau mostra (§ 5) que, mesmo que aceitássemos uma alienação desse tipo, nem por isso poderíamos basear uma ordem política nela. Com efeito, uma ordem política exige a permanência no tempo (cf. Cap. III) que é o que que faz dela uma instituição. Ora, só podemos alienar aquilo que possuímos. Mesmo admitindo que cada um possui a sua liberdade, isso não implica que possua a dos seus filhos. Os nossos compromissos só valem para nós próprios. Não criam, portanto, nenhum laço social, nenhuma obrigação e nenhuma obediência duráveis. Este momento da argumentação é decisivo. É uma oportunidade para Rousseau insistir numa tese de princípio: as crianças “nascem homens e livres”. Mas, sobretudo, esta argumentação permite-lhe expor o essencial da sua conceção sobre a parentalidade e sobre a educação. A parentalidade não é uma propriedade. É uma relação, baseada na necessidade, que atribui autoridade aos pais e lhes prescreve que cuidem da conservação e da formação dos seus filhos.Isto implica que a paternidade não detém todos os direitos sobre as novas gerações, mas tão só aqueles que são necessários ao cumprimento da sua missão. As crianças devem, portanto, ser educadas como seres destinados a ser livres: devem ser educadas para a liberdade. Estas teses constituem a base de uma teoria dos direitos da criança. A criança deve, não só, ser protegida dos abusos da autoridade paternal, como também ao direito à proteção deve ser acrescentado um direito em forma de crédito: a criança deve receber os meios para a sua conservação e os meios para se desenvolver como ser autónomo. 

Uma Alienação Impensável.(§ .6)

A conclusão desta primeira parte (§ 6) pode ter duas leituras. Do ponto de vista da refutação empreendida é uma espécie de incisão; se considerarmos a importância das teses e o seu lugar no conjunto do livro I, é o ponto de encontro, para onde convergem as análises anteriores e de onde decorrem as seguintes. Neste ponto de encontro, o conceito de alienação adquire toda a sua importância. Só podemos alienar aquilo que possuímos, o que exclui a possibilidade de alienar aquilo que é dos outros, ainda que sejam nossos filhos. Mas a exclusão a que Rousseau se refere aqui é outra: a nossa vida e a nossa liberdade são bens de que não temos a propriedade. A propriedade refere-se ao ter. Ora, nós não temos a nossa vida nem a nossa liberdade; nós somos vivos e livres, somos a nossa vida e a nossa liberdade. Elas qualificam-nos como seres humanos. É por isso que “renunciar à sua liberdade é renunciar à sua qualidade de homem”. Este argumento arruina completamente a afirmação inicial de Grotius, segundo a qual um homem pode “tornar-se escravo de quem queira”. 
A afirmação segundo a qual “é retirar toda a moralidade às nossas acções retirar toda a liberdade à nossa vontade” adquire, então, um duplo significado. O primeiro é moral. A esfera da moralidade é a das acções livres: só essas nos são imputáveis, só por essas somos responsáveis. O segundo é fundamental para o direito político. Uma ordem política só pode basear-se na obrigação: uma obrigação exprime um dever, não uma imposição. Quem seja privado da sua vontade não pode submeter-se a nenhuma obrigação, só se submete a imposições. Nenhuma ordem política pode, então, basear-se na privação da liberdade.
Do mesmo modo, as últimas linhas desta primeira parte são consagradas a uma análise do conceito de convenção, que retira à ideia de contrato de escravatura e à de de contrato de submissão qualquer consistência. O que é uma convenção? O acordo entre duas vontades. Para que esse acordo seja possível, é indispensável que essas vontades sejam livres e senhoras daquilo com que concordam. Ora, admitir que esse acordo possa implicar que uma das partes renuncie à sua liberdade é o mesmo que admitir que essa convenção destrua a condição na qual se baseia. Qualquer convenção supõe o reconhecimento e a conservação da liberdade daqueles que a celebram. Uma convenção de submissão é uma coisa impossível. À tese, segundo a qual só podemos basear uma autoridade política numa convenção, é preciso acrescentar uma outra: a convenção tem de reconhecer e preservar a liberdade daqueles que ela compromete. Este será o ponto de partida do capítulo VI.  

A Liberdade ou a Vida? 

Poderíamos questionar-nos sobre por que razão Rousseau não se dá por satisfeito com aquilo que conseguiu mostrar até aqui sobre este assunto. Com efeito, as bases que lhe permitirão apresentar o conceito de “pacto social” (que é aonde quer chegar) já foram todas estabelecidas. No entanto, ele ainda vai dedicar um longo desenvolvimento a uma hipotética troca da liberdade pela vida. Três razões podem explicar esta sua opção:
  1. A primeira é simplesmente porque esse era um argumento clássico (trocar a liberdade pela vida). Rousseau expõe-na a partir de uma afirmação de Grotius: no fim de uma guerra, o vencedor pode salvar a vida ao vencido em troca da sua submissão absoluta. (§ 7). 
  2. A segunda relaciona-se com a história do Contrato Social. Este livro é o que resta de um projeto muito mais vasto de Rousseau, as Instituições Políticas. Para além de outros assuntos, Rousseau pretendia tratar, nessa obra, das relações entre Estados e, portanto, da guerra. Podemos admitir que ele quis resumir e antecipar neste livro aquilo, que, sobre essa questão, era o mais importante para ele.
  3. Uma terceira razão parece, no entanto, mais claramente ligada à lógica do seu percurso: o que ele viu por trás do conceito de escravatura voluntária foi o alicerce da teoria da submissão, reconhecendo no pretenso “direito de matar o vencido” uma tese muito mais vasta sobre a origem das sociedades.  
O que poderia parecer uma digressão é na realidade uma necessidade que resulta da interpretação que Rousseau faz do argumento de Grotius; vê nele uma forma particular de uma conceção mais geral, a que Hobbes deu a expressão mais conhecida: a violência é a primeira modalidade de relação entre os homens, e a instituição política tem por função pôr fim a essa violência. A esta tese, Rousseau opõe duas teses indissociáveis: 
  1. Por natureza, os homens não estão em guerra nem em paz uns com os outros, são “épars” (dispersos);
  2. A guerra é uma realidade política (não uma realidade natural).

A Guerra Nasce da Sociedade Civil.(§§ .8 .e .9)

O debate inicia-se (§ 8) com uma tentativa de definição do conceito de guerra. Utilizamos, muitas vezes, o conceito de guerra como equivalente ao da violência. Referimo-nos, então, à violência entre os homens como a uma guerra. Rousseau recusa esta assimilação porque mascara as características fundamentais da guerra. A violência num estado de natureza pode ocorrer ocasionalmente entre dois indivíduos, a partir da concorrência para apropriação de um bem, mas desaparece tão rapidamente quanto aparece. Essa violência não constitui uma relação social. A guerra, pelo contrário, pressupõe uma certa permanência no tempo, a definição de objetivos e a preparação dos meios. Não tem a finalidade de assegurar a apropriação pontual de uma coisa, mas o estabelecimento de uma relação de propriedade. Ora, a própria ideia de propriedade (esta ideia será desenvolvida no cap. IX) pressupõe o estado civil, no qual a lei determine e proteja aquilo de que cada um é proprietário.
O estado de guerra e o estado de paz são, portanto, conceitos que designam, no estado civil, as modalidades das relações que as diferentes sociedades mantêm entre si, consoante reconheçam ou não a possessão de um território e dos bens que lhe correspondem. A guerra propriamente dita é o momento que a contestação dessa possessão se exprime através do enfrentamento armado.  
No interior de um Estado constituído, a guerra é impossível (§ 9). Isso significaria que indivíduos ou grupos regulariam os seus conflitos de interesses através da violência. Ora, o próprio de uma sociedade política é que ela estabeleça e assegure o que pertence a cada um e regule, através da lei, os conflitos que possam surgir. Nos casos em que tal coisa ocorra (“guerras civis”, “guerras sociais”), isso significa que a ordem política foi anulada: já não há sociedade. O feudalismo, na medida em que deixava subsistir a violência como modalidade de regulação das relações na sociedade, não constituía uma verdadeira ordem política. Foi com este argumento (desenvolvido pelos teóricos do “absolutismo”) que a monarquia se afirmou, submetendo os direitos feudais à autoridade do rei.  
A guerra não é, portanto, a condição pré-política do homem, ela não é compatível com a ordem interior das sociedades políticas. A guerra é uma modalidade de relação das sociedades políticas umas com as outras. 

O Direito da Guerra.(§§ 10 a 12)

Desta definição da guerra como relação “Estado a Estado”, decorrem os princípios daquilo a que Rousseau chama “direito de guerra”.  
Esta expressão (“direito de guerra”) pode surpreender, na medida em que a guerra se opõe ao direito. No entanto, ela encontra a sua explicação, não na legitimação de direito, mas no facto de esta violência entre Estados implicar o carácter político e, portanto, instituído das sociedades políticas. Só há inimigos públicos: são os Estados que entram numa relação de hostilidade, e não os indivíduos. As únicas finalidades que a guerra pode ter são, portanto: reduzir o poder ou suprimir a existência do Estado inimigo. Daqui decorrem as regras que constituem o direito de guerra.
A primeira e talvez a mais importante, porque é o fundamento no qual podemos definir os crimes de guerra, é que os particulares, isto é, os membros de uma sociedade considerados como homens, devem ser respeitados nas suas vidas e nos seus bens. É um crime de guerra violar os direitos dos civis. 
A segunda aplica-se aos combatentes (atualmente, as “Convenções de Genebra”), que só podem ser atacados na justa medida em que representem uma ameaça. Um homem desarmado, um prisioneiro de guerra já não é uma ameaça: atentar contra a sua integridade é um crime. 
A terceira é que a supressão de um Estado não pode consistir numa destruição da ordem civil: pelo contrário, o Estado conquistador ou vencedor deve restaurar e garantir a proteção das leis sobre as populações conquistadas. A segurança das pessoas e dos bens é um dever que decorre do direito de guerra. 
Conflitos recentes mostram bem como tais princípios estão longe de ter perdido a sua pertinência. 
Voltando, então, à tese em debate (§ 12), Rousseau pode mostrar como o próprio fundamento da argumentação, que ele contesta, perde toda a consistência. Não poderíamos basear, no direito de matar o vencido, a troca da sua vida pela liberdade, porque a guerra não produz, de forma nenhuma, um tal direito de matar. Rousseau denuncia o “círculo vicioso” que está presente nesta troca da vida pela liberdade. Esta troca só seria possível se a liberdade e a vida fossem coisas diferentes. Ora, a liberdade não é um bem de que o homem possa dispor, nem sequer é um atributo do homem, é, pelo contrário, a dimensão humana da vida. Privarmo-nos da nossa liberdade é equivalente a suicidarmo-nos, privar um homem da sua liberdade é o mesmo que matá-lo. 

Conclusão.(§§ 13 e 14)

Nem a troca da liberdade pela segurança, nem a manutenção da vida com sacrifício da liberdade poderia constituir-se num fundamento convencional de uma dominação legítima. Mas Rousseau não se limita a este balanço negativo, ele vira estas duas teses contra elas próprias. Dizer que a dominação, (§ 13) na sequência de uma vitória militar, longe de pôr fim ao estado de guerra, o perpetua,  não se limita a trazer-nos de novo a hipótese de uma nova figura do direito do mais forte. Encontramos também a sugestão de uma ideia muito mais radical: a dominação de uma vontade por outra é a inscrição no espaço político de uma relação, cujo modelo é o estado de guerra. Por outras palavras, uma sociedade que se baseie na alienação da liberdade é uma sociedade que vive em estado de guerra consigo mesma. Do mesmo modo, (§ 14), o carácter contraditório da pseudo-convenção da escravatura não nos deve somente conduzir a excluir que tal coisa possa estar na origem da obrigação social, mas implica também uma consequência: a obrigação política só pode nascer do acto positivo de uma vontade livre. 
Aquilo que já tínhamos constatado na primeira parte deste capítulo fica agora mais claro. Rousseau já tinha cumprido a primeira missão que se tinha atribuído a si mesmo (cap. , § 2): mostrar que os laços sociais só se podem basear numa convenção. Poderia agora abordar a sua segunda missão: dizer quais são essas convenções. Mas, em vez disso, o capítulo V vai demonstrar de novo o que acabou de ser estabelecido.

Devemos levar a sério o que diz Rousseau no início deste capítulo: de certo modo, os princípios do direito político começam (ou recomeçam) aqui. Não é que pretenda desvalorizar a importância da primeira parte do livro I. Essa primeira parte não só lhe permitiu recusar aquilo que ele chama “as falsas conceções sobre os laços sociais”, mas também lhe permitiu estabelecer um conjunto importante de princípios essenciais. Mas, ao propor uma outra via para estabelecer que a convenção é o fundamento necessário de toda a ordem política, Rousseau pretende provar que essa conclusão pode ser obtida de forma direta, independentemente desses princípios. Esta via direta é a da definição do próprio conceito de sociedade.  
Esta dualidade de caminhos de acesso ao conceito de pacto social é essencial para a compreensão do pensamento de Rousseau. Essa dualidade também nos permite compreender interpretações contraditórias, porque unilaterais, a respeito do pensamento de Rousseau. Há quem acredite poder associar o seu percurso a um individualismo metodológico (partiria do indivíduo para formar a ideia de sociedade - esta leitura unilateral do pensamento de Rousseau coloca-o do lado dos românticos), outros, pelo contrário, encontram nele uma perspetiva holística, em que o indivíduo seria absorvido pelo todo social (uma espécie de antecipação do estruturalismo). A originalidade de Rousseau consiste, precisamente, em mostrar que, qualquer que seja o princípio metodológico adotado, obtemos sempre o mesmo resultado: a unidade política baseia-se na liberdade das vontades. Até aqui, seguindo o método daqueles que Rousseau refutava, tinha sido considerada a existência singular dos homens, para nos questionarmos sobre como seria possível uma associação civil legítima. O capítulo V vai percorrer o seu caminho em sentido inverso, considerando a própria ideia de laço social. Rousseau põe em evidência as suas condições de possibilidade. Os conceitos de associação, de acção e de obrigação estarão no centro do debate. 

Agregação/Associação.

Sem um laço que os una, uma massa de homens é uma multidão, não um povo; um povo obtém a sua unidade da autoridade a que obedece. Esta afirmação é uma espécie de lengalenga do pensamento político, por várias vezes orquestrada por Hobbes 11. A força de Rousseau consiste em retomar este argumento para o refutar. Para isso, questiona a própria noção de unidade, opondo associação e agregação. 
A agregação, num primeiro sentido, é a unidade gregária. A superioridade do macho dominante impõe-se como uma força que obriga os outros membros do rebanho a obedecer-lhe. Por oposição, a associação baseia-se no livre acordo das vontades que reconhecem uma autoridade. A ordem da natureza vem da força, a ordem da sociedade vem da convenção. Mas, a este primeiro registo, acrescenta-se um outro. No vocabulário científico da primeira metade do século XVIII, estes conceitos têm um sentido próprio. Os químicos opunham a agregação à mistura. Agregação é a unidade que resulta de um efeito mecânico e quantitativo: elementos distintos são, por compressão, agregados uns aos outros. A mistura é a unidade que resulta da interação de elementos, cujas propriedades cruzadas dão origem a um corpo químico qualitativamente novo, com propriedades específicas que conferem novas propriedades a cada um dos elementos que compõem a unidade. É a partir deste modelo que Rousseau forma o seu conceito de “corpo político”. À justaposição de interesses particulares, ou à submissão dos interesses da maioria aos interesses só de alguns, opõe-se o “bem público”, o interesse comum ou geral. Os indivíduos tornam-se cidadãos. A força que submete é substituída pela autoridade que governa. Da submissão individual, à autoridade política não há uma simples mudança de escala, mas uma mudança de natureza.  

O Acto pelo Qual um Povo é um Povo.

Ao admitir um pacto de submissão, Grotius tinha pressuposto a existência do povo como unidade: para “se dar” a um rei, um povo deve ter uma existência comum que se manifeste nessa dádiva. A existência do corpo político como unidade é um pressuposto de Grotius. Mas donde vem essa unidade? 
Grotius diz muito mais do que aquilo em que acredita. Só existe convenção entre vontades. Para que um povo possa celebrar uma convenção, mesmo que seja de submissão, é preciso que tenha uma vontade. Daqui, Rousseau tira uma conclusão inevitável: a forma como se manifesta a existência de um povo como unidade política, é a expressão da sua vontade. Mais importante ainda: é a formação dessa vontade que dá origem ao povo como “corpo político”. É o “acto através do qual um povo é um povo”.  
Esta última expressão merece um pouco mais de atenção. O conceito de acto (ou de acção) tem um sentido geral e um sentido jurídico. De forma geral, uma acção é a manifestação livre de um sujeito livre (que é o seu autor). A deliberação é, então, a operação através da qual a sua vontade se determina. Ao manifestar-se por um acto, o povo manifesta-se como agente livre: é neste pressuposto que Rousseau define a soberania do povo (cap. VII). No sentido jurídico, um acto é a forma como um sujeito de direito exprime a sua vontade (um testamento, uma doação) ou a associa (um contrato). Quando o sujeito de direito é um coletivo (membros de uma co-propriedade, de um conselho), a deliberação é o processo que conduz a uma decisão comum. É a “deliberação pública” de que fala Rousseau. Mas a redação escolhida por Rousseau tem ainda outro alcance. Ao empregar o verbo “ser” (o acto pelo qual um povo é um povo), sugere que a vontade não é uma manifestação da existência do povo, ela é a própria existência desse povo. O acto de nascença do povo é a formação da vontade geral. O exercício da vontade geral é o acto que dá origem ao povo. O exercício da vontade geral é o modo de existência do povo. O povo é a sua vontade geral. 

A Condição da Obrigação.

De que modo, então, é possível que exista uma obrigação legítima? Este era o problema inicial. Volta agora aqui, sob uma nova forma. Para que as deliberações comuns obriguem os particulares sem imposições, é preciso que direta ou indiretamente, a vontade comum seja a dos particulares. Diretamente, é a unanimidade, tomada aqui no seu sentido estrito: todos querem a mesma coisa. Indiretanente é a maioria: o que seja pretendido pelo maior número é aceite por todos como valendo para todos. Rousseau chama a atenção para o facto de a regra da maioria só ser válida, se for considerada válida por todos (diretamente). Este argumento, associado ao anterior, tem um alcance muito mais vasto. Aquilo que Rousseau criticou em Grotius (para que um povo possa celebrar uma convenção de submissão, seria necessário que tivesse uma existência e uma vontade livre comum) ajusta-se também a este caso: toda a decisão (deliberação) do corpo político implica em si mesma como condição de possibilidade, a decisão de todos de querer em conjunto. É por isso que o “pacto social”, como veremos, não é um momento inicial, que funde de uma vez por todas a associação, mas um fundamento reiterado em cada “deliberação pública”, da vontade geral.
Neste momento, já estamos em condições de pôr em evidência o caminho percorrido até aqui e esboçar o caminho que vai ser seguido a partir daqui. 
No primeiro capítulo, foi colocado um problema: como conceber uma sociedade política que faça com que a obediência à autoridade seja livre e não imposta? Rousseau propõe uma solução: a convenção. Os capítulos II e III refutaram aqueles que pretendiam fundamentar o obediência na natureza ou na força. O capítulo IV destruiu a ideia de um pacto de submissão. Não se contentando com recusar “estes falsos conceitos a respeito dos laços sociais”, no capítulo V procede a uma análise do conceito de sociedade e do seu fundamento necessário: “o acto pelo qual um povo é um povo”. 
O capítulo VI é consagrado ao debate sobre a possibilidade e a natureza deste acto “pelo qual um povo é um povo”. Constrói, assim, os conceitos inseparáveis de “contrato social” e de “vontade geral”. Os três últimos capítulos do livro I, retiram as consequências essenciais que decorrem dos anteriores: o capítulo VII estabelece os princípios da soberania; o capítulo VIII mostra as mudanças que a passagem para o estado civil induz na natureza do homem; o capítulo IX define como devemos compreender as relações de posse e de propriedade. 

O percurso de Rousseau, ao longo deste primeiro livro, já tínhamos visto, consiste em condensar todar todas as questões num único problema: de que modo uma ordem política pode ser legítima? Em vagas sucessivas, Rousseau nunca deixou de tentar formular o problema, a cada vez, de forma mais precisa. O capítulo VI reúne todas as etapas que foram percorridas até aqui. Veremos então: as condições do problema (§§ 1 a 3) e a sua formulação (§ 4) ; a transformação do problema em solução (§§ 5 a 8) e o seu enunciado (§ 9) ; o esclarecimento das principais consequência dessa solução (§ 10).

O Problema Fundamental.(§§ 1 A 4)

Os três primeiros parágrafos enunciam, cada um, um dado do problema. O quarto reúne-os todos. Os dados de formulação do problema são todos diferentes. O primeiro estabelece uma necessidade, o segundo circunscreve uma possibilidade, o terceiro define uma condição de legitimidade.
No início, Rousseau dizia não saber como se tinha operado a passagem ao estado civil e a perda de liberdade que a acompanha. Agora, apresenta a causa dessa passagem: “os obstáculos que prejudicam a sua (dos homens) conservação no estado de natureza”. A diferença entre o que afirma no início a este respeito e o que diz agora é menor do que o que parece. Com efeito, Rousseau apresenta esta causa como uma suposição e não como um saber. Esta explicação hipotética é uma consequência do que é estabelecido no capítulo II (§ 2), isto é, que só a “primeira lei” do homem, “cuidar da sua conservação”, pode fazer, da saída do estado de natureza, uma necessidade. Será que esta necessidade teria origem na ameaça que os homens representavam uns para os outros (estado de guerra defendido por Hobbes)? Isso seria contraditório com o que é defendido no capítulo IV. Rousseau evita esta contradição, limitando-se a defender que, deste modo, este dado original é, com toda e única certeza, um enunciado de uma necessidade. 
O segundo dado pretende circunscrever uma possibilidade. Reduzido às suas próprias forças, o homem não consegue sobreviver. Tem, portanto, que encontrar outras forças. As únicas de que pode dispor são as forças dos outros homens. Aplicação simples do provérbio: a união faz a força. Mas, uma vez que os homens no estado de natureza são “dispersos”, não é possível nenhuma associação verdadeira; só são possíveis as agregações. 
O terceiro dado desempenha a missão de marcar os limites em que essa possibilidade pode ser encarada. Diz respeito “ao que é permitido por direito”(preâmbulo, § 1). Uma forma de união que privasse o homem da sua liberdade (o pacto de submissão, referido no capítulo IV, a forma de agregação do capítulo V) seria contraditório com o que constitui o fundamento do direito: a preservação da liberdade. 

Notas Finais

  1. Foi a partir da Revolução francesa que se adotou um sistema racional de medidas: o sistema métrico. 
  2. Em anexo, encontram-se algumas indicações sobre estes autores.
  3. No final do capítulo V, será feita uma apresentação mais detalhada do plano do Livro I.
  4. No segundo Discurso, tinha contestado esta ideia de forma mais radical, negando que a família natural tenha uma verdadeira consistência e alguma duração (ver também a longa discussão com Locke, nota XII).
  5. Podemos, assim, compreender por que razão Rousseau pôde ser considerado por espíritos tão diferentes como Émile Durkheim e Claude Lévi-Strauss , como percursor da sociologia e da antropologia.
  6. Aristóteles, Les Politiques, Livro I, cap. 5, trad. Pierre Pellegrin, GF-Flammarion, 1993. 
  7. Redigido cerca de 1550, este texto de La Boétie só será integralmente publicado no século XVIII 
  8. Grotius, Droit de la guerre et de la paix, liv. I, cap. III, § 8. 
  9. Grotius, Droit de la guerre et de la paix, liv. II, cap. VI, § 3. 
  10. Aristóteles, Rhétorique, Liv. I, cap. V.
  11. Por exemplo, Hobbes, Le Citoyen, cap. XII, § VIII, GF-Flammarion, pp. 222-223.

Os Principais Interlocutores de Rousseau. 

Platão, La République, trad. G. Leroux, GF-Flammarion. Segundo Rousseau, trata-se mais de um tratado de educação do que de uma obra política. Platão aborda nessa obra principalmente a formação dos “filósofos-reis” que serão chamados a governar. Cita também “O Político” (com o título em latim: “De Civili”).
Aristóteles, Les Politiques, trad. P. Pellegrin, GF-Flammarion. É a referência essencial para o pensamento político antigo. Rousseau cita-o raramente e, na maior parte dos casos, de forma negativa, mas tudo indica que conhece bem a obra e que se inspirou nela mais do que o que admite. 
Maquiavel, Le Prince, trad. Y. Levy, GF-Flammarion. Grande leitor, em italiano, de Maquiavel, Rousseau é daqueles que vêem nele mais um defensor da ideia republicana do que o teórico do cinismo político que muito frequentemente se faz dele.
Jean Bodin, Les Six livres de La République, Le Livre de poche. Em França, sem dúvida um dos maiores pensadores da política. Rousseau alia um prolongamento da sua teoria da soberania com elementos de ruptura com ela. 
Thomas Hobbes, Le Citoyen, trad. S. Sorbière, GF-Flammarion, Le Léviathan, trad. F. Tricaud, éd. Sirey. Rousseau forma as suas teorias contra a conceção de Hobbes, a respeito do estado de natureza e a respeito da soberania. 
Hugo Grotius, Du Droit de la guerre et de la paix, trad. J. Barbeyrac, reed. Presses universitaires de Caen. Rousseau utiliza esta obra como exemplo do que deve ser recusado, porque vê no autor um “instigador do despotismo”. 
Samuel Pufendorf, Du Droit de la nature et des gens, trad. J. Barbeyrac, réed. Presses universitaires de Caen. È sem dúvida uma das obras que Rousseau leu com mais atenção. Simboliza, na sua opinião, as contradições dos teóricos do “direito natural”. 
John Locke, Le Second traité du gouvernement civil, trad. D. Mazel. GF-Flammarion. O menos frequentemente citado por Reousseau. Mas é pouco provável que não o tenha lido várias vezes e com muita atenção. Rousseau aproxima-se de Locke no segundo Discruso, mas afasta-se claramente dele no Contrato Social.
Charles-Louis de Montesquieu, De l’esprit des lois, GF-Flammarion. A ambição de Rousseau é a de tomar o lugar de Montesquieu. Reprova-lhe o facto de ter observado e ordenado os factos sem ter elaborado os critérios de legitimidade que é reclamado pelo direito político.  




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