A Sombra do Pessegueiro
Jorge Nunes Barbosa
16 de Novembro de 2014 (Recuperação, a partir do texto em papel - dos anos 90)
Os Dois Ursos
Conto Verdadeiro em “A Sombra do Pessegueiro”
Era uma vez um urso que ursava muito bem. Ursar significa andar como um urso, comer como um urso, dormir como um urso, enfim, fazer tudo como um urso.
Era um urso feliz aquele. Apesar de todas as infelicidades e maus momentos por que tinha passado, como toda a gente e todos os ursos, mantinha, ao contrário de toda a gente e de quase todos os ursos, desenhadas na face, rugas de sabedoria que lhe davam um aspecto de permanente sorriso.
Vivia só, na sua foresta. E, na sua floresta, encontrava tudo o que lhe fazia falta.
Um dia, um outro urso, de ar empertigