terça-feira, 3 de março de 2009

O COLAPSO GLOBAL

O colapso global: uma visão não-ortodoxa
03-Mar-2009
Walden Bello

Ultimamente, o capitalismo ensaiou três escapatórias coxas para sair dos meandros obscuros da sobreprodução: reestruturação neo-liberal, globalização e financiarização. A globalização, que propiciou que as economias crescessem em conjunto, significou também que se afundassem juntas, a uma velocidade sem paralelo e sem um fim à vista, escreve Walden Bello.
Publicado originalmente no Philippine Daily Inquirer

Semana após semana, vemos a economia global contrair-se a um ritmo pior que o predito pelos analistas mais pessimistas. Claramente, o que atravessamos hoje não é uma vulgar recessão, mas prefigura-se como uma depressão global que poderá subsistir por muitos anos.

A crise fundamental: sobreprodução

A economia ortodoxa há muito que deixou de ter qualquer utilidade para a explicação da crise. Por outro lado, as visões económicas não-ortodoxas dão-nos uma poderosa abordagem das causas e dinâmicas da presente crise. Do ponto de vista progressista, o que estamos a assistir é a intensificação de uma das crises centrais ou "contradições" do capitalismo global: uma crise de sobreprodução, também referida como sobreacumulação ou sobrecapacidade. Corresponde à tendência do capitalismo para construir, no contexto duma exacerbada competição inter-capitalista, uma tremenda capacidade produtiva, que ultrapassa a capacidade de consumo da população, devido às desigualdades de rendimentos que limitam o poder de compra desta. O resultado é a degradação da rentabilidade, conduzindo a uma espiral económica descendente.

Para entender o colapso actual, temos de recuar no tempo até à chamada Idade de Ouro do Capitalismo Contemporâneo, o período entre 1945 e 1975. Foi uma época de rápido crescimento, tanto dos centros económicos como das economias subdesenvolvidas - parcialmente propiciado pela reconstrução massiva após a devastação da Segunda Guerra Mundial, e parcialmente pelas novas disposições e instrumentos, baseados num compromisso de classes histórico entre Capital e Trabalho, que se institucionalizaram no novo estado keynesiano.

Mas este período de elevado crescimento chegou ao fim a meio dos anos 70, quando as economias centrais foram afectadas pela estagflação, ou seja, pela coexistência de um baixo crescimento e de uma inflação elevada, situação que não deveria poder ocorrer, segundo as teorias económicas neoclássicas.

A estagflação, contudo, era apenas um sintoma de uma causa mais profunda: a reconstrução da Alemanha e do Japão, e o rápido crescimento da industrialização de economias como o Brasil, Taiwan e a Coreia do Sul, acrescentou uma enorme nova capacidade produtiva e incrementou a competição global, enquanto as desigualdades de rendimentos dentro de cada país e entre países limitavam o crescimento do poder de compra e a procura, degradando em consequência a rentabilidade. Isto foi agravado pela marcada subida dos preços do petróleo dos anos 70.

A mais dolorosa expressão da crise de sobreprodução foi a recessão global do início dos anos 80, a que mais marcadamente afectou a economia internacional desde a Grande Depressão, ou seja, antes da actual crise.

O capitalismo tentou três escapatórias para sair da armadilha da sobreprodução: reestruturação neoliberal, globalização e financiarização.
Escapatória # 1: Reestruturação neoliberal

A reestruturação neoliberal assumiu a forma de Reaganismo e Thatcherismo no Norte e de Ajustamento Estrutural no Sul. O objectivo era incentivar a acumulação de capital e isso seria conseguido através de: 1) remoção dos constrangimentos estatais ao aumento, utilização e fluxo dos capitais e riqueza, e 2) redistribuição dos rendimentos dos pobres e classes médias para os ricos, com base na teoria de que os ricos seriam então motivados a investir e relançar o crescimento económico.

O problema desta formulação é que, ao redistribuir os rendimentos pelos ricos, se depaupera os pobres e as classes médias, restringindo em consequência a procura, mas não necessariamente induzindo os ricos a investir mais na produção. De facto, poderia ser mais lucrativo investir na especulação.

Na verdade, a reestruturação neoliberal, que ocorreu de forma generalizada no Norte e no Sul durante os anos 80 e 90, teve um fraco resultado em termos de crescimento: o crescimento global foi em média de 1.1% no anos 90 e de 1.4% nos anos 80, comparado com 3.5% nos anos 60 e 2.4% nos anos 70, quando as políticas intervencionistas de estado eram dominantes. A reestruturação neoliberal não conseguiu evitar a estagnação.
Escapatória # 2: Globalização

A segunda escapatória global que o capital tentou para evitar a estagnação foi a "acumulação extensiva" ou globalização, ou seja, a rápida integração de áreas semi-capitalistas, não-capitalistas ou pré-capitalistas na economia de mercado global. Rosa Luxemburgo, a famosa economista radical alemã, apontou-a há muito, no seu clássico "A Acumulação do Capital", como necessária para a manutenção das taxas de lucro nas economias metropolitanas.

