quinta-feira, 27 de março de 2008

SERES HUMANOS NÃO RENTÁVEIS




Ensaio sobre a relação entre história da modernização, crise e
darwinismo social neo-liberal

Robert Kurz

Nota Prévia: Este texto constitui a versão escrita de uma
apresentação efectuada a 15.11.2005 em Brunnen, Suiça, nas Jornadas
Anuais da INTEGRAS (Schweizer Fachverband für Sozial- und
Heilpädagogik) [Associação Profissional de Pedagogia Médica e
Social]. O texto não desenvolve ideias novas, mas consegue dar, ainda
assim, uma perspectiva sobre as afirmações standard na análise da
crítica do valor e da dissociação, de outro modo só possível de
encontrar espalhada em diversos artigos ou no contexto da
argumentação mais extensa dos livros. Os sub-títulos são de
responsabilidade da redacção da INTEGRAS. As apresentações desta
jornada serão publicadas brevemente em brochura



É incontestável: a divisão da sociedade aprofunda-se e assume
proporções dramáticas; simultaneamente, as instituições que devem
tratar e administrar o social definham e paralisam devido a
restrições financeiras. O problema pode apresentar actualmente
aspectos diferentes em cada país, de acordo com a sua situação
económica no mercado mundial, as tradições nacionais e as relações
estruturais; mas a tendência de fundo é em todo o lado a mesma. Se
uma ordem social agrava permanentemente o catálogo das suas
exigências e exclui cada vez mais seres humanos, tal constitui um
indício de que ela atingiu os limites imanentes na sua constituição
fundamental, como modo de produção e de vida. Trata-se, pois, de uma
crise estrutural das formas que constituem a base da sua reprodução,
cegamente pressupostas por norma. Por isso esta crise, como problema
social total, não pode ser explicada nem vencida por nenhum ponto de
vista duma actividade específica, dum interesse particular ou duma
instituição particular. Torna-se necessária, por assim dizer, a vista
aérea panorâmica da crítica social, para encontrar uma orientação
na "nova intransparência [Unübersichtlichkeit]" (Habermas).

Em primeiro lugar estamos perante uma grande confusão após a
derrocada do socialismo. O fim do conflito de sistemas e da guerra-
fria foi interpretado como vitória definitiva do capitalismo
ocidental; prometia-se uma nova idade do ouro de prosperidade,
através da abertura a todo o mundo do mercado, num sistema mundial
universal unificado. Entretanto é tão violenta a desilusão, com
sempre novos cortes sociais, crises económicas, guerras civis por
todo o mundo e barbárie crescente, que se tornou necessária uma
explicação diferente. Não são os pontos diferentes, mas sim os pontos
comuns de ambas as sociedades do pós-guerra que são essenciais para
se conseguir entender este desenvolvimento.

Todas as sociedades modernas são sistemas produtores de mercadorias,
independentemente de o serem numa constituição mais regulada
estatalmente (socialismo de estado, keynesianismo) ou na forma do
mercado mais desenfreado (capitalismo de concorrência neoliberal); e
o seu sistema de referência comum é o mercado mundial. O mercado
universal, porém, não existe por si, mas é a esfera funcional dum fim-
em-si social irracional, que consiste em fazer do valor mais valor
para fazer do dinheiro mais dinheiro (valorização do capital ou
acumulação de capital). Só através deste fim em si que no fundo lhe
está subjacente é que o mercado se tornou universal, enquanto a
produção de mercadorias nas sociedades pré-modernas tinha apenas
carácter marginal e a vida era reproduzida na sua maior parte sob
outras formas. Karl Marx apreendeu esta diferença em duas simples
fórmulas da relação de mercadoria (M) e dinheiro (D). Enquanto
simples forma de nicho nos poros das sociedades agrárias a relação
funcionava segundo a fórmula M-D-M. O dinheiro limitava-se aqui ao
papel de mediação, estando os objectos da necessidade em forma de
mercadoria no princípio e no fim da transacção. Na modernidade
inverte-se a relação, que aqui funciona segundo a fórmula D-M-D'. Os
próprios objectos concretos da necessidade são apenas o "meio" para a
valorização do capital-dinheiro, isto é, para a transformação de
valor (D) em mais valor (D'). Isto significa que a satisfação das
necessidades é rebaixada a um simples subproduto da valorização e
torna-se dependente desta. A produção desliga-se dos laços sociais da
vida, como "economia empresarial" e autonomiza-se como processo
sistémico anónimo face aos seres humanos, que deixam de ter qualquer
controle sobre a reprodução da sua própria vida.

Trabalho, valor, valorização

O mecanismo interno desta "economia desvinculada [herausgelösten]"
(Karl Polanyi) reside na exploração de energia humana ("trabalho").
Nas sociedades pré-modernas a abstracção trabalho era negativamente
conotada, como nome colectivo originariamente para as actividades dos
dependentes (escravos). Apenas na modernidade o trabalho foi
positivado e universalizado. Aqui o trabalho funciona
como "substância" (Marx) do valor e da valorização. O dinheiro não é
senão a representação de um quantum de trabalho. Contudo, a
actividade nesta forma correspondente à autofinalidade sistémica é
também desvinculada dos conteúdos da necessidade e portanto
indiferente face a estes; por isso se trata de "trabalho abstracto"
(Marx). É indiferente se se fabrica bolachas de chocolate ou granadas
de mão, o importante é que a energia humana abstracta como "dispêndio
de nervo, músculo e cérebro" (Marx) possa ser transformada em
dinheiro (mais-valia). À autofinalidade da valorização corresponde a
autofinalidade do "trabalho abstracto"; a infindável acumulação de
valor não é senão a infindável acumulação de trabalho morto
(passado). Do trabalho tem que se fazer sempre de novo trabalho. Sob
estas condições o mercado já não representa nenhuma troca entre
produtores independentes. Ele não passa da esfera da realização da
mais-valia, isto é, da retransformação de "mais trabalho" em "mais
dinheiro". Por isso a "liberdade do mercado" é ilusória; esta
liberdade tem por base a relação coerciva do "trabalho abstracto".
Aqui a coerção já não é pessoal (como por exemplo na relação de
senhor e servo), mas uma coerção sistémica anónima de se vender a si
mesmo como "máquina de dispêndio" de energia humana abstracta (força
de trabalho) na "economia desvinculada".

Todas as actividades, "atitudes" e comportamentos que são necessários
para a reprodução da vida, mas que não podem ou dificilmente podem
ser incluídos no sistema do "trabalho abstracto" e da economia da
valorização desvinculada foram historicamente dissociados deste e
delegados nas mulheres como "trabalho de amor" sem custos (o chamado
trabalho doméstico, a assistência, o acompanhamento, a dedicação, o
desempenho de funções de amortecimento socio-psíquico etc.). O
sistema da economia desvinculada é, portanto, desde logo,
simultaneamente um sistema de "dissociação sexual [geschlechtlichen
Abspaltung]" (Roswitha Scholz). Daí que a dissociação é uma categoria
da totalidade, tal como a valorização e o "trabalho abstracto"; a
relação social total apresenta-se assim como uma relação social
complexa, intrinsecamente fragmentada. A relação de dissociação não
se limita a uma determinada esfera (por exemplo, a família), mas
apresenta-se transversal a todas as áreas da reprodução, incluindo o
próprio "trabalho abstracto". A "economia da valorização" é definida
como "estruturalmente masculina". Entretanto, no processo da
modernização, também as mulheres foram cada vez mais usadas como
reservatório de força de trabalho. Não, porém, no sentido de uma
libertação, mas como dupla subordinação, ao "trabalho abstracto" e
aos momentos dissociados em boa medida considerados de menor valor e
secundários ("dupla carga"). Até hoje as mulheres têm sido em regra
mais mal pagas na economia da valorização, continuam a ser pouco
representadas nas funções de direcção e simultaneamente todo
o "trabalho de amor" continua a ser considerado da sua competência em
todos os domínios.

O moderno patriarcado produtor de mercadorias e as suas contradições

Este breve esboço da conexão sistémica que está na base de todas as
variantes do moderno patriarcado produtor de mercadorias (pois esta é
a designação mais precisa da sociedade da valorização, incluindo a
relação de dissociação) revela só por si um monstruoso desaforo. No
entanto este foi interiorizado e transformado em normalidade
inquestionável no decurso dum longo processo histórico. Os seres
humanos têm que ser "rentáveis" no sentido do fim em si do sistema;
só assim a existência está garantida. Estas exigências foram impostas
nos primórdios da modernidade desde o século XVI e no capitalismo
primordial dos séculos XVIII e XIX com coacção sangrenta e contra uma
longa resistência dos movimentos sociais. Na primeira metade do
século XX, na época das guerras mundiais industrializadas e das
crises da economia mundial, o moderno patriarcado produtor de
mercadorias já parecia fracassar nas suas contradições internas e
dissolver-se no caos e na barbárie – com manifestação extrema no
sistema de aniquilação de seres humanos especificamente alemão do
anti-semitismo exterminador ou nacional-socialismo.

Mas depois da segunda guerra mundial houve o "curto Verão" do milagre
económico. O desenvolvimento das forças produtivas forçado pela
concorrência libertou potencialidades nunca sonhadas, que haveriam de
tornar possível uma "civilização do capitalismo". Apesar da
racionalização a necessidade de "trabalho abstracto" cresceu como
nunca antes, porque os bens industriais de luxo, antes limitados a
uma estreita camada (automóvel, electrónica de uso doméstico e de
entretenimento etc.), entraram no consumo de massas e os mercados
alargaram-se bruscamente. Só então é que as mulheres foram integradas
no trabalho profissional da economia da valorização em grande escala
social. O consumo de massas, incluindo o turismo de massas etc.,
transformou-se numa espécie de quase religião. O fim em si irracional
do sistema parecia reconciliar-se com as necessidades, ainda que numa
forma adaptada, sob muitos aspectos destrutiva (transporte
individual, destruição do ambiente etc.). Outro subproduto do boom do
pós-guerra foi a imparável construção do estado social e de infra-
estruturas públicas, com um elevado standard de educação, trabalho
social e cuidados médicos para todos. É verdade que a realidade
desta "época dourada" da sociedade de valorização do valor e
dissociação, designada "fordismo", do nome do fabricante americano de
automóveis Henry Ford, se limitava aos países do núcleo industrial
ocidental, mas luzia ainda assim uma perspectiva
de "desenvolvimento", também para o resto do mundo.

Ainda que o desenvolvimento das forças produtivas sob a pressão da
concorrência do mercado universal seguisse, depois como antes, o
ditame de transformar trabalho em mais trabalho, e ainda que o brilho
do "milagre económico" tenha começado a esmaecer já desde os anos
setenta, o potencial da produtividade foi desde então celebrado
como "máquina de civilização". Recaíram no passado as muitas gerações
queimadas sob péssimas condições no "trabalho abstracto". Até a
libertação da mulher das suas atribuições tradicionais parecia ser
conseguida em grande medida, apesar da "dupla carga", uma vez que
elas podiam cada vez mais "ganhar o seu dinheiro", as tarefas
domésticas eram consideradas susceptíveis de robotização com a
electrónica e muitos dos domínios dissociados haveriam de ser
resolvidos em sectores comerciais ou em instituições públicas
financiadas pelo Estado.

Porém, desde os anos oitenta que a terceira revolução industrial da
microelectrónica transtornou gravemente os planos de todas estas
esperanças positivas. Desde logo era o mesmo desenvolvimento da
produtividade, que obteve tão grandes sucessos na história do
fordismo no pós-guerra, que constituía simultaneamente a condição da
crise. Pois quanto maior a produtividade, tanto menor a "substância
do trabalho" por mercadoria, e portanto tanto menor o valor a que se
chega no processo da valorização. A contradição está em que cada
empresa individual não "realiza" imediatamente no mercado a mais-
valia que criou dentro das suas quatro paredes, realiza sim uma parte
da mais-valia social total. Esta parte é definida através da
concorrência, onde uma empresa obtém tanto mais êxito quanto mais
barata conseguir fazer a sua oferta. Ora o meio para isso é o aumento
da produtividade. Desde modo, contudo, entram em contradição o meio e
o fim sociais: uma empresa consegue apropriar-se duma parte tanto
maior da mais-valia social total quanto mais contribuir para, através
da elevação da força produtiva, esvaziar e socavar a produção de
valor enquanto tal. Esta contradição chegou a manifestações
explosivas sucessivas nas crises históricas. Contudo ela pôde ser
sempre suplantada porque a queda do valor e com ele da mais-valia por
mercadoria, com a redução da substância de trabalho, era mais que
compensada pela simultânea expansão da quantidade de trabalho total,
com o alargamento dos mercados; com sucesso na era fordista do pós-
guerra, como se viu.

A revolução microelectrónica e as suas consequências

Na revolução microelectrónica, contudo, esta compensação já não
funciona. O potencial de racionalização é agora tão grande que
continuamente se torna supérfluo mais trabalho do que aquele que pode
ser absorvido adicionalmente na valorização, através do aumento da
produção de mercadorias. Apesar do aumento da quantidade de
mercadorias, diminui rapidamente a substância de trabalho
social "válida" no standard de produtividade da microelectrónica e
consequentemente a crise assume carácter estrutural. Nas regiões
periféricas do mercado mundial, na zona do socialismo de Estado do
Leste e da "desenvolvimento atrasado" do Sul, tal situação já
conduziu à derrocada social, precisamente porque a microelectrónica
não pôde ser aplicada com êxito por falta de força de capital e por
isso a respectiva produção caiu abaixo do standard de produtividade
mundial (tornando-se, portanto, "não rentável" e deixando de ter
capacidade de concorrência). Esta situação foi interpretada como
falhanço próprio das variantes do socialismo de Estado, em vez de
como parte de uma crise mundial da terceira revolução industrial,
apesar de o mesmo problema há muito se ter feito notar também no
Ocidente, como desemprego estrutural de massas; e precisamente por
causa da forçosa aplicação da microelectrónica.

Desde então a crise atingiu profundamente os centros ocidentais. Cada
vez mais seres humanos se tornam "não rentáveis" e são excluídos; por
todo o lado partes inteiras dos países ficam abandonadas, enquanto a
economia empresarial se globaliza num terreno de rentabilidade que se
reduz. Na falta de produção de mais-valia real, o capital dinheiro
refugia-se simultaneamente numa economia de bolhas financeiras. Já
não é a venda de mercadorias que é decisiva, mas são os ganhos
diferenciais na circulação de títulos financeiros que suportam uma
valorização tornada fictícia. Empresas e partes de empresas são
tratadas como pedaços de carne para trinchar (fusionite e batalhas
por aquisições, sem investimento real). Na interpretação popular, o
complexo causal é na maior parte dos casos posto de pernas para o ar,
responsabilizando erradamente pela miséria, em tom anti-semita, uma
espécie de "praga de gafanhotos" de especuladores, como se o problema
não residisse nas próprias contradições do sistema produtor de
mercadorias. A expansão dos mercados, no contexto do poder de compra
em queda por falta de capacidade de utilização com êxito de "trabalho
abstracto" rentável, transforma-se em capacidades excedentárias
globais, que são sucessivamente desactivadas. É absurdo: pelo facto
de a produtividade se ter tornado "demasiado elevada" e de poderem
ser fabricados muitos bens com pouco trabalho, cada vez mais seres
humanos são rebaixados a um nível de pobreza ainda há pouco tempo
inimaginável. A divisão da sociedade aprofunda-se cada vez mais; até
a classe média está a ser entretanto apanhada pelo turbilhão da crise.

O Estado social está a ser desmontado

Não se trata, porém, apenas da desmontagem das capacidades de
produção não rentáveis mas, na senda desta tendência negativa, também
o Estado se transforma cada vez mais numa simples administração do
estado de emergência, porque já não consegue regular a economia
empresarial globalizada e porque lhe estão a faltar as receitas. Há
um consenso neoliberal suprapartidário em quase todos os países, que
executa e legitima ideologicamente a crise do sistema, apenas e só
contra os seres humanos. Agora se vê que as "aquisições
civilizatórias" do período do pós-guerra não são auto-sustentáveis,
mas tinham que ser alimentadas com uma valorização conseguida
do "trabalho abstracto". Na mesma medida em que este regride, também
a civilização social é obrigada a recuar. É precisamente sob as
condições do desemprego de massas e da nova pobreza que o Estado
social é desmontado e abandona os seus filhos. Estruturas inteiras
definham e são reduzidas a poucas "regiões metropolitanas". O Estado
desfaz-se dos serviços públicos, como um nobre arruinado se desfaz
das pratas da casa. A privatização significa em regra redução à
capacidade de pagamento privada e portanto o fim das estruturas
universais. Os caminhos-de-ferro deixam linhas ao abandono, os
correios fecham estações. No sistema de ensino expande-se o ensino
para duas classes (conceito de elite), nos serviços de saúde a
medicina de segunda classe. Agora diz-se de novo e sem qualquer
cerimónia: tens de morrer mais cedo porque és pobre. Na maior parte
dos casos são as camadas inferiores da pirâmide social as mais
duramente atingidas pelas restrições financeiras nos serviços
públicos, como é o caso das instituições de trabalho social, de
prestação de cuidados aos deficientes, aos sem abrigo e aos idosos,
porque dispõem dos lobbies mais fracos.

Após os despedimentos em massa nos sectores comerciais e industriais,
a crise do Estado social e dos serviços públicos resultante da crise
da valorização conduz, também nos sectores antes geridos pelo Estado,
a uma "disponibilização" similar de empregados, que vão engrossar o
exército dos caídos. Um número cada vez maior de seres humanos vê-se
obrigado à prestação de serviços baratos e à venda ambulante, ao
empresariado de miséria etc., na esfera da circulação. As mulheres
são particularmente afectadas. O discurso sobre o fim do patriarcado
é desmentido. Por um lado o Estado e a economia delegam novamente as
tarefas financeiramente exauridas do tratar e do cuidar no
amplo "trabalho de amor" voluntário feminino. Por outro lado as
mulheres também são desproporcionadamente afectadas pelo
desmantelamento dos serviços públicos. Sendo certo que as mulheres
nos países ocidentais igualaram os homens no que respeita a
habilitações académicas, o seu emprego, contudo, concentrou-se em
grande medida nos serviços públicos, precisamente os que agora são
reduzidos. Elas sofrem massivamente a desvalorização das suas
qualificações. Em parte os seus lugares são ocupados por mães
solteiras, tratadas com particular dureza pela administração social,
que são obrigadas a trabalhar sem qualificações ou com qualificações
diferentes. Estas, por sua vez, têm que deixar os filhos em centros
de acolhimento, em que na maior parte dos casos trabalham migrantes
leste-europeias, ainda mais mal pagas. Também a pobreza pública é em
primeira linha uma pobreza feminina. A crise da economia da
valorização e do "trabalho abstracto" é simultaneamente uma crise da
identidade masculina; no quotidiano da crise cresce dramaticamente a
violência (familiar) masculina contra as mulheres, enquanto se fecham
centros de acolhimento e casas de apoio às mulheres.

A hierarquia dos não rentáveis

Quais as consequências do agravamento das condições da crise? Na
generalidade, pode dizer-se que mais cedo ou mais tarde todos somos
não rentáveis. Isso é verdade, mas há nesta abstracção uma cilada
argumentativa, pois assim não são consideradas as diferenciações
internas. Quanto mais a crise se agrava, mais se agrava também a
concorrência universal, que é instrumentalizada pela administração da
crise para jogar uns contra os outros os diversos grupos de caídos.
Há divisão social não apenas entre os vencedores em número cada vez
menor e os perdedores em número cada vez maior, mas também entre os
próprios perdedores. Ainda ocupados e desempregados, mulheres e
homens, jovens e velhos, herdeiros em perspectiva e filhos de
indigentes, saudáveis e doentes, não incapacitados e incapacitados,
nacionais e estrangeiros defrontam-se mutuamente ao nível da pobreza;
e trata-se de ver "quem é que ainda se safa". Temos que nos
confrontar com uma hierarquia de não rentabilidade atravessada por
precárias lutas pela partilha. Mesmo no fundo dessa hierarquia
encontram-se os absolutamente abandonados, que já nem maus e
criminosos podem ser: doentes mentais, incapacitados psíquicos e
físicos, dependentes de assistência e doentes terminais. São em série
os repetidos escândalos em lares de idosos e de internamento,
causados também pela desqualificação do pessoal, em número reduzido e
sob a pressão dos custos e do serviço.

Mesmo no centro das democracias ocorrem uma descivilização e uma
desumanização estruturais, que até agora se julgavam bem longe, na
periferia do mercado mundial, donde de qualquer modo já foram
copiadas em grande parte. Não se trata de nenhum pessimismo, mas de
uma realidade social em expansão. Sob tais condições, as clássicas
reacções de crise e ideologias de crise do sexismo, do racismo e do
anti-semitismo encontram-se na ofensiva por todo o mundo,
transversais a todas as camadas sociais. Os demónios do século XIX e
princípio do século XX regressam em forma modificada; não em último
lugar na forma de uma mentalidade social-darwinista, que tem as suas
raízes no liberalismo clássico e que por isso pode manter hoje a
bênção neoliberal na forma completamente desenfreada. "Survival of
the fittest" é a palavra de ordem repetida de novo e já nada
discretamente. A lógica de base subjacente reza que não é o
patriarcado produtor de mercadorias declarado lei natural que chega
ao fim, mas sim o interesse vital e o direito à vida dos seres
humanos não rentáveis. Regressa com novas honras a teoria
da "superpopulação" do liberal hardcore Thomas Malthus do princípio
do século XIX.

Não foram apenas os nazis que inventaram a divisa assassina da "vida
que não merece ser vivida" e a levaram às últimas consequências, pelo
contrário, ela ganhou fôlego a partir de uma larga corrente de
pensamento social-darwinista, na qual, até à primeira guerra mundial
e mesmo depois, se incluem, além dos liberais, grande parte da
esquerda e da social-democracia (o que hoje é completamente
ignorado). É por isso que o consenso neoliberal suprapartidário pode
hoje prosseguir novamente o velho consenso social-darwinista até ao
meio do centro social, e mesmo no interior da esquerda parlamentar:
uma base legitimadora tácita para as tendências de descivilização da
administração da crise e das forças que com elas fazem a co-
administração. Elementos deste pensamento encontram-se não apenas
entre os bandos da direita radical, que na Alemanha já insultam os
incapacitados como "devoradores de recursos" e os derrubam das
cadeiras de rodas, mas também no aparelho da administração social e
entre os quadros da classe política democrática. Entre os seus
antepassados inclui-se, por exemplo, o social-democrata austríaco
Rudolf Goldscheid, que antes da primeira guerra mundial inventou o
conceito de "economia de seres humanos" e recomendou ao Estado
uma "criação rentável de seres humanos", pelo que não deveria ser
alimentado o material humano incapacitado. Precisamente na época de
uma crise do "trabalho abstracto" e das sobrecapacidades da
hiperprodução é que é hoje mobilizada de novo a ilusão deste
revigoramento físico. A aparente suplantação do darwinismo social
pertence à filosofia do bom tempo do passado milagre económico, que
agora se enterra silenciosamente.

Resistência e crítica social

Que possibilidades de resistência existem, face a esta grande
tendência avassaladora de descivilização? Obviamente já não basta uma
limitada política de lobbie dos enfraquecidos serviços sociais. É um
facto que não existe um puro determinismo objectivo da crise e que em
cada situação dada podem ser usadas as margens de manobra imanentes
para "conseguir algo". Mas isso já só funciona em ligação com um
amplo movimento social, que seja capaz de começar a suplantar a
concorrência universal e a impor um conjunto de exigências, mesmo que
com estas não se supere a crise, a qual radica nas contradições
sistémicas do "trabalho abstracto" e da sua estrutura de dissociação
sexual. Para que um tal movimento em geral possa ser possível é
necessária uma pequena guerra tenaz também no dia a dia, contra o
pensamento social-darwinista, sexista, racista e anti-semita, em
todas as suas variantes. Quando a resistência imanente encontrar a
perspectiva de outro modo de produção e de vida, para lá do
patriarcado produtor de mercadorias e portanto também para lá do
antigo socialismo de Estado, as formas de desenvolvimento da crise
podem abrir-se para além disto, para uma nova sociedade. Esta
abertura só é possível através da simultânea abertura do horizonte
mental a uma nova crítica social radical – em vez de se deixar
consumir completamente pelo dia a dia da crise.



Original UNRENTABLE MENSCHEN. Ein Essay über den Zusammenhang von
Modernisierungsgeschichte, Krise und neoliberalem Sozialdarwinismus,
in www.exit-online.org (19.01.2006)

NOVIDADES DA BIBLIOTECA CENTRE POMPIDOU

A AMBIÇÃO DOS SISTEMAS EDUCATIVOS - A FINLÂNDIA -Les enseignements de l’enseignement finlandais

Paul Robert et le modèle éducatif finlandais

22 euros chez ESF, port gratuitLe système éducatif finlandais est le plus efficace au monde, paraît-il, mais peut-il servir de modèle au nôtre ? C’est la question que s’est posée Paul Robert, principal d’un collège dans le Gard où il met en œuvre des méthodes innovantes avec un certain succès. il est donc parti étudier le système finlandais et en est revenu avec un livre "La Finlande : un modèle éducatif pour la France ? Les secrets de la réussite" paru ces jours ci chez ESF.

Il y a bien sûr des particularismes sociaux et culturel finlandais qu’on n’importera pas en France par une réforme de l’Education Nationale. Ca peut-être la culture de l’apprentissage continu qui prévaut en Finlande (où on n’arrête jamais d’apprendre dans la vie, même longtemps après la fin des études), le goût pour les langues étrangères (qui, en France, restent souvent perçues comme concurrentes du français) ou plus largement l’éthique lutherienne solidement implantée en Finlande.

plan de montageD’un autre côté, Paul Robert pense qu’on pourrait (et devrait) laisser aux enseignants et établissements français la même liberté qu’aux finlandais, déserrer l’étau de l’évaluation constante qui stresse les élèves, en finir avec les cours magistraux, introduire davantage de souplesse dans les cursus et favoriser des relations moins formelles et cloisonnées entre les élèves et les enseignants. Globalement, il faudrait comme en Finlande placer l’élève au centre du système.

Autant de propositions qui ne demandent pas tant de moyens que de volonté mais qui nécessiterait sans doute un consensus politique "à la finlandaise" pour voir le jour. Bonne chance pour obtenir ça en France !

DÁ-ME O TELEMÓVEL JÁ




Mário , Crespo, Jornalista

Tira os adjectivos e ficas com os factos. Atticus Finch advogado no Alabama, in Não matem a cotovia - Harper Lee.

Vi há semanas uma excelente encenação do Cândido de Voltaire, no Maria Matos, em Lisboa. Uma das personagens, o filósofo germânico dr. Pangloss, que encontrava sempre um aspecto redentor em praticamente tudo (já que este era o melhor dos mundos possível), ao desembarcar na frente ribeirinha de Lisboa no dia do terramoto de 1755, vê tudo destruído e no meio das ruínas a gentalha a pilhar num saque sanguinário. Questionado por Cândido sobre o que era aquilo, responde

"... Isto é o fim do Mundo".



Pivot

Boa noite, uma professora foi agredida na escola Carolina Michaëlis, no Porto. A cena foi registada em vídeo por um telemóvel e divulgada no YouTube.

(Segue Vídeo 1' 10")

Se o incurável optimista Pangloss tivesse visto o vídeo da aula de Francês no 9.º C, só podia ter comentado que era o fim do Mundo. E foi. O vídeo, a boçalidade dos comentários de quem filmou, os ataques selváticos de quem atacou, a birra criminosa da delinquente a quem tiraram o telemóvel, a indiferença da maioria da turma pelo horror do que se estava a passar mostram o malogro do sistema administrado pelo Ministério da Educação.

"Ha… ha… ha...ha...ha"

"DÁ-ME O TELEMÓVEL!"

Há um caso exemplar no historial governativo socialista onde Maria de Lurdes Rodrigues podia ir buscar inspiração. Em Março de 2001, depois da queda da ponte de Entre-os-Rios, o ministro da tutela anunciou que se demitiria com efeitos imediatos. Foi a maneira consciente de mostrar responsabilidade.

"Sai da frente... sai da frente!"

Por favor, façam-me a justiça de não considerar sequer que estou a fazer comparações. A enorme crise que atravessa o sistema educativo em Portugal e a queda de uma ponte cheia de pessoas em cima, com as consequentes fatalidades, são situações de gravidade específica que não toleram comparações. O que digo é que a decisão de Jorge Coelho de se retirar de funções porque a ponte de Entre-os-Rios era responsabilidade de vários departamentos do seu ministério, é o modelo de comportamento governativo.

"Ó Rui, ó Rui, ó Ruizinho!"

Maria de Lurdes Rodrigues tem um tremendo desastre entre mãos e contribuiu directamente para ele com as suas políticas de desrespeito de toda a classe docente e com o incompreensível arrazoado de privilégios estatutários garantísticos aos discentes, que estão a condenar toda uma geração e a comprometer o futuro de todo um país.

"Ó gorda, ó p (...), sai daí!"

Depois de todos termos, finalmente, visto aquilo que realmente se passa nas nossas escolas, nada pode ficar na mesma. A DREN, que já se devia ter ido embora no escândalo do professor Charrua, tem de sair porque aquela gente obviamente não sabe o que está a fazer. O Conselho Directivo da Carolina Michaëlis tem de ser imediatamente substituído por gente capaz de proibir telemóveis e de impor (não tenham medo da palavra), impor, um ambiente de estudo na escola pública. Reparem que durante o desacato e o linchamento da professora nenhum dos alunos abre a porta da sala de aulas e pede ajuda.

"Sai da frente... sai da frente!"

Isso atesta que já não ocorre aos próprios alunos que haja na escola alguém capaz de impor disciplina e restabelecer a ordem.

"Olha a velha vai cair!"

Por isto a Turma do 9.ºC tem de acabar! Por uma questão de exemplo, os alunos têm de ser dispersos por outras turmas e o 9.º C deve ficar com a sala fechada o resto do ano, numa admoestação clara de que este género de comportamento chegou ao fim. Maria de Lurdes Rodrigues não pode ficar à espera de receber outra vez o apoio do primeiro-ministro. Depois disto, é seu dever sair do cargo. E não é, como diz constantemente, a mais fácil das soluções. É a medida necessária para que haja soluções. A saída da ministra é, viu-se agora, uma questão de segurança nacional. É a mensagem necessária para a comunidade escolar, alunos e professores, entenderem que o relaxe, a desordem e o experimentalismo desenfreado chegaram ao fim. Que não há protecção política que os salve já da incompetência do Ministério, da DREN e de tudo o mais que nestes três anos nos trouxe à vergonhosa situação que o vídeo do YouTube mostrou ao país e ao Mundo. Uma questão mais os sindicatos viram as imagens de um crime a ser cometido em público contra uma professora. Façam o que devem. Façam as devidas queixas-crime contra a aluna agressora e contra quem filmou e usou abusiva e ilegalmente da imagem da professora a ser martirizada. O crime foi visto por todos. O Ministério Público tem competência para mover o adequado processo contra esses alunos. Cumpram o vosso dever sem tibiezas palavrosas. Já não se pode perder mais tempo com disparates.

Mário Crespo escreve no JN, semanalmente, às segundas-feiras

terça-feira, 25 de março de 2008

CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE FUNCIONALIDADE - CIF - PARA PRINCIPIANTES


JÁ QUE TEM DE SER... NÃO FAÇAM MUITOS DISPARATES
PARA LER, CLICAR AQUI OU NO TÍTULO

segunda-feira, 24 de março de 2008

TEORIA DA JUSTIÇA OU O COMBATE A TRAVAR CONTRA O UTILITARISMO


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ESTATUTO DO ALUNO, INDISCIPLINA E COMENTADORES DESPORTIVOS


O comentário desportivo, em Portugal, já tem alguma qualidade: um jargão próprio, opiniões sem fundamento bem apresentadas, análises críticas muito distantes de princípios mínimos de imparcialidade, comentadores engravatados, etc.
Os comentários sobre educação estão, no entanto, ainda a fazer o seu caminho em direcção a essa almejada qualidade: falta-lhes um jargão bem estabelecido; tudo o resto (opiniões sem fundamento bem apresentadas, análises críticas absolutamente parciais, comentadores engravatados) já têm.
A turma C do 9º ano da Esc Sec. Carolina Michaelis teve honras de notícia de primeira página e, por conseguinte, foi igualmente honrada com comentários, cuidadosamente elaborados pelos melhores comentadores da nossa praça. Nem outra coisa seria de esperar. Aos medíocres cabe comentar o custo de vida, a crise na democracia em Portugal. Os bons, os excelentes, para dizer a verdade, interessam-se por coisas de inigualável relevo:
  • a coragem e a determinação do Governo (um dia ainda veremos um criminoso, a ser julgado por homicídio, a argumentar em tribunal que o fez com muita coragem e determinação, e o acusador a tentar provar, com sucesso se o criminoso for pobre, que foi, pelo contrário, com muita covardia e indecisão que o crime foi praticado);
  • a histeria de uma aluna a quem a professora decidiu cortar um apêndice que estava a crescer nas suas mãos - um verdadeiro tumor falante, perigoso para a saúde - entrando em pânico como uma criança que vai ser injectada com penicilina.
A respeito da coragem e determinação do Governo, não sei dizer nada, porque nunca me passou pela cabeça que esses fossem valores tão sem conteúdo. Fui erradamente educado na ideia de que a coragem e a determinação são qualidades só dignas de mérito se aplicadas a fazer a justiça, a lutar pela liberdade e pela dignidade de cada um. Nunca fui treinado a pensar que seriam qualidades para legitimar o poder de ser injusto e arrogante. A injustiça e a arrogância parecem coragem e determinação, mas não são; pode mesmo dizer-se que são o seu contrário. Mas sobre isto reconheço a minha muito deficiente formação. Calo-me, portanto.
Agora, sobre o comportamento da tal aluna que entrou em crise histérica numa sala de aula, para gáudio dos seus colegas e perigoso aumento da tensão arterial da sua professora, já me parece ter algo a dizer. Nada que pretenda pôr em causa o brilhantismo dos recém-comentadores de educação: os neófitos precisam que lhes sejam proporcionadas condições para elevar a sua auto-estima, sob pena de destruirmos, à nascença, um verdadeiro filão da comunicação social, o que, sendo feito sem coragem e sem determinação, merecerá pena exemplar.
Houve quem dissesse que a culpa é do novo estatuto do aluno. Logo surgiu a Ministra, dizendo que o estatuto não está ainda a ser aplicado.
A Senhora Ministra tem toda a razão: foi para isso mesmo que o novo estatuto do aluno entrou em vigor em Janeiro e não no início do ano lectivo, foi precisamente para não ser aplicado. Poder-se-ia pensar, então, que a culpa é do anterior estatuto, do que foi revogado pelo novo. Mas terá essa culpa origem no facto de ele ter sido revogado, ou no facto de um amanuense qualquer o ter desrevogado, mantendo dois estatutos diferentes em vigor ao mesmo tempo, como foi comunicado às escolas?
Não consigo ir por este caminho, porque não tenho o traquejo nem a habilidade dos brilhantes comentadores de televisão, jornais e revistas. Seguirei, portanto, o mais simples e primário, dadas as minhas limitações.
Vejamos então:
  • a população escolar mudou: agora já é frequentada por alunos que têm crises de histeria por causa de um telemóvel; antes, não havia telemóveis e as crises de histeria eram um direito exclusivo para professores;
  • as alterações ocorridas no seio da sociedade e transpostas para a escola exigem adequações no conceito e prática da escolarização;
  • estas adequações exigem a superação de obstáculos, gerados quer pelos movimentos sociais, que pela imobilidade da escola;
  • digamos que a escola está parada numa rampa de grande inclinação e não tem força de motor suficiente para a subir;
  • como para os nossos brilhantes reformistas (comentadores e decisores políticos) a ideia de uma escola parada no meio de uma rampa gera urticária, decide-se pô-la em movimento;
  • sem força de motor para subir, e só para que não fique parada, é tomada a corajosa decisão de a fazer descer;
  • em lugar de pensar na reorganização da vida na escola, no estabelecimento de regras novas de vida, cria-se um novo código penal para os alunos, um novo estatuto para os professores, etc.
A histeria dos alunos não vai desaparecer tão cedo.
Mas esta descida da escola ao inferno podia começar a parar. Bastava um pouco menos da dita coragem e um pouco mais de inteligência.

POLÍTICA BARATA NUMA ÉPOCA DE VIDA CARA


Numa época, em que decisores políticos, comentadores de televisão e editorialistas vários falam e escrevem para ocupar o tempo, ou para, como macacos enjaulados, saltar às grades da prisão dourada em que se meteram, para ameaçar pacíficos transeuntes ou para lhes pedir amendoins ou votos, não há motivos para nos surpreendermos com quase nada do que ouvimos ou lemos nos meios de comunicação social.

segunda-feira, 17 de março de 2008

ESTA PÁTRIA...


"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. [.]
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."
Guerra Junqueiro

A MORTE DA JUSTIÇA


Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça
dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal
elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
18/03/2002 - José Saramago

quinta-feira, 13 de março de 2008

O PASTOR AMOROSO - FERNANDO PESSOA

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu... Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.

quarta-feira, 12 de março de 2008

LADRAM CÃES - FERNANDO PESSOA

Ladram uns cães a distância
Cai uma tarde qualquer,
Do campo vem a fragrância
De campo, e eu deixo de ver.

Um sonho meio sonhado,
Em que o campo transparece,
Está em mim, está a meu lado,
Ora me lembra ou me esquece,

E assim neste ócio profundo
Sem males vistos ou bens,
Sinto que todo este mundo
É um largo onde ladram cães.

terça-feira, 11 de março de 2008

SOCIÉTÉ CIVILE


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SÓCRATES E A MINISTRA E A CRISE NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL- ARTIGO MUITO PERSPICAZ DE MÁRIO CRESPO

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PROGRAMA DE DEBATE UNIV PORTUCALENSE - EDUCAÇÃO ESPECIAL

DEBATE SOBRE O DECRETO-LEI 3/2008,
FEEI - FÓRUM DE ESTUDOS DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA

UNIVERSIDADE PORTUCALENSE
15 de Março de 2008.
PROGRAMA



9h00-9-30 – Recepção dos participantes
9h30-9h45 – Abertura da Sessão
Prof. Doutor José Tedim – Vice-Reitor da UPT
Prof. Doutor David Rodrigues – Coordenador do Fórum de Estudos de
Educação Inclusiva - FEEI
9h45 – 11h15 – Linhas orientadoras do debate
Moderador: Prof. Doutor António Vieira – UPT
Dra. Margarida Moreira – Directora Regional de Educação da DREN
Dr. João Dias da Silva
Dr. Vitor Gomes
Dr. Jorge Barbosa

11h15- 11h45 – Intervalo

11h45 – 13h00 – Debate

Coordenação: Prof. Doutor David Rodrigues

RAZÃO, NECESSIDADE E PAROLICE

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segunda-feira, 10 de março de 2008

SÍNTESE DO DEBATE SOBRE O DECRETO-LEI 3/2008, promovido pelo FEEI - FÓRUM DE ESTUDOS DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA


SÍNTESE DO DEBATE SOBRE O DECRETO-LEI 3/2008, promovido pelo
FEEI - FÓRUM DE ESTUDOS DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Aula Magna do Instituto Piaget de Almada, 1 de Março de 2008.

540 participantes.

Oradores:
- Dra. Luísa Mesquita: deputada independente da Assembleia da República e membro da Comissão Parlamentar de Educação e Ciência
- Prof. Doutor Luís de Miranda Correia: Professor do Instituto de Estudos da Criança, da Universidade do Minho
- Prof. Doutor David Rodrigues: Professor da Universidade Técnica de Lisboa, Coordenador do FEEI - Fórum de Estudos de Educação Inclusiva.

O FEEI, Fórum de Estudos de Educação Inclusiva é uma entidade científica com mais de 800 membros, que tem como objectivos fundamentais a formação, informação apoio e investigação sobre Educação Inclusiva. Os objectivos deste debate foram: a) estabelecer um diálogo construtivo com todos os intervenientes implicados, directa ou indirectamente, no Decreto-lei 3/2008 e, b) extrair conclusões que apontem caminhos para a aplicabilidade da Lei, que garantam o direito à inclusão de todos os alunos.



Após 4 horas de um debate muito participado, os presentes:


1- Reafirmaram o seu empenhamento na construção de uma Educação Inclusiva em Portugal, como um caminho inadiável e um direito inalienável.
a) A Educação Inclusiva é um direito de todos os alunos, nomeadamente aqueles com Necessidades Educativas Especiais (NEE) e, por isso, é um dever do Estado a sua implementação.
É desígnio da escola que todos aprendam juntos no estabelecimento de ensino da área de residência e, sempre que possível, nas classes regulares, desde que lhes sejam prestados os necessários serviços e apoios. O lugar para esta construção é a escola regular pública, heterogénea e é este o lugar de escolarização de todos os alunos.
b) A Inclusão constrói-se na sala de aula, através das transformações ao currículo, ao ensino e à organização da escola. O professor de EE é, antes de mais, um docente que organiza, coopera e promove essas transformações. Deve elencar e providenciar a remoção de barreiras. A cooperação e o trabalho em equipa, entre os alunos e entre os professores, são traves mestras da Inclusão.
c) O trabalho técnico específico da Educação Especial e as soluções mais segregadas, como as Unidades, ou a Escolas de Referência, poderão ser necessárias, mas deverão ser sempre último recurso e excepções para uma minoria de alunos. Não deverão ser apresentados como “a” forma de educar estas crianças.A Inclusão centra-se no pressuposto de que os eventuais problemas na aprendizagem não devem ser situados no aluno mas no currículo, isto é, nos conteúdos, na organização e nas estratégias. A ênfase deve ser colocada na colaboração entre alunos e professores, estratégias para alunos e professores, trabalho de sala de aula, planificação conjunta, diferenciação e remoção de barreiras à aprendizagem e participação.
d) O Departamento de Educação Especial deveria ter por missão constituir uma equipa de promoção destas mudanças na escola no seu conjunto.

2- Mostraram preocupação pelo o facto dos pressupostos de uma Educação Inclusiva não terem sido claramente consignados e operacionalizados neste Decreto-Lei.
a) Acentua a necessidade de classificar e agrupar alunos por problemáticas, funções e disfunções.
b) Opta por um sistema de unidades e escolas de referência que poderão desenraizar os alunos das suas comunidade e comprometer a formação da sua rede social de apoio.
c) Utiliza uma classificação proveniente da saúde para categorizar deficiências permanentes, em detrimento de uma avaliação educacional que possa conduzir ao delineamento de programas de intervenção.
d) Necessita de definir “Inclusão”, “Educação Especial” e “Necessidades Educativas Especiais”, para permitir uma compreensão clara e sustentada dos respectivos termos e dos próprios princípios da Lei.
e) É um documento centrado no termo “Deficiência” e restrito ao carácter permanente das NEE, desconsiderando as necessidades de milhares de outros alunos (problemas intelectuais, dificuldades de aprendizagem específicas ou severas, problemas comportamentais e outros).

3- Criticaram o facto de um Decreto-Lei estruturante não ter sido fruto de um debate prévio alargado.
a) A investigação tem que promover a acção e as decisões. Foi criticado o facto de o ME não ter considerado como interlocutores/consultores a amplitude das organizações científicas portuguesas, bem como muita da sua investigação realizada recentemente (cf. “Tomada de posição sobre a CIF”, publicado pelo FEEI em Fevereiro de 2007 e subscrita por 18 Instituições do Ensino Superior do nosso país).
b) As decisões políticas tomadas para este sector deveriam ter por base uma avaliação externa independente do sistema vigente.
c) Esta falta de debate, restringiu a participação de pais, especialistas e investigadores com opiniões e posicionamentos diversos e provocou o afunilamento de uma reflexão mais crítica, tão necessária em mudanças desta natureza.

4- Mostraram preocupação por não ser clarificada a forma de financiamento e dotação de recursos nas escolas regulares, bem como o funcionamento de equipas multidisciplinares e a formação adequada dos docentes.
a) Fala-se de investimento na Educação mas, na prática, verificam-se constrangimentos financeiros. O desinvestimento na Educação sairá muito caro ao país, sendo preocupante a falta de planificação em relação à Educação Especial, em termos de dotações financeiras. Mantém-se um assunto “tabú”, que compromete uma educação de qualidade para centenas de milhares de alunos.

b) Consideraram importante reavaliar a formação especializada de docentes, à luz de um modelo de Educação Inclusiva. Formar docentes para a Inclusão não é o mesmo que os formar para funções meramente técnicas ou para uma intervenção numa escola especial. Faltam propostas sobre o que se prevê como formação e como carreira dos Professores de Educação Especial, sobretudo à luz da Reforma de Bolonha.
c) Questionaram as formações curtas (sensibilizações de 50 horas) realizadas pelo ME sobre assuntos e problemáticas muito sensíveis, quando para a especialização em Educação Especial é necessária uma formação muito mais completa. São acções pré-formatadas, que não respeitam a autonomia das entidades formadoras e que estabelecem padrões de conhecimento nivelados por baixo. Formações “instantâneas” como estas já tinham sido desenvolvidas antes pelo ME, no âmbito das Tecnologias da Informação e Comunicação.
d) Deveria ser criado um sistema de colocações que tivesse em conta as necessidades dos alunos e das escolas e não um sistema pré-formatado, computorizado de colocações, muitas vezes desajustadas e que deveriam ser corrigidas, sempre que necessário.
e) Sabendo que a rede dos Serviços de Psicologia e Orientação (SPO) abrange apenas 15% das escolas portuguesas, constata-se que as escolas não têm acesso a equipas multidisciplinares. Os professores de Educação Especial estão, muitas vezes, sozinhos na sua tarefa. Este documento legal não promove estas equipas que são pedra basilar de um atendimento de qualidade.
f) O documento introduz a intervenção do Director de Turma (DT), do Conselho Pedagógico (CP) e do Conselho Executivo (CE) em diferentes etapas da aprovação e coordenação do PEI, que deveriam ser da responsabilidade do docente de Educação Especial. Estes docentes deveriam ser os responsáveis pela aprovação e coordenação dos PEI, estando este aprovado logo após a assinatura dos intervenientes, respeitando, desta forma, a autonomia e competência profissional destes docentes.

5- Propõem a retirada da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) como instrumento base da classificação dos alunos a eleger para a Educação Especial.
a) A CIF diz respeito à saúde e qualquer extrapolação linear para a educação pode ter consequências gravosas. Esta classificação está ainda num processo de adaptação e estudo, não havendo investigação que possa validar a utilização da CIF em termos educacionais. O ME iniciou a utilização da CIF com um instrumento criado para adultos e a versão para crianças e jovens, embora parcialmente traduzida, não se encontra ainda disponível para uma aplicação na realidade portuguesa.
b) A aplicação da CIF em Educação não obtém a aprovação, nem dos seus próprios mentores e autores, que evidenciaram muitas reticências quanto à forma como este documento está a ser usado em Portugal.
c) A CIF deve basear-se nas várias avaliações das equipas interdisciplinares. Pode aglutinar informação arrumando-a em códigos e ter linguagem comum, mas em Educação o seu uso é confuso e desnecessário. Avaliar e intervir com base na CIF é uma opção que retira qualidade à intervenção educacional.
d) Na sua utilização educacional, a CIF não tem eco nem nos EUA nem na Europa.

i. As principais dúvidas levantadas pelos participantes quanto à aplicação prática da CIF estavam relacionadas à: Confusão entre Actividades e Participação
ii. Subjectividade nos processos de graduação da gravidade.
iii. Excesso de tempo para o seu preenchimento e necessidade de estarem presentes todos os recursos envolvidos. Houve referência ao facto de ser antiético o preenchimento da parte médica da CIF por professores e foram reportadas repetidas opiniões de médicos que afirmavam “não ter tempo” ou “não saber” como se preenche a CIF.

6- Consideram fundamental reformular este documento legal ou, pelo menos, proceder a alterações urgentes, desta vez, com a participação de todos.
a) São considerados aspectos positivos: a obrigatoriedade do PEI; a promoção da transição para a vida pós-escolar, a confidencialidade do processo; a criação do Departamento de Educação Especial, o fim dos encaminhamentos para instituições e as sanções às escolas que se recusem a aceitar estes alunos.
b) Na impossibilidade de proceder a essa desejada reformulação, seria importante corrigir de imediato os seguintes pontos:
a. Retirar o ponto da CIF, pelas razões anteriormente citadas.
b. Reescrever uma parte do corpo do decreto face à retirada da CIF quanto à elegibilidade, estabelecendo critérios consensuais e científicos. Assumir que a avaliação e a intervenção em Educação Especial deve ser feita em função do currículo.
c. Retirar a necessidade de aprovação do PEI pelo CE e pelo CP, devendo este documento estar aprovado quando assinado pelos intervenientes. Num lado aparece o CE a aprovar e noutro o CP.
d. Retirar o termo “crianças” nos processos de transição e flexibilizar os prazos referidos como forma de permitir equilíbrio e bom-senso no peso das diversas componentes e respostas para estes alunos, numa perspectiva de prioridade à Inclusão na turma e no currículo comum.
e. Estabelecer que a coordenação da aplicação do PEI deveria ser do docente de Educação Especial e não do DT.
f. Apresentar as unidades e Escolas de Referência como excepção e último recurso, promovendo a Educação Inclusiva para as problemáticas severas, privilegiando soluções mais abertas, salas de transição e centros de recursos.
g. Dar a prioridade à cooperação, às parcerias, à prática pedagógica diferenciada e à permanência dos alunos com NEE na sua turma de referência, em detrimento de respostas mais restritivas excepcionais.
h. Educação Bilingue deveria ser objecto de medidas educativas de outro tipo, por se tratar de uma comunidade com uma identidade própria e com uma Língua específica.

domingo, 9 de março de 2008

JÁ FOI HÁ MUITO TEMPO...


Eduardo Prado Coelho



Já foi há 25 anos


Sabes que houve uma primeira vez que eu tentei explicar o 25 de Abril, e que foi um verdadeiro fiasco? Estávamos ainda em plena efervescência, naquela espécie de Maio de 68 dilatado, passado e repassado em câmara lenta às vezes exasperante, outras vezes contagiante e comovedor, e, sabe Deus porquê, os senhores da embai-xada da Bulgária acharam que eu devia lá ir escolher filmes para uma semana de cinema búlgaro, que se passou ali no Apoio 70. Escolhi para abertura do Festival um filme feito por estudantes, alunos de uma escola de cinema, sobre uns jovens que roubavam carteiras nas ruas de Sófia, e aquilo nem caiu muito bem em termos oficiais, mas era do mais fresco e saudável que por lá vi. E na Bulgária deram-me uma guia, que era filha de um cineasta, que lia Freud às escondidas na biblioteca da Alliance Française, e a quem deixei os romances de Pierre Jean Jouve que levava comigo, e ela queria saber o que era o 25 de Abril e eu explicava com o entusiasmo de quem supunha (ou supunha que supunha ... ) que estava a inventar uma coisa inteiramente nova, que tínhamos come-çado a construir uma alternativa ao capitalismo, que no entanto não tinha aquele ar de pesadelo totalitário em que se tinham transformado os países de Leste, e ela a parte final até entendia, entenderia até melhor que eu, mas o principio suscitava-lhe engulhos, e de repente quase gritou para mim: «Mas o que é que vocês têm contra o capitalismo?...

Aí percebi que estas evidências nunca são inteiramente partilhadas, são evidências para quem acredita nelas, são violências para quem não acredita, e no fundo de nós próprios o enraizamento das crenças é algo de inexplicável. E comecei com ela tudo do princípio. Mas isso não me impede de dizer, e gostar imenso de que tu o entendas por dentro: "O 25 de Abril foi um dos mais belos momentos da minha vida, e o 1 de Maio um dia glorioso, como diz o Pessoa ao escrever os poemas de Alberto Caeiro" 0 que é extremamente difícil de contar, e isso tem a ver com o facto de tudo aparecer em mim mais como poema do que como narrativa, isto é, como uma sobreposição de imagens que se arrancam ao tempo normal, e que criam um contra-tempo, isto é, um tempo que resiste ao tempo normal e procura uma outra forma de ordenar as paisagens, os gestos, as palavras, etc.

Eu sabia que havia coisas que se estavam a preparar, alguns amigos (lembro-me de conversas com o Fernando Lopes) mantinham-me informado, pressentia que um tempo chegara ao seu termo, e no entanto isso aparecia como a mais improvável das probabilidades. Encontrava-me no Monte Carlo que já não existe, mas onde durante anos almocei dias a fio, ou então no Vavá, que existe mas reduzido ao fantasma de si próprio, e aí recolhia informações, trocava opiniões, avaliava hipóteses, e depois contava ao meu pai, mas ele tinha um cepticismo causticado, já vira muito e não queria acreditar demasiado. Mesmo depois de eu lhe ter levado o livro de Spínola.

Até que um dia, acordei, levantei-me, liguei o rádio como fazia sempre, e no momento em que passava a água pelos olhos para despertar melhor (é importante, para mim claro, dizer que foi neste momento, não é que isto simbolize o que quer que seja, mas é uma espécie de presilha da memória ao real, a coincidência mágica entre a água nos olhos e a ideia de revolução), ouço aquela fórmula mágica: «Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas» (dois poetas mais tarde falariam nas «forças arnadas», num desvio hábil e homenageante de algo que durante meses dominou as nossas vidas), e então chamei a R. e disse: «é agora, começou tudo, ouve» - e ouvimos, e decidimos logo ir chamar os vizinhos amados amigos e sair para a rua e ir ver o que se passava - porque duma coisa estávamos certos, a de que era impos-sível ficarmos parados. E fomos - dum lado, havia o José Antonio e a Hélia, doutro a Maria Alzira e o Manuel Alberto.

Chama-se a isto uma emoção estética - algo que é preciso partilhar o mais depressa possível, algo que é preciso dizer aos outros: não podes perder.
Por isso repito - eu posso comprar-te todos os livros e cronologias sobre o assunto, o belíssimo álbum que o Boaventura de Sousa Santos nos forneceu, os textos de análise do António Reis ou do Medeiros Ferreira, tudo o que quiseres, mas se tu não sentires o 25 de Abril como este momento de poesia pura (o dia em que o real é a poesia absoluta), então não entendes nada de coisa nenhuma, e o melhor é desistires. É isso que torna difícil transmitir uma memória: há uma forma de o vivido nos tatuar o corpo que nada pode apaga'r. É, se quiseres, o para-digma da festa.
Aliás, se pegares no último romance do Helder Macedo, Pedro e Paula, verificas que é um romance sobre o 25 de Abril, porque é um romance sobre o antes e o depois, mas que naquilo que devia ser o 25 de Abril em si mesmo, temos o título do capítulo, «Festa é festa,,, a data, 1974, e a seguir linhas sem palavras, até que na página seguinte, se conclui com esta frase: «Mas festa é festa, e essa já ninguém nos tira». 0 que gosto neste «já ninguém» é que ele engloba Deus, sobretudo se nos lembrarmos daquelas discussões medievais sobre se uma rapariga que tivesse sido objecto de violação poderia deixar de o ter sido por vontade de Deus, ou se o que aconteceu se sobrepõe à omnipotência divina. E esse é o sentido radicalmente revolucionário de quando se diz de algo que foi para nós uma verdadeira festa que "esta já ninguém me tira," - nem Deus, se o quisesse, porque fui eu que o vivi.
E portanto fui eu que vivi o 25 de Abril, fui eu que saí com a R., a Hélia e o Zé Antônio e fomos de carro para os lados do Carmo, ver o que se passava, e andámos em marcha atrás alucinada para fugir aos movi-mentos descontrolados de massas por alguns disparas desgarrados, o encontrarmos as caminhos mais adequados àquilo que pretendíamos: viver a História no momento em que ela é ainda a «nossa história».

Depois, foi à noite olhar a televisão e descobrirmos, entre alguma admiração e alguma desconfiança, o rosto dos "nossos" libertadores. Mas foi sobretudo o espanto de vermos como tudo o que parecia inabalável estava corroído por dentro, como as tropas não tinham alma para lutar em defesa de uma ditadura visceralmente minada, como a democracia era (às vezes demasiado depressa) uma «evidência», e como o MFA nos aparecia, nas suas múltiplas faces e contradições, como a total inversão do que pensávamos: afinal as Forças Armadas podem ser democráticas, podem mesmo ser de esquerda, podem mesmo ser inge-nuamente de extrema-esquerda, e durante alguns meses vão desem-penhar o papel do sujeito-suposto-saber, isto é, do pólo de todas as transferências, do lugar de todas as utopias, eles chegam e a situação resolve-se, nomeia-se um MFA e a democracia assegura-se...

No dia seguinte, entrada orgulhosa e feliz no espaço da Faculdade de Letras, e foram dias de uma fraternidade real, da cumplicidade inter-minável entre os amigos que se encontravam e a quem nos abraçávamos, mas também os sorrisos na rua. A felicidade partilhada, a alegria comum, na certeza já de que tudo o que de absoluto se vive é a coisa mais frágil deste mundo, e irá fender-se como uma porcelana no próprio momento em que ainda a julgo viver inteira. Mas não tem importância, essa já ninguém nos tira - nem Deuses, nem Reis, nem o ditador que caiu da cadeira, nem o pai precário das conversas em família... Na Faculdade, enfrentamos os primeiros choques entre os impacientes, que querem desde já tudo mais e mais, e os «realistas» , entre os quais me situo de imediato por uma espécie de instinto, para quem o essencial é continuar a viver esta quimérica unidade do povo em festa.

Mas afinal que foi o 25 de Abril?, perguntarás. Foram tantas coisas ao mesmo tempo. Foi o fim da guerra colonial, - embora o início de um processo de descolonização confuso, atribulado e sangrento. Foi a reconquista da democracia mínima, como diria Norberto Bobbio, e a rodagem dos seus novos mecanismos, e com isso a recusa feroz de

qualquer nova forma de censura, de todos os processos de opressão, de todas as polícias sem controle, de tudo o que de perto ou de longe evocasse o tempo salazarento em que os discursos do "velho abutre" tinham o dom de tornar «as almas mais pequenas» (para glosar um poema de Sophia de Mello Breyner). E foi a entrada num tempo em que "as almas se sentiam maiores". 0 Partido Comunista procurava reeditar os processos de conquista de poder que tinham funcionado noutros tempos e noutros lugares: multiplicando-se em duplos mais ou menos exangues, e empurrando as alternativas reais para o espaço da não-democracia. 0 PS, procurou resistir, mesmo que para tal se aliasse aos esquerdismos mais descabelados. E lembro-me como todos os partidos, do CDS ao PPD, entravam na gramática da revolução: no fim do Campo Grande, alguém havia escrito que «Só a social-democracia é revolucionária». Uns sonhavam com uma inserção na lógica terceiro-mundista - era esta a alternativa dos militares mais ideologica-mente formados (entre os quais o mais notável foi sem dúvida Meio Antunes, o mais corajoso sem dúvida Otelo, o mais inteligente e hábil sem dúvida Costa Gomes, e o mais ingénuo e exaltado Vasco Gonçalves). Outros iriam desde logo apostar na carta europeia - foi essa a genial intuição de Soares.

Contudo, o essencial do 25 de Abril, aquilo que faz que para uns se trata de uma data que os faz (nos faz) estremecer de emoção, hoje, ainda e sempre, e que para outros o importante é o que 'se instalou depois, e a data evoca apenas os excessos, as confusões, a batalha quotidiana por uma verdade incerta e inacessível, a violência das exclusões, dos saneamentos ou das fugas apressadas para o Brasil, o essen-cial do 25 de Abril, repito, é que se trata de um momento revolucionário (e não de uma revolução, como o PCP terá imaginado, ao querer copiar um desses regimes que hoje reconhecem ter sido de repressão e crime organizado e domínio boçal e baço das burocracias). E o que é um momento revolucionário?

É talvez aquilo que provavelmente só a nossa geração sabe ainda reconhecer em toda a sua pureza: é quando, movidos pelo desejo de outra coisa, ou melhor, de uma coisa sempre outra, vamos um pouco à frente de nós próprios, suspensos de desejo e não-saber, capazes do melhor (e por vezes do pior), num crescer de alma em que tudo converge, moral e estética, política e conhecimento, numa bola de fogo e exaltação, mitologia romântica, se quiserem, ou transcendência da história, ou ruptura das métricas do tempo, e andámos aos tiros aos relógios de uma cidade para inventarmos as cidades futuras - fique embora mais curta a nossa vida. Não te digo mais nada - dou-te as mãos, e a emoção contagia-nos de novo, como se o mundo começasse hoje aqui e agora, ou, como escreveu Samuel Beckett, «moi seul suis homme et tout le reste, divin,,.

A grande questão é sabermos se isto se transmite, ou melhor, se isto hoje, mesmo como simples menção estética, ou confinada à estética, faz ainda sentido. Não estou certo. 0 que nós vemos à nossa volta é tão obviamente diferente. Terá sido um momento da História que desa-pareceu para sempre? Irá regressar na curva de um ciclo ideológico cuja constituição não sabemos equacionar? Mas as diferenças saltam aos olhos: quando os estudantes antes do 25 de Abril vinham para a rua ser perseguidos e presos pela polícia, então queriam, acima de tudo, um tempo de liberdade. Quando,, já em democracia, passaram dias, semanas, meses, a inventarem novas formas de relação com o saber, novas modalidades da relação de ensino, novos esquemas de'poder, autoridade e participação, era a ideia de que a felicidade poderia ser uma ideia nova na Europa. Quando hoje se manifestam pela questão das propinas, não têm nenhum mundo por detrás, nenhum incêndio por dentro das palavras, nenhum poema oculto ou murmurado, mas apenas a irreverência adolescente e a demagogia manipulada, e é por isso que depois são sages e conformes, conservadores e bem comportados, lisos e performantes, liberais e neoliberais...

Mas todos sabemos como nada se repete. Estamos no princípio de um século, e do que se passa aos nossos olhos fica apenas o cansaço de um século que se escreveu e despudoradamente se desescreveu e nos deixou agora perante o ilegível da História, sem sabermos se isto é o fim, ou o princípio de tudo.

Sobretudo desse tudo que a nossa geração não chegará já a ver, nem mesmo a conhecer, nem mesmo a nomear, mas que eu gostaria que pairasse, como um fio de luz no crepúsculo, no momento em que te começo a contar como foi, há vinte e quatro anos já, o nosso 25 de Abril, e digo: tu sabes, e nas minhas palavras, por instantes, tu és o 25 de Abril que foi.

DNA
1998

sexta-feira, 7 de março de 2008

quarta-feira, 5 de março de 2008

AVALIAÇÃO DOS PROFESSORES

Fernando Basto

Chegou a integrar um grupo que fazia propostas para um novo sistema de avaliação, mas saiu. É professor coordenador com agregação da Escola Superior de Educação de Santarém. Tem 53 anos de idade e 33 de profissão docente. Já publicou 32 livros, edita um "website" sobre Pedagogia e tem três blogs na rede, sendo dois sobre Educação. É consultor da Fundação Calouste Gulbenkian.


Classifica o actual sistema de avaliação do desempenho dos professores como "injusto" e "demasiado burocrático". Ramiro Marques não tem dúvidas mais do que penalizador dos professores, o modelo vai, no seu entender, prejudicar os alunos.



JN| Fez parte da equipa técnica do Ministério da Educação (ME) encarregada de estudar as mudanças a introduzir na avaliação de desempenho dos professores?



Ramiro Marques|Cheguei a fazer parte de um pequeno grupo de trabalho que elaborou alguns princípios orientadores do modelo de avaliação. Participei apenas em duas reuniões, a convite do secretário de Estado Valter Lemos, de quem fui colega e a quem reconheço inteligência e grande capacidade de trabalho.



E abandonou a equipa porquê?

Porque reparei que a intenção era criar um mecanismo que obrigasse dois terços dos professores a ficarem a meio da carreira, ainda por cima sem a garantia de que os que iriam ter acesso ao topo da carreira fossem os melhores. Reparei também que havia a intenção de criar um processo extremamente burocrático e consumidor de tempo e de energias, que andaria associado a um processo de perda de autonomia e de liberdade pedagógica dos professores.



O ME alega que a avaliação de desempenho existente até aqui não passava de um processo de progressão automática. Concorda?

Não é inteiramente verdade. Durante alguns anos, os professores tiveram de se submeter a uma prova pública de avaliação curricular, perante um júri constituído por três personalidades exteriores à escola. Chamava-se a esse exame a prova pública para acesso ao 8.º escalão. Era isso que o estatuto da carreira docente exigia. A prova era dura demorava duas horas, o professor tinha de entregar um portefólio crítico e era interrogado sobre o seu curriculum profissional. Presidi durante mais de um ano a um desses júris. Quem não fosse aprovado nessa prova pública não passaria do 7.º escalão e, portanto, estaria impedido de chegar ao topo da carreira. Mas não havia quotas. Foi precisamente o Governo do PS que acabou com essa prova, instituindo, em consequência, um processo meramente administrativo de acesso ao topo da carreira. O senhor José Sócrates era, creio eu, nessa altura, ministro do Ambiente do Governo que acabou com essa prova pública. Foi cúmplice.



Os professores contestam o actual modelo, dizendo que é demasiado burocrático. Concorda?

É um modelo injusto e demasiado burocrático. É injusto porque, em consequência de um concurso, igualmente injusto e mal conduzido, de acesso à categoria de professor titular, coloca licenciados a avaliar doutorados e professores com menos anos de experiência e menor formação académica a avaliar colegas com mais formação académica e mais anos de experiência. Por outro lado, com a criação de mega-departamentos curriculares, este sistema de avaliação coloca professores de Biologia a avaliar professores de Matemática (e vice-versa) e professores de Informática a avaliar professores de Física, destruindo e espezinhando toda a lógica dos saberes constituídos.



E é burocrático porquê?

Porque obriga os professores à elaboração e preenchimento de um número desmesurado de fichas. Sem querer ser exaustivo, aponto apenas algumas ficha de objectivos individuais, ficha de auto-avaliação, ficha de avaliação do coordenador de departamento, ficha de observação de aulas, portefólio do professor avaliado, ficha de análise de conteúdo do portefólio, ficha de avaliação a cargo do presidente do Conselho Executivo, etc.



Quais são os aspectos mais negativos deste sistema?

São tantos que é difícil enumerar. Os prazos estabelecidos são completamente insensatos; a ausência de formação em supervisão para os avaliadores que irão observar as aulas é inaceitável; a possibilidade de o professor avaliado ter aulas observadas e ser avaliado por um professor de outra área curricular e de outro grupo de recrutamento é simplesmente uma aberração; a periodicidade da avaliação (de 2 em 2 anos) obrigará os professores a dedicarem grande parte do seu tempo, energia e os recursos à avaliação dos colegas, em vez de se concentrarem na preparação das aulas e na relação pedagógica. É por isso que eu digo que os principais prejudicados com este modelo de avaliação serão os alunos.



E vantagens?

Como ele está a ser montado, não reconheço nenhuma vantagem. O Decreto Regulamentar 2/2008 tem de ser profundamente alterado. Os prazos devem ser alargados, a observação das aulas deve fazer-se apenas quando os avaliadores tencionarem dar a classificação de Irregular ou, nos outros casos, a pedido do avaliado; a avaliação deve ser feita de 3 em 3 anos; os dados sobre a progressão dos alunos e as taxas de abandono escolar não devem ser tidos em conta no processo de avaliação dos professores.

TEORIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

BOLETIM DE FEVEREIRO DA OCDE

VAMOS TER CALMA - ACTIVIDADE (EXERCÍCIO) PARA 1º CICLO