quarta-feira, 20 de setembro de 2006

GÓRGIAS

Górgias: O manifesto platónico pela filosofia

1. O lugar do Górgias

Com o Górgias deparamo-nos com uma dos maiores obras de Platão e também uma das mais longas. (De todos os diálogos, só a República e as Leis são maiores). Em nenhum outro as componentes filosófica e dramática da arte de Platão são tão poderosamente combinadas como no confronto aqui encenado entre Sócrates e os seus sucessivos interlocutores. Platão retoma o antigo tema moral grego, que consiste na escolha entre dois tipos de vida e transforma-o num debate filosófico sobre os princípios da moralidade e a natureza da vida boa. E representa estes objectivos com uma intensidade inesquecível na forma como dá vida a Sócrates e aos seus adversários.
O Górgias é também um texto fundador de duas áreas da filosofia; é o seu maior livro de teoria ética e de teoria política. Alguns destes temas são discutidos no Críton[1], no qual Sócrates apresenta as suas razões para não fugir da prisão. Então pode-se dizer que Platão fundou a teoria moral duas vezes: uma primeira vez no Críton e uma segunda vez no Górgias. Mas, evidentemente, Platão foi antecipado neste campo por Sócrates, de uma forma que não podemos determinar. E o poder do Górgias deriva grandemente do facto de Sócrates neste diálogo representar tanto o indivíduo como a reflexão filosófica de Platão sobre o significado da vida e da morte de Sócrates.
O Críton exemplifica a filosofia moral demonstrando como se pode justificar uma importante decisão prática. O Sócrates do Críton (.) sabe que o seu princípio ― nunca se deve agir injustamente, nunca se deve fazer mal aos outros, nem mesmo como paga do mal que nos é feito ― não é um princípio aceite pela maioria das pessoas. [Segundo este princípio, fugir da prisão] seria um acto de injustiça. Assim, Sócrates prefere aceitar a morte. "(.) viver não é o que mais deve ser importante, mas viver bem, e nisto consiste a vida nobre e justa" (Críton, 48 b). A injustiça é uma doença da alma e uma vida com a alma doente e corrompida não é uma vida que valha a pena viver (idem, 47 d-e). Se Sócrates é muito correctamente visto como o santo patrono da filosofia moral, isso não se deve somente ao facto de ele insistir na necessidade de uma reflexão crítica sobre o que se deve fazer e desenvolver essa reflexão numa argumentação cuidadosa. No Críton demonstra também uma confiança incondicional na razão que o guia, enfrentando calmamente a morte, em harmonia com os princípios pelos quais viveu.
Na conversa com Críton, estas teses podem ser tomadas como garantidas, uma vez que são aceites por ambos. (.) Assim, no Críton, podemos ver o talento literário de Platão ao serviço de um dos seus objectivos filosóficos centrais: justificar a confiança socrática numa vida de integridade moral. No Górgias Platão tem o mesmo objectivo numa escala maior e num nível filosófico mais profundo. Aqui Sócrates é confrontado com interlocutores prontos a desafiar as suas convicções mais fundamentais.
O primeiro interlocutor, Górgias, é o famoso escritor, orador e professor, que mostra o poder que a oratória pode alcançar, mas prefere declinar a responsabilidade moral por qualquer uso que dela se possa fazer. O seu discípulo, Polo, é um admirador daqueles que ganham o poder político por meios imorais ou mesmo criminosos. Finalmente, Cálicles é um produto do novo Iluminismo, um jovem político ambicioso que pretende atacar a noção de justiça e moralidade tal como Sócrates a compreende. Na boca de Cálicles, Platão coloca "a mais eloquente afirmação da causa do imoralismo na literatura europeia." Confrontado com estes opositores, Sócrates tem de defender não apenas os seus princípios morais mas todo o seu modo de vida.
No Críton, Sócrates exprime sérias dúvidas sobre a possibilidade de um debate racional com interlocutores que não partilhem a convicção de que se deve agir justamente. (.) No Górgias, pelo contrário, Platão aceitou o desafio de defender os princípios básicos da moralidade socrática contra os ataques daqueles que defendem a mais drástica alternativa: a procura desenfreada do poder e do sucesso. O confronto que o Críton prevê é amplamente confirmado pelo modo rude, e pouco habitual, com que Sócrates responde a Polo (.) (461 e, 463 e, 466 a, b, c) e na hostilidade de algumas partes do diálogo entre Sócrates e Cálicles. Se as paixões são tão intensas, é porque a aposta é muito alta. Trata-se não só de ganhar o argumento, mas de decidir como se deve viver a própria vida e, se necessário, morrer.
O Górgias relaciona-se directamente com a preocupação moral que conduz da Apologia e do Críton à República, uma preocupação com a defesa da moralidade socrática face ao perigo radical do cinismo moral e da política real (Realpolitik)dos oradores. (.) Somente o Górgias e a República expõem o paradoxo na sua versão explicitamente moral: que ninguém age voluntariamente de modo injusto. (.).
O Górgias parece reflectir o período inicial do corte dramático de Platão com a política ateniense, marcado pela sua partida para a Sicília. (.)

2. Techné no Górgias

O Hípias Maior deixa-nos com um dilema por resolver. Ou ninguém faz o mal voluntariamente, ou, se alguém o faz, essa pessoa é melhor do que aquela que faz o mal involuntariamente. Uma vez que a segunda alternativa é moralmente falsa, a primeira deve ser verdadeira. Mas como pode ser verdade que, apesar das aparências em contrário, que ninguém faça o mal voluntariamente? Defendo que Sócrates deixa Platão com este paradoxo e que os diálogos representam a resposta dada por Platão.
Uma das linhas de reflexão provocada pelo paradoxo socrático consiste na concepção platónica de uma techné moral, uma arte ou ciência que saiba o que é o bem e o mal, o certo e o errado (.) que, no Górgias se baseia na analogia com as artes e ofícios [e que se opõe à retórica de Górgias].
Em todas as obras Platão assume o mesmo princípio que encontramos em Íon: uma arte ou uma ciência define-se pela referência ao seu objecto. Para cada objecto existe uma e só uma techné (Íon, 537d). Na primeira secção do nosso diálogo, Sócrates leva Górgias a especificar o objecto da retórica como "acerca do justo e do injusto" (454b); e mais tarde alarga-se a "o que é justo e injusto, feio e belo, mau e bom" (459d), em suma, todo o domínio moral. Além disso, Górgias concorda que o orador não ensina sobre o seu objecto, mas apenas persuade (455a). Mais tarde hesita acerca da questão de saber se o orador possui ou não esse mesmo conhecimento. É a sua prontidão em afirmar que o orador tem tal conhecimento que o conduz à aporia (460a). Polo, quando entra no diálogo em defesa de Górgias, começa por renunciar a esta afirmação (461b). Assim Sócrates pode basear a sua própria noção de retórica sobre a assumpção de que a retórica não é realmente uma techné, uma vez que não possui conhecimento nem ensina acerca do seu objecto.
Correspondendo, contudo, ao objecto em questão, nomeadamente, o domínio da moralidade, deve haver uma techné genuína com esta competência. (.) Esta é o que Sócrates chama politiké, a verdadeira arte da política, da qual a justiça constitui a parte principal. Segundo Sócrates, a retórica vulgar de Górgias é simplesmente a imagem e imitação desta arte [dentro da política] que é a justiça. (.)
Assim, Sócrates declara, no fim do diálogo, "Creio ser dos poucos atenienses, para não dizer o único, que cultivam a verdadeira arte política e a põem em prática nos dias de hoje" (521d). Escusado será dizer que o Sócrates que assim aspira a uma tal techné não é mais o Sócrates ignorante da Apologia.
O que está implicado nesta concepção tinha sido dito de forma mais aprofundada na discussão precedente. A arte de que se fala fará à alma o mesmo que a ginástica e a medicina farão ao corpo. Tal arte investigou a natureza daquilo que trata e a explicação causal dos seus procedimentos, de modo a ser capaz de a ambos explicar racionalmente, tal como o médico que, tendo estudado a natureza do corpo e as causas da doença, consegue dar uma explicação para o tratamento (465a e 501a). E tal como os procedimentos do médico estão teleologicamente subordinados ao fim que é a saúde do corpo, também a teoria e a prática da arte política é estruturada racionalmente pela sua relação ao telos, a saúde moral dos cidadãos "fazendo nascer a justiça e a temperança nas suas almas", tornado o seu pensamento tão nobre quanto possível (504e e 514a). Assim, tendo como objectivo aquilo que é bom para a alma, ou para a pessoa como um todo, a arte moral deve escolher que prazeres são bons e benéficos e evitar aqueles que são maus e prejudiciais (500a). Isto significa que deve satisfazer os desejos que tornam a pessoa melhor, mas não aqueles que a tornam pior (503c, 505b). De acordo com isto, deve mudar os desejos das pessoas, e não submeter-se a eles, usando a persuasão e até a força, se tal for necessário para melhorar os cidadãos (517b, cf. 512a), isto é, fazer nascer a justiça e a temperança e afastar a injustiça e intemperança (504e). Esta é a arte do verdadeiro homem de estado ou, como Platão diz algumas vezes, do orador bom e especializado (. 504d, cf. 503b). Mas, para fazer a selecção entre os bons e os maus prazeres, o especialista em questão deve saber o que é bom e o que é mau (500b).
Esta concepção de arte política em Platão presente no Górgias apresenta muitas características daquilo que constitui o pensamento político e moral de Platão ao longo da sua obra:
1. O paralelismo entre o homem de estado e o médico.
2. A concepção de virtude moral como condição da saúde da alma.
3. A noção de que uma techné procura o bem daquele que a recebe e não a vantagem daquele que pratica a arte.
4. O objectivo do governo é a virtude dos que são governados: tornar os cidadãos tão bons quanto possível.
5. Isto significa controlar os desejos dos indivíduos, satisfazer uns e restringir os outros, tornando a alma temperante.
6. O artista político é capaz de ter este objectivo devido ao seu conhecimento do que é bom e do que é mau.
Em todos estes aspectos, o artista político prefigura o rei-filósofo da República. O technicós do Górgias é, obviamente, também o filósofo, uma vez que Sócrates é o único que pratica esta arte.
Podemos voltar agora ao paradoxo do Hípias Menor. Se a justiça é uma arte, porque é que aquele que a possui nunca abusa dela, não faz o mal voluntariamente? O Górgias contém uma dupla resposta. Em primeiro lugar, uma techné genuína é definida não somente pelo seu objecto mas também pelo seu objectivo: seja o que for que se faça, faz-se procurando algo bom: neste caso, o bem daqueles que a recebem. Em segundo lugar, uma vez que o artista em questão possui (por definição) o saber que é relevante, ele ou ela não pode errar. (.) Agora, a fim de evitar cometer o erro, duas coisas são necessárias: primeiro, o desejo, segundo, a técnica ou a habilidade. Por hipótese, se alguém possui a arte, terá a técnica ou a habilidade. O desejo, pelo contrário, pode ser tomado como garantido: "ninguém quer fazer o mal, mas todo aquele que faz o mal, fá-lo involuntariamente" (509e). (.)
O paradoxo socrático é assim derivado de duas teses contra Polo: todas as acções são feitas em vista do bem, que é o que realmente se quer (467c-468b) e, uma vez que fazer o mal (agir injustamente) é o maior dos males (469b), não é algo que realmente se queira. Deste modo, todos os males têm de ser feitos involuntariamente, apenas por ignorância. Ninguém que tenha a arte da justiça e, consequentemente, saiba o que é justo, irá alguma vez agir injustamente: ninguém que saiba e tenha o desejo do bem faz o mal. No condicional "Se alguém faz o mal voluntariamente, então.", o antecedente nunca é preenchido. Assim se evita com sucesso a conclusão inaceitável do Hípias Menor.
Podemos também ver, a partir do paradoxo aqui formulado, como se passa facilmente à identificação da virtude com o conhecimento. Qual é o estado de espírito ou carácter que distingue um indivíduo virtuoso de um indivíduo imoral? Não pode residir na natureza do seu desejo profundo, se é verdade que todos desejam a mesma coisa, nomeadamente o bem. Os indivíduos desejam praticar acções neutras ou instrumentais apenas se essas acções contribuem para alcançar fins bons (468a). Deste modo, aqueles que cometem actos imorais ou criminosos fazem-no apenas com a crença errada de que estes actos são bons ou conduzirão ao bem. Se tivessem o conhecimento requerido daquilo que é bom e mau, evitariam essas acções e, em vez delas, agiriam virtuosamente. Assim, a posse de um tal conhecimento seria uma condição suficiente para se ser virtuoso e agir virtuosamente.
A identificação da virtude com uma forma de conhecimento não é uma tese explícita do Górgias (.). Quando a unidade das virtudes é derivada da temperança, em 507a-c, a sabedoria está manifestamente ausente da lista de virtudes. (.)
Porque é que o Górgias não caracteriza a virtude como conhecimento? (.) Há também uma explicação interna à argumentação do Górgias. Na concepção da techné moral e política que é aqui articulada, a virtude aparece como um telos, a boa condição das almas daqueles em que esta arte é praticada. O conhecimento moral ou techné é definido em parte pela referência ao seu produto, a excelência psíquica daqueles que são governados e/ou educados. Se a virtude, o produto desta arte ou techné, fosse identificado com a própria arte, esta identificação iria tornar obscura a sua estrutura teleológica. Mas no vocabulário de Platão os termos para arte, conhecimento e sabedoria podem ser usados uns em vez dos outros. Estes termos são aqui aplicados à competência técnica do artista político e não à virtude que ele deve gerar nas almas dos indivíduos. Deste modo, apesar de a virtude não ser, no Górgias, identificada com o conhecimento, encontram-se já a maioria das asserções requeridas para que esta identificação esteja já presente.

3. Refutação no Górgias

(.) [A] refutação socrática consiste mais em testar os indivíduos do que as proposições: Sócrates examina os interlocutores para ver se a sua vida está de acordo com os princípios que professam. As três sucessivas refutações de Górgias, Polo e Cálicles representam o mais brilhante retrato literário de Platão da refutação em acto, onde o carácter do interlocutor é parte essencial da sua derrota dialéctica.
Todas estas refutações são relacionadas primeiramente com problemas da ética normativa: o que é que torna uma vida boa, e se é sempre do nosso interesse agir de forma injusta. O primeiro diálogo com Górgias trata este tema obliquamente, mostrando que a procura do poder político por técnicas de persuasão de massas pode estar divorciada da questão da justiça e da responsabilidade moral. Com Polo, o problema é enfrentado com firmeza: é melhor cometer ou sofrer a injustiça? Pode o criminoso bem sucedido levar uma vida boa? Mas é com Cálicles que o desafio à moralidade encontra a expressão mais radical. Para Cálicles, as restrições morais à procura do poder e do prazer são meras convenções que os fracos impõem àqueles que são os seus superiores naturais. Cálicles e Sócrates apresentam, assim, pontos de vista opostos sobre o que constitui a vida boa.
Contra Górgias, Sócrates mostra que alguém que treine os jovens para a liderança e o poder político não pode declinar a responsabilidade moral pelo uso que é feito deste treino. Ao conduzir habilidosamente Górgias a afirmar a omnipotência da técnica da persuasão, depois de este ter admitido que a retórica apenas pode produzir a crença sem conhecimento, Sócrates impede Górgias de declinar a responsabilidade moral. "De momento, vejamos primeiro se, relativamente ao justo e ao injusto, ao feio e ao belo, ao bom e ao mau, a situação do orador é a mesma que em relação à saúde e aos objectos das outras artes, ou seja, se, sem conhecer as coisas, sem saber., lhe basta apenas imaginar um processo de persuasão a este respeito para, apesar de ignorante, parecer mais entendido que os entendidos aos olhos dos ignorantes. e que pareçam homens de bem sem o serem?" (459d- e), ao que Górgias é obrigado a responder: "Penso, Sócrates, que quem, porventura, não conheça já essas coisas aprendê-las-á também comigo." (460a).
A resposta de Górgias não é aparentemente sincera. Ménon diz-nos que Górgias nunca disse que ensinava a virtude, e ria-se daqueles que diziam que o faziam (Ménon, 95c). É, no entanto, forçado a dizê-lo porque (e Polo assinala isso) se envergonhou de admitir que o orador não precisa de saber "o que é justo e bom" e não ensina estas coisa ao aluno que é ignorante nestas matérias (461b). A sua vergonha diz respeito à sua preocupação pela opinião pública e à perigosa situação de ser um estrangeiro que educa os futuros políticos de Atenas. Não há contradição conceptual no modo de Górgias ver a retórica como um livre instrumento do poder político. Mas há uma incompatibilidade pessoal e social entre a expressão pública do seu ponto de vista e a sua posição como educador de uma elite.
A refutação de Polo por Sócrates é mais complexa. Polo afirma que cometer a injustiça é melhor do que sofrê-la, ainda que cometê-la seja mais feio[2]. Sócrates defende a tese oposta numa forma deliberadamente paradoxal: "Estou convencido de que eu, tu, as outras pessoas, numa palavra, toda a gente considera pior praticar do que sofrer a injustiça e pior não ser castigado [por injustiça] do que suportar o castigo"(474b). O argumento do Sócrates consiste em mostrar que se cometer a injustiça é mais feio, então também tem que ser pior (mais vergonhoso). A validade do argumento de Sócrates foi muito discutida. O que aqui nos interessa não é a validade do argumento, mas o ênfase colocado no papel da vergonha. (.) De acordo com Cálicles, o erro de Polo foi o facto de ter admitido que cometer a injustiça é mais vergonhoso; foi refutado porque "se envergonhou de dizer o que pensava", nomeadamente que a injustiça é realmente bela (admirável) (482e).
Polo é refutado porque não consegue conciliar a sua admiração pelo poder e riqueza, independentemente do modo como são obtidos, com o reconhecimento de que os actos injustos ou criminosos são geralmente olhados como desonrados ou "vergonhosos". Não dá conta desta censura moral nos termos de prazer e utilidade, porque não tem noção do funcionamento moral da sociedade. Cálicles, pelo contrário, irá empregar os recursos teóricos do contraste familiar entre natureza (phusis) e convenção (nomos) para mostrar que a desonra que é associada aos actos injustos é baseada somente no nomos, as convenções morais estabelecidas pelos fracos no seu próprio interesse. Para os fortes, pelo contrário, o padrão de honra e desonra é estabelecido, não por convenção, mas por natureza, o que justifica o domínio dos fracos pelos fortes.
Sócrates concorda que os seus dois primeiros interlocutores foram derrotados devido ao seu excesso de vergonha: foi a vergonha que levou Górgias e Polo "a contradizerem-se perante tanta gente, em questões de tão grande importância" (487b). Cálicles aparece como o interlocutor ideal, porque não tem vergonha de falar francamente: ele dirá abertamente "o que os outros pensam, mas não quiseram dizer" (492d).
No entanto, a derrota de Cálicles será acelerada pelo seu sentido de vergonha. A refutação incide sobre a sua tese de que a vida feliz, a vida daqueles que são fortes e independentes de todas as inibições convencionais, consistirá em maximizar o prazer e em satisfazer todo e qualquer desejo. Sócrates começa por lhe perguntar se coçar-se quando se tem comichão é uma satisfação de um desejo, tal como beber quando se tem sede; e até que ponto uma vida vivida a coçar-se é uma vida feliz (494c). Quando Cálicles protesta contra a vulgaridade da questão, Sócrates aconselha-o a não ter vergonha, que foi a falha de Polo e Górgias. Assim, Cálicles responde francamente que alguém que passa a vida a coçar-se tem uma vida feliz e agradável ― dependendo das partes do corpo que coça (494d). A próxima jogada de Sócrates é decisiva: pergunta a Cálicles o que pensa da vida dos kinaidos[3], o que, falando grosseiramente, designa aquele que gosta de ser o parceiro passivo numa relação homossexual. A lei ática aparentemente trata este acto como prostituição masculina, sendo suficiente para privar a parte culpada dos direitos de cidadania. Cálicles, o político ambicioso que admira as virtudes viris, não pode seriamente descrever a vida do kinaidos como afortunada ou feliz, como Sócrates o desafia a fazer. Só pode acusar Sócrates de não ter vergonha de levar o argumento até este ponto!
Perante este desafio, Cálicles, em busca da consistência, mantém a identidade entre prazer e bem (495a). Mas, de facto, ele foi derrotado por este primeiro argumento contra o hedonismo, e derrotado pelas consequências vergonhosas da sua tese (. 495b). Contudo, uma vez que Cálicles não admite a derrota, Sócrates elabora dois argumentos formais contra a equivalência do bem e do prazer. O segundo destes argumentos, aquele que finalmente leva Cálicles a abandonar a sua tese, mostra que, se o prazer e o bem não forem distintos, não haverá nenhuma base para a superioridade moral dos homens corajosos sobre os cobardes, como Cálicles defende. Neste, tal como no primeiro argumento dos prazeres vergonhosos, não é certamente o hedonismo em abstracto que está a ser atacado, mas o hedonismo enquanto tese defendida por Cálicles. É porque Cálicles é um aristocrata orgulhoso e um político ambicioso que não pode ser um hedonista consistente. A tese, como tal, não é necessariamente inconsistente. É o vínculo entre o homem e a tese que se mostra ser incoerente. É este o motivo pelo qual Sócrates pode afirmar que Cálicles rejeitará a sua tese quando "se examinar correctamente" (495e). Desde o princípio que Sócrates o avisara que a sua posição o levaria à dissonância: (.) (482b-c)[4].

4. A função positiva da refutação

Os resultados das três refutações são essencialmente negativos: revelam a incoerência entre a vida e a doutrina do interlocutor, uma incoerência que se reflecte na inconsistência entre os diferentes pontos de vista sustentados pelo mesmo homem. Mas como podemos relacionar estes resultados negativos com a doutrina moral positiva apresentada nos paradoxos contra Polo e defendida na secção final do diálogo depois da derrota de Cálicles? Não há dúvida que Sócrates apresenta a sua tese moral (que cometer a injustiça e escapar sem castigo é o pior dos males) como estabelecida pelos argumentos refutativos usados para refutar Polo e Cálicles. ((.) 508e - 509a)[5].
As conclusões estabelecidas contra Polo são apresentadas igualmente como constringentes contra Cálicles e, na verdade, contra qualquer pessoa, de tal modo que ninguém as pode negar sem cair em contradição. Mas como podem argumentações tão personalizadas e, no caso central de Polo, argumentos tão complexos e duvidosos, justificar estas afirmações fortes e universais?
Sugiro que o papel importante atribuído à vergonha nestas três refutações é uma chave para a sua validade. A vergonha reflecte uma concepção platónica que corresponde à nossa noção de uma consciência moral inata, que Platão descreve como um desejo universal do bem. Esta é a tese apresentada no primeiro paradoxo contra Polo: que todos os homens desejam o bem e perseguem-no em todas as suas acções (468b-c, 499e; cf. República, VI, 505d). A vergonha opera neste diálogo como uma intuição obscura do bem por parte dos interlocutores de Sócrates. Talvez seja numa intuição deste tipo que Sócrates se baseia para dizer que Polo ou Cálicles estarão inevitavelmente de acordo com ele ou em desacordo consigo próprios. Porque (como Sócrates diz) todos desejamos o bem. E o bem é, de facto, a areté[6] socrática, a excelência moral e intelectual da alma. E é por isso que ninguém quer ser injusto ou agir injustamente.
A invulnerabilidade à contradição que Sócrates implica na sua tese fundamental ― que a areté é o que nós realmente queremos, o nosso verdadeiro bem e felicidade ― é reforçada pelo apelo dramático da caracterização de Sócrates como a encarnação da sua própria tese. A caracterização de Sócrates parece fornecer um complemento positivo aos resultados negativos da refutação. Aqui também a mestria de Platão reside na combinação que faz entre os elementos pessoais e doutrinários (.) A fim de compreender o significado filosófico, do ponto de vista de Platão, deste enorme poder presente no retrato literário de Sócrates, devemos considerar algumas das implicações da sua afirmação de que todos somos motivados por um desejo racional do bem.
O primeiro paradoxo contra Polo (os oradores e políticos não têm poder, não fazem o que querem, mas apenas o que lhes parece melhor) assenta no pressuposto de que só queremos coisas boas ou só o bem e, assim, façamos o que fizermos, é procurando qualquer coisa boa (ou simplesmente pelo bem ― 468b). Para Sócrates é bom aquilo que é bom em primeiro lugar para o espírito: uma acção é boa para mim apenas se melhorar a minha alma, tal como o acto justo o faz. Mas não é uma verdade privada: aquilo que é bom para mim é também para toda a gente. E toda a gente quer o que é bem para si. E, de facto, agir justamente é bom para eles. Assim, toda a gente quer agir justamente, quer saibam isso quer não. Ninguém quer agir injustamente, porque (quer saibam isso quer não) isso lhes vai fazer mal, e ninguém quer ser magoado. Quem age injustamente fá-lo akon: involuntariamente (porque não quer ser magoado) e sem saber (porque não tem consciência que praticar aquela acção é prejudicial).
Esta leitura do argumento parece ser pressuposta no próprio resumo de Sócrates, em 509e: ".Polo e eu tivemos ou não razão (.) contra a sua vontade?" Isto implica que todos temos um grande e profundo desejo racional, se bem que inconsciente, uma espécie de desejo verdadeiro, de justiça e virtude, uma vez que o que é bom para nós (o nosso bem-estar ou felicidade) consiste na condição justa e virtuosa da alma. Mas se nos faltar o conhecimento ou a techné da justiça e da virtude, não sabemos qual o nosso bem: somos incapazes de identificar o objecto do nosso desejo (o bem intrínseco) e também de assegurar os meios para o atingir (o bem instrumental). (.) É requerida uma tal techné tanto para reconhecer o verdadeiro objecto de desejo e também para assegurar os meios de o atingir.
(.) Se alguém conseguir ver que a virtude é um bem (e portanto um bem para si) então irá desejá-la. A função da refutação, reforçada pela apresentação de Sócrates como um modelo de virtude, é trazida ao interlocutor e ao leitor até ao ponto em que consigam vê-la. E não é tanto a capacidade dialéctica de Sócrates que o leva a isso, mas a sua habilidade em desenhar aquele profundo desejo do bem que motiva qualquer agente racional, mesmo quando o próprio agente ignora a natureza do seu próprio desejo.
Se é esta a perspectiva de Platão, podemos compreender melhor a importância que o papel da vergonha tem nestas três refutações. Em cada caso, o sentimento de vergonha marca o facto de Sócrates trazer à cena as preocupações morais que o interlocutor deve reconhecer, as quais, se correctamente compreendidas, o conduzirão a uma percepção correcta da areté como o bem que ele realmente deseja. Tal percepção não ocorre realmente durante o diálogo (.).
O efeito no leitor reside fora do diálogo. O que temos no texto é o impacto nos interlocutores; Sócrates manipula o seu sentido de vergonha para os forçar a confrontar-se com a incoerência da sua própria posição e, assim, dar um passo no reconhecimento da ignorância, que é o princípio da sabedoria. (.)
(.) Quando a vergonha (.) leva Cálicles a reconhecer a incoerência entre uma vida dedicada simultaneamente ao poder político e à satisfação indiscriminada, ele é obrigado, com efeito, a abandonar a perseguição do "apetite" ou prazer a qualquer preço, a favor do princípio socrático (.), segundo o qual deve haver uma avaliação dos impulsos e da satisfação, segundo algum padrão de bem. Assim, na refutação de Cálicles, encontramos, quer uma distinção fundamental entre duas concepções de desejo, quer a inadequação de uma dessas concepções como base de uma teoria coerente sobre a vida boa. Quando Cálicles admite que alguns prazeres são melhores e outros piores (499b), aceita essa tese socrática, ou seja, a escolha racional como critério decisivo da virtude e da felicidade (.). Voltamos imediatamente à noção do bem como objectivo e fim da acção (499e-500a) e, eventualmente, ao desejo racional de felicidade, o qual só pode ser realizado na prática das virtudes (509c e sgg). Assim, "ninguém pratica voluntariamente a injustiça e que, portanto, os autores do mal o são sempre contra a sua vontade" (por ignorância) (509e). Como vimos, o desejo racional de bem pode não ser consciente, particularmente no caso de Cálicles. Mas é função da refutação trazer este desejo à consciência. (.) [E a contradição resulta do facto] de que os seus desejos conscientes estão em desacordo com esse desejo mais profundo.

5. Os limites do Górgias

A refutação de Cálicles vai além da sua admissão de que alguns prazeres são melhores do que outros, em 499e, até à conclusão em 508b, que afirma a negação directa da sua tese moral: a disciplina[7] e a moderação dos apetites é melhor para a alma do que a satisfação incontrolada. Esta conclusão é conseguida por um argumento que assenta fundamentalmente numa concepção das virtudes como ordem e harmonia da alma (taxis, kosmos). Esta concepção é aqui introduzida por meio de uma indução sistemática a partir das artes. Tal como na pintura, arquitectura ou construção de navios, um artista moral e político irá "olhar para a sua obra" de modo a dar-lhe uma forma (eidos) e uma ordem harmoniosa (taxis). Tal como uma casa ou um barco são caracterizados pela ordem e estrutura harmoniosa (kosmos), e também os nossos corpos, também assim será a alma: "não será a alma boa quando caracterizada pela ordem e harmonia, mais do que pela desordem?" Cálicles dá o seu assentimento: "As afirmações precedentes obrigam-nos a admitir a segunda hipótese." (504b).
A necessidade que conduz ao assentimento de Cálicles é estritamente a da analogia. E o mesmo é verdade para o próximo passo, que identifica a ordem espiritual com as virtudes da justiça e da temperança, por analogia com a saúde concebida como o produto da ordem harmoniosa no corpo (504c-d). Assim, é inteiramente baseado nesta analogia com as artes que Sócrates estabelece a superioridade da disciplina moral sobre a satisfação desenfreada no final da refutação de Cálicles, em 505b.
Uma analogia ainda mais forte é introduzida em 508a como suporte da afirmação de que o homem bom é feliz e o mau infeliz (507c).[8](.)
Cálicles não percebeu isto porque não vira o grande poder da proporção geométrica entre os homens e os mortais.
Esta concepção da alma harmoniosa e bem ordenada como semelhante, por um lado, à ordem natural do cosmos e, por outro, às obras de arte bem conseguidas, é a última tentativa (.) de assegurar um suporte teórico da convicção de que a vida de Sócrates é não só a melhor, mas também a mais feliz que um ser humano pode querer viver. Desta conclusão, que é "pela posse da justiça e da temperança que as pessoas felizes são felizes, e as pessoas infelizes são infelizes", Sócrates não pode derivar os paradoxos previamente enunciados contra Polo e Górgias: que cometer a injustiça é pior do que sofrê-la e de que o orador deve ser uma pessoa justa e saber o que é a justiça (508b-c). Estas conclusões são afirmadas como sendo as mais fortes, estabelecidas por "razões de ferro e diamante", [nas passagens 508e-509b].
O que torna estes argumentos tão fortes, tal como é dito? Sabemos que o argumento contra Polo não é suficientemente forte para estabelecer as conclusões de Sócrates e custa a crer que Platão não estivesse plenamente consciente disso. O argumento positivo contra Cálicles baseia-se completamente na suposição de que o que torna uma coisa boa é o próprio kosmos; e a ordem própria da alma é a temperança e a justiça. Como vimos, esta tese é baseada na analogia com os produtos da arte humana. (.) [E toda a argumentação, à excepção do argumento dedutivo para a unidade das virtudes, em 507a] é baseada na analogia. [E Platão conhecia a crítica ao argumento por analogia]. Platão deve ter compreendido que os argumentos positivos do Górgias eram insatisfatórios. E foi para os tornar melhores que escreveu a República.
O que falta [ao Górgias], em primeiro lugar, é uma psicologia moral [tal como é escrita na República]. (.). E também uma teoria do conhecimento (.) e uma teoria do objecto do conhecimento (.). Para passar deste technikos do Górgias para o filósofo-rei, necessitamos da doutrina das Formas. (.) [E] também de uma teoria do eros (.).
No entanto, o que o Górgias nos oferece não é de todo negligenciável. Nesta obra temos o argumento mais convincente para a posição moral de Sócrates no colapso total da alternativa de Cálicles, com um contraponto positivo no retrato do próprio Sócrates. A refutação mostra que os adversários de Sócrates não podem explicar o bem e o mal, o certo e o errado a partir das suas próprias vidas e das suas próprias convicções. O ideal socrático da excelência espiritual é estabelecido pelo único suporte que a refutação pode dar: só no seu caso a sua vida e a sua morte estão em harmonia com as suas doutrinas. (.)
O Górgias implica que esta harmonia entre a vida e a crença existe porque as doutrinas de Sócrates estão, e as teses dos seus adversários não, de acordo com o seu desejo racional de bem. (.)
No Górgias as coisas são mais simples, uma vez que o nosso desejo racional de bem está directamente relacionado, não com uma Forma transcendente, mas com o adorno da nossa alma com a virtude que torna uma vida admirável e amada. Aqui (.), a vida e a morte de Sócrates são apresentadas como a suporte principal do seu ensino moral (.). Nenhuma teoria e argumento ou prova filosófica que ignore este desejo fundamental em procurar padrões de assentimento ou concordância pode explicar adequadamente a prática do filósofo tal como é retratada nos diálogos de Platão.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

O PRIMEIRO GRANDE HERÉTICO

O primeiro grande herético do cristianismo foi Marcião. Apesar de o ter apelidado de "primogénito de Satã", a Igreja com fina consciência, tratou-o sempre com desusada consideração, porque era, com efeito, fora do dogma, uma varão em tudo exemplar.

Marcião, como todo o gnosticismo, parte de uma consciência hiper-sensível ao carácter de limitação, de defeito, de insuficiência adstrito a tudo o que é mundano. Por isso, não admite que o verdadeiro e supremo Deus tenha algo a ver com o mundo: ele é o absolutamente distinto e outro que não o mundo. De outro modo ficaria contaminado moral e ontologicamente com a imperfeição e limitação deste. Daqui que, segundo ele, não possa ser o supremo e autêntico Deus um criador do mundo; seria então criador do insuficiente, portanto, ele mesmo insuficiente. Criar algo é, afinal - interpreto agora Marcião - contaminar-se com o criado. O Deus criador é um poder segundo, é o deus do Antigo Testamento, um Deus que tem muito de intramundano, Deus da justiça e deus dos exércitos, o qual supõe que está referido indissoluvelmente ao crime e à luta. Pelo contrário, o verdadeiro Deus não é justo, é simplesmente bom, não é justiça mas caridade e amor. Existe eternamente alheio ao mundo e ausente do mundo, em absoluta distância dele, não tocado por ele. Mas por ser o absolutamente outro, que não o mundo, compensa-o e completa-o, de tanto não ter que ver com o mundo, salva-o. E esta é para um gnóstico a obra mais altamente divina: não criar o mundo (o mal) como um demiurgo pagão, mas pelo contrário, "descriá-lo", anular a sua maldade constitutiva - isto é, salvá-lo. Não aconteça que me pensem a fazer confissão de marcianismo. Mal posso fazê-la, pois Marcião fala de Deus, problema de teologia, e isto para mim é apenas uma ilustração à margem

FILOSOFIA E MISTICISMO


Chamemos Filosofia a um conhecimento teorético, a uma teoria. A teoria é um conjunto de conceitos - no sentido estrito do termo conceito. E este sentido estrito consiste em ser o conceito um conteúdo mental enunciável. O que não se pode dizer, o indizível ou inefável não é conceito, e um conhecimento que consista em visão inefável do objecto será tudo o que vocês queiram, inclusivé será, se vocês o quiserem, a forma suprema do conhecimento, mas não é o que procuramos sob o nome de filosofia. Se imaginarmos um sistema filosófico como o de Plotino ou o de Bergson, que mediante conceitos nos demonstra ser o verdadeiro conhecimento um êxtase da consciência, em que esta transpõe os limites do intelectual ou conceptual e toma contacto imediato com a realidade, portanto, sem a mediação ou intermédio do conceito, diríamos que são filosofias na medida em que provam a necessidade do Extase com meios não extáticos e deixam de o ser quando se lançam do conceito para a imersão no transe místico.
O autor místico convida-nos para uma viagem maravilhosa, a mais maravilhosa. Diz-nos que esteve mesmo no centro do universo, nas entranhas do absoluto. Propõe-nos que voltemos a fazer com ele a caminhada. Encantados, dispomo-nos a partir, e docilmente seguir o nosso guia. Logo nos surpreende um pouco que quem se submergiu em tão prodigioso lugar e elemento, em tão decisivo abismo, como é Deus ou o Absoluto ou o Uno, não tenha ficado mais perturbado, mais desumanizado, com uma nova linguagem. (Quando Gautier voltou a Paris da sua viagem a Espanha, toda a gente lho reconheceu na cara, porque a trazia queimada do sol transpirenaico. E, de acordo com alenda bretã, os que desciam ao purgatório de S. Patrício não voltavam a rir nunca mais; a rigidez dos músculos zigomáticos, solícitos obreiros do sorriso, mostrava como "autêntica" a sua excursão subterrânea.) O místico, todavia, regressou intacto, impermeável à matéria soberana que, durante algum tempo, o banhou. Se alguém nos diz que volta do fundo do mar, dirigimos um olhar à sua indumentária com a esperança de achar nela presos uns vagos restos de algas e corais, flora e fauna abissais.
Mas é tanto o fascínio que nos oferece a viagem proposta, que calamos esta momentânea estranheza e caminhamos resolutos junto ao místico. As suas palavras - os seus logoi - seduzem-nos. Os místicos têm sido habitualmente os mais formidáveis técnicos da palavra, os mais exactos escritores. É curioso e - como veremos - paradoxal que em toda as linguagens do mundo os clássicos do idioma, do verbo, tenham sido os místicos. Além de portentosos dizedores, os místicos tiveram sempre um grande talento dramático. O dramatismo é a tensão natural da nossa alma, produzida por algo que se nos anuncia para o futuro, do qual em cada instante nos aproximamos mais, de modo que a curiosidade, o temor ou o apetite suscitado por esse algo futuro se multiplica por si mesmo, acumulando-se sobre cada novo instante. Se a distância que nos separa desse futuro tão atractivo ou tão temível é dividida em etapas, a chegada a cada uma delas renova e aumneta a nossa tensão. Aquele que vai atravessar o deserto do Saará sente curiosidade pelas suas margens, onde termina a civilização, mas sente-a maior pelo que há para além das suas margens, pelo que é já deserto, e ainda maior pelo próprio centro deste, como se nesse centro o deserto fosse superlativo de si mesmo. Desta maneira, em vez de minguar a curiosidade conforme se vai usando, é como um músculo que i exercício alimenta e faz crescer. O que está para lá da primeira etapa interessa, mas interessa mais o que está para lá desse primeiro mais além, e assim sucessivamente. Todo o bom dramaturgo conhece o efeito de tensão mecânica que produz esta segmentação do caminho na direcção de um futuro anunciado. E por isso os místicos dividem sempre o seu itinerário para o êxtase em etapas virtuais. Umas vezes trata-se de um castelo dividido em moradas incluídas umas nas outras, como essas caixas japonesas que têm sempre dentro mais outra caixa - assim acontece com Stª Teresa de Ávila -; outras vezes é a subida a um monte com paragens na ascensão, como em S. João da Cruz; ou antes é uma escada onde cada degrau nos promete uma nova visão e uma nova paisagem, como na Escala espiritual de S. João Clímaco. Confessemos que, ao chegar a cada um desses estádios, sentimos alguma desilusão: o que daí divisamos não é nada de especial. Mas a esperança de que no próximo se manifestará já o insólito e magnífico mantém-nos alerta e com ânimo. Mas eis que, ao chegar à última morada, ao cimo do Carmelo, ao último degrau, o místico guia que não parou de falar um só momento nos diz: "Agora fique você aí sozinho; eu vou submergir-me no êxtase. Quando voltar, contar-lho-ei". Docilmente esperamos, iludidos com a perspectiva de ver o místico regressar diante dos nossos olhos directamente do abismo, jorrando ainda mistérios, com o odor acre dos ventos do além que durante algum tempo as roupas do navegante trazem pegado. Ei-lo que já regressa, aproxima-se e diz-nos: "Pois, sabe você que não posso contar-lhe nada ou pouco menos, porque o que vi é em si mesmo incontável, indizível, inefável?" E o místico, tão falador antes, tão mestre do falar, torna-se taciturno na hora decisiva, ou, o que é pior ainda e mais frequente, comunica-nos do transmundo notícias tão vulgares, tão pouco interessantes, que até desprestigiam o mais além. O clássico da linguagem faz-se especialista do silêncio.
Quero indicar com isto que a atitude sensata perante o misticismo, no sentido estrito desta palavra, não deve consistir na pedanteria de estudar os místicos como casos de clínica psiquiátrica - como se isto clarificasse algo de essencial da sua obra -, ou opondo-lhes quaisquer outras objecções prévias, mas, pelo contrário, aceitando tudo o que nos prpõem e tomando-os pela palavra. Pretendem chegar a um conhecimento superior ao da realidade. Se, com efeito, os despojos de sabedoria que o transe lhes proporciona valessem mais do que o conhecimento teorético, não duvidaríamos um momento em abandonar este e fazer-nos místicos. Mas o que nos dizem é de uma trivialidade e de uma monotonia insuperáveis. A isso respondem os místicos que o conhecimento através do êxtase, pela sua própria superioridade, transcende toda a linguagem, que é um saber mudo. Somente cada homem por si pode chegar a ele, e o livro místico diferencia-se de um livro científico por não ser uma doutrina sobre a realidade transcendente, mas o plano de um caminho para chegar a essa realidade, o discurso de um método, o itinerário da mente até ao absoluto. O saber místico é intransferível e, por essência, silencioso.
Em verdade, não poderiam tão-pouco valer este mutismo e este carácter intransferível de certo saber como objecções contra o misticismo. A cor que os nossos vêem e o som que os nossos ouvido ouvem são em rigor indizíveis. O matiz peculiar de uma cor real não pode ser expresso em palavras: é preciso vê-lo, e somente aquele que o vê sabe propriamente de que se trata. Seria, pois, um erro desdenhar do que o místico vê, porque somente ele o pode ver. Há que raspar do conhecimento a democracia do saber segundo a qual somente existiria o que toda a gente pode conhecer. Dito por outras palavras: aquele que não vê tem de fiar-se em quem vê. Mas como podemos certificar-nos de que alguém vê o que nós não vemos? O mundo está cheio de charlatães, de vaidosos, de enganadores, de dementes. O critério neste caso não me parece difícil de achar; eu acreditarei que alguém vê mais do que eu, quando essa visão superior, invisível para mim, lhe proporciona superioridades, visíveis para mim. Julgo pelos seus efeitos. Conste, pois, que não é a inefabilidade nem a impossível transferência do saber místico o que faz o misticismo pouco estimável. A minha objecção frente ao misticismo é que da visão mística não resulta benefício intelectual nenhum.
O misticismo tende a explorar a profundidade e especula com o abismático; pelo menos, entusiasma-se com as profundidades, sente-se atraído por elas. Pois bem, a tendência da filosofia é de sentido oposto. Não lhe interessa submergir-se no profundo, como a mística, mas, pelo contrário, emergir do profundo até à superfície. Contra o que é costume supor-se, é a filosofia um gigantesco anseio de superfície, quero dizer de trazer para a superfície e tornar patente, claro, evidente se for possível, o que estava subterrâneo, misterioso, latente. Detesta o mistério e os gestos melodramáticos do iniciado, do mistagogo.
A filosofia é um enorme apetite de transparência e uma resoluta vontade de meio-dia. O seu propósito radical é trazer para a superfície, declarar, descobrir o oculto ou velado - na Grécia a filosofia começou por chamar-se "alétheia", que significa desocultação, revelação ou desvelação; em suma, manifestação. E manifestar não é senão falar, "logos". Se o misticismo é calar, filosofar é dizer: descobrir na grande nudez e transparência da palavra o ser das coisas, dizer o ser. Face ao misticismo, a filosofia gostaria de ser o segredo aos gritos.

Ortega y Gasset (adaptação)

domingo, 10 de setembro de 2006

VERDADE E POLITICA


"Nunca ninguém duvidou que a verdade e a política sempre estiveram em bastante más relações e, tanto quanto eu saiba, também nunca ninguém incluiu a boa fé na classe das virtudes políticas. As mentiras sempre foram consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, como até do próprio estadista.

A história do conflito entre verdade e política é uma velha e complicada história e nada se ganharia com a mera simplificação ou predicação moral. No decurso da história, os investigadores e todos os que contam a verdade tiveram sempre consciência dos riscos que enfrentavam; enquanto não se imiscuíam nos negócios do mundo, podiam ser alvo de troça, mas aqueles que, dentre eles, forçasse os seus concidadãos a tomá-lo a sério, tentando libertá-los da falsidade e da ilusão, arriscava a sua própria vida.
"Se eles pudessem pôr as mãos num (tal) homem... matá-lo-iam", escreve Platão, na última frase da alegoria da caverna, referindo-se ao homem que descobrisse que a realidade da caverna era uma ilusão.
Hobbes, não Platão, encontrava consolação na existência de uma verdade neutra, em !assuntos" com os quais os "homens não se preocupavam" - isto é, com "a verdade da matemática", "a doutrina das linhas e das figuras" que "não se sobrepõe a nenhuma ambição, proveito ou apetite humano". Porque, escrevera Hobbes, não duvido que, se fosse contrário ao direito de um homem, à dominação, ou ao interesse dos homens que detêm o poder, que os três ângiulos de um triângulo sejam equivalentes a dois ângulos de um quadrado, essa doutrina, a não poder ser contestada, seria ainda assim suprimida pelo lançamento à fogueira de todos os livros de geometria, desde que aqueles que fossem por ela afectados tivessem força e meios para isso.

A época moderna, que acredita que a verdade nem é dada nem revelada, mas produzida pela mente humana, tem, desde Leibniz, englobado as verdades matemáticas, científicas e filosóficas, na espécie comum das verdades da razão, e distintas das verdades de facto. Utilizarei esta distinção por comodidade, sem entrar na discussão da sua legitimidade intrínseca. No interesse de descobrir que danos pode o poder político infligir à verdade, investigaremos esse assunto por razões mais políticas do que filosóficas, e, permitimo-nos, por isso, deixar de lado a questão de saber o que é a verdade, contentando-nos em tomar a palavra na acepção em que os homens comummente a entendem. E se pensarmos agora em verdades de facto - em verdades tão modestas, como o papel de um homem chamado Trostky, durante a revolução russa, que não aparece em nenhum dos livros de História Russa soviéticos -, imediatamente tomamos consciência de quanto essas verdades são bem mais vulneráveis do que todas as espécies de verdades racionais juntas. Quando combate a verdade racional, a dominação (para usar a linguagem de Hobbes) ultrapassa, por assim dizer, os seus limites, mas, quando falsifica ou nega os factos através da mentira, trava o combate no seu próprio terreno.

Ainda que as verdades politicamente mais relevantes sejam as verdades de facto, o conflito entre a verdade e a política foi descoberto e articulado pela primeira vez em relação às verdades racionais. O oposto de uma verdade racional é, ou o erro e ignorância nas ciências, ou ilusão ou opinião na filosofia. A falsidade deliberada, a pura mentira desempenha o seu papel apenas no domínio dos enunciados factuais; e parece significativo, ou melhor estranho que, no longo debate centrado sobre o antagonismo entre a verdade e a política, desde Platão até Hobbes, aparentemente, ninguém tenha acreditado que a mentira organizada, tal como a conhecemos hoje em dia, tenha podido ser uma arma eficaz contra a verdade.

Provavelmente nenhuma época passada foi mais tolerante do que a nossa quanto a opiniões tão diversas sobre questões religiosas ou filosóficas, mas quando se trata de verdades de facto que colidem com o lucro ou o prazer de um determinado grupo são encaradas, nos dias de hoje, com uma hostilidade nunca vista em alguma época passada.

Sem dúvida que sempre existiram os segredos de estado, que todo o governo precisa de classificar certas informações e de as ocultar do conhecimento público, e que os que revela segredos autênticos sempre foram considerados como traidores. Porém não è com isso que me preocupo aqui. Os factos que tenho em vista são do conhecimento público e, apesar disso, o público que os conhece pode com êxito e muitas vezes espontaneamente transformar em tabu a sua discussão pública, lidando com eles como se fossem aquilo que não são, isto é, segredos.

Mesmo na Alemanha de Hitler e na Rússia de Estaline era mais perigoso falar de campos de concentração e de extermínio cuja existência não era nenhum segredo, do que criticar o racismo, o anti-semitismo ou o comunismo.

Encarada do ponto de vista da política, a verdade tem um carácter despótico. Daí que seja odiada por tiranos que temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não são capazes de monopolizar; e desfruta de um estatuto relativamente precário para a perspectiva dos governos que se baseiam no consentimento e dispensam a coerção.

A marca distintiva das verdades de facto é que o seu contrário não é nem o erro nem a ilusão nem a opinião que, em si mesmas, não põem em causa a veracidade dos seus defensores, mas a falsidade deliberada ou mentira.

Hannah Arendt (adaptação)