Como? Acedendo a trabalho barato, acedendo a novos, embora limitados, mercados, acedendo a novas fontes de produtos agrícolas baratos e matérias primas, e criando novas áreas para o investimento em infra-estruturas. A integração foi conseguida por via da liberalização do comércio, removendo as barreiras à mobilidade do capital global, e abolindo as limitações ao investimento estrangeiro.

O caso mais destacado de uma área não-capitalista a integrar-se na economia capitalista global nos últimos 25 anos é, é claro, a China.

A meio da primeira década do século XXI, cerca de 40 a 50% dos lucros das corporações dos EUA vinham das suas operações e vendas no estrangeiro, especialmente na China.

O problema desta escapatória da estagnação é que exacerba os problemas de sobreprodução, porque acrescenta capacidade produtiva. Um enorme aumento de capacidade produtiva ocorreu na China nos últimos 25 anos, com o consequente efeito negativo nos preços e nos lucros. Não é surpreendente que, por volta de 1997, os lucros das corporações americanas tenham parado de crescer. De acordo com alguns cálculos, a taxa de lucro do Fortune 500 passou de 7,15 em 1960-69 para 5,30 em 1980-90, e para 2,29 em 1990-99 e 1,32 em 2000-2002. Pelo final dos anos 90, com um excesso de capacidade instalada em quase todas as indústrias, o diferencial entre capacidade produtiva e vendas era o maior desde a Grande Depressão.
Escapatória # 3: Financiarização

Dados os limitados resultados quanto a contrabalançar o impacto depressivo da sobreprodução por via da reestruturação neoliberal e da globalização, a terceira escapatória - a financiarização - tornou-se crítica para a manutenção e aumento da rentabilidade.

Com os baixos lucros, devido à capacidade excessiva instalada, dos investimentos na agricultura e na indústria, grandes excedentes de fundos circulavam, ou eram investidos e reinvestidos no sector financeiro - ou seja o sector financeiro alimentava-se a si próprio.

O resultado foi uma cada vez mais marcada separação entre uma economia financeira hiperactiva e uma economia real estagnada. Como um financeiro fazia notar nas páginas do Financial Times, "tem havido uma desconexão cada vez maior entre as economias real e financeira nos últimos anos. A economia real cresceu ... embora nada que se comparasse à economia financeira - até implodir." O que este observador não nos diz é que essa desconexão entre a economia real e a financeira não é acidental - a economia financeira explodiu precisamente para compensar a estagnação devida à sobreprodução da economia real.

Um indicador da super-rentabilidade do sector financeiro é que enquanto os lucros no sector produtivo dos EUA eram de um por cento do produto nacional bruto (GDP), os lucros do sector financeiro eram dois por cento. Outro, é o facto de que 40% dos lucros das corporações financeiras e não-financeiras dos EUA é conseguido pelo sector financeiro, embora ele seja responsável por apenas 5% do produto nacional bruto dos EUA (e mesmo isso pode ser uma sobrestimativa).

O problema em investir em operações no sector financeiro equivale a extrair valor de valor já criado. Pode conseguir-se lucro, sim, mas não se cria um novo valor - só a agricultura, indústria, comércio e serviços criam um novo valor. Dado que o lucro não se baseia em valor que é criado, os investimentos tornam-se muito voláteis e os preços de acções, títulos e outras formas de investimento divergem muito radicalmente do seu valor real - por exemplo, as acções das empresas na Internet puderam subir de forma nunca vista devido fundamentalmente a uma espiral ascendente de avaliações financeiras.

Deste modo, o lucro assenta na capacidade de tirar proveito do desvio dos preços em relação ao valor real das coisas, e em vender antes que a realidade imponha uma "correcção", ou seja, uma derrocada para os valores reais. A acentuada subida do valor de um título muito para lá do seu valor real é o que se chama a formação de uma bolha.

Sendo a rentabilidade dependente de jogadas especulativas, não é surpreendente que o sector financeiro salte de uma bolha para outra, ou de uma mania especulativa para outra.

Porque é comandado por manias especulativas, o capitalismo comandado pela finança enfrentou cerca de 100 crises financeiras desde que os mercados de capitais foram desregulamentados e liberalizados nos anos 80, a mais séria das quais, antes da actual crise, foi a Crise Financeira Asiática de 1997.
Dinâmica da implosão subprime

O actual colapso de Wall Street tem as suas raízes na bolha tecnológica dos finais dos anos 90, quando o preço das acções das empresas na Internet subiram às alturas, antes da derrocada, da qual resultaram perdas de 7 biliões de dólares em títulos e a recessão de 2001-2002.

As políticas monetárias permissivas da Reserva Federal, sob a direcção de Alan Greenspan, encorajaram a bolha tecnológica, e quando esta colapsou numa recessão, Greenspan, tentando impedir que esta se prolongasse, baixou para 1% a taxa de juros de referência a 45 anos em Junho de 2003 e manteve-a assim por mais de um ano. Isto teve por efeito encorajar outra bolha - a bolha do imobiliário.

Desde 2002 que economistas progressistas alertavam para a formação de uma bolha imobiliária. Contudo, mesmo em 2005, o então presidente do Council of Economic Advisers e actual presidente do Federal Reserve Board, Ben Bernanke, atribuía a subida dos preços das habitações nos EUA a "sólidas razões económicas" e não à actividade especulativa. Não espanta pois que tenha sido apanhado completamente de surpresa quando a crise dos subprime estalou no verão de 2007!

A crise das hipotecas subprime não é um caso de oferta excedendo a procura real. A "procura" era largamente fabricada por manias especulativas dos empresários e financeiros que pretendiam obter grandes lucros do seu acesso à moeda estrangeira - muita da qual asiática ou chinesa - que inundou os EUA na última década. Uma grande quantidade de hipotecas foram vendidas agressivamente a milhões de pessoas que não poderiam, em condições normais, suportá-las, com a ajuda de "atraentes" baixas taxas de juro, que seriam mais tarde reajustadas para sacar o pagamento dos novos proprietários.

Como é que hipotecas problemáticas se tornaram um problema de tal dimensão? A razão está em que esses contratos foram transformados ("securitized") em títulos mobiliários - ou seja, convertidos em entidades virtuais chamadas "obrigações de dívida colateral" (CDOs) que permitiam especular com a possibilidade de a dívida não ser paga. Estes papéis foram então vendidos pelos detentores das hipotecas, actuando através de diversos intermediários, que subvalorizavam o risco, por forma a circulá-los tão depressa quanto possível para outros bancos e instituições de investimento. Estas instituições, por sua vez, venderam a outros bancos e instituições financeiras no estrangeiro.

A ideia era conseguir vendas rápidas, reaver o dinheiro de imediato, conseguir um lucro seguro, e transferir o risco para os papalvos espalhados no circuito - as centenas de milhar de instituições e investidores individuais que compraram os títulos ligados às hipotecas. A isto chamou-se "disseminar o risco", o que se considerava ser uma boa coisa, porque aligeirava os balanços das instituições financeiras, permitindo-lhes envolver-se noutras actividades de concessão de créditos.

Quando foram aumentadas as taxas de juro aos empréstimos subprime, hipotecas ajustáveis e outros empréstimos imobiliários, o jogo acabou. Existem cerca de 4 milhões de hipotecas subprime que provavelmente não serão honradas nos próximos 2 anos, e mais 5 milhões de incumprimentos vindos de hipotecas a taxas ajustáveis e outros "empréstimos flexíveis", concebidos para aliciar os compradores potenciais mais relutantes, irão ocorrer nos anos que se seguirão. Mas títulos, valendo tanto quanto 2 biliões de dólares, tinham já sido injectados, como um vírus, no sistema financeiro global. O gigantesco sistema de circulação do capitalismo global estava fatalmente infectado. E, como a peste, não saberemos quem e quantos foram fatalmente infectados até que tombem, porque o sistema financeiro, no seu conjunto, devido à ausência de regulação, se tornou completamente opaco.

Para o Lehman Brothers, o Merrill Lynch, o Fannie Mae, o Freddie Mac, o Bear Stearns, o Bank of America e o Citigroup, as perdas representadas por estes activos tóxicos excederam de modo esmagador as suas reservas. Os bancos da Islândia e muitas instituições financeiras europeias vieram juntar-se à lista das vítimas. Alguns, como o Lehman Brothers, foram deixados morrer, mas muitos foram mantidos vivos, à custa de injecções massivas de dinheiro dos contribuintes, pelos governos que desejavam que esses bancos continuassem a conceder crédito para manter a economia real a funcionar.

O colapso da economia real

Mas, em lugar de assegurar a sua função fundamental de emprestar para permitir à actividade produtiva funcionar, os bancos estão a guardar o seu dinheiro ou a adquirir rivais para fortalecer a sua base financeira. Não é pois surpreendente, com o sistema circulatório do capitalismo global afectado, que seja só uma questão de tempo até que a economia real se contraia, como tem acontecido a velocidade assustadora nas últimas semanas. Woolworth, um símbolo do comércio a retalho, desapareceu na Grã-Bretanha, a indústria automóvel dos EUA está nos cuidados intensivos, e até a poderosa Toyota registou um declínio sem precedentes dos seus lucros. Com a procura do consumo americano a cair a pique, a China e o Leste asiático vêm os seus produtos apodrecer nas docas, provocando uma marcada contracção das suas economias e layoffs massivos.

A mesma globalização que assegurou que as economias crescessem juntas, nos bons tempos, assegurou que se afundassem juntas, com uma velocidade sem paralelo, na borrasca, cujo fim não está à vista.

Versão alongada de um ensaio do autor emitido pela British Broadcasting Corporation (BBC) em 6 de Fevereiro de 2009.

Walden Bello é membro do Transnational Institute, professor na Universidade das Filipinas, Diliman, analista sénior na Focus on the Global South, e presidente da Freedom from Debt Coalition.

Sem comentários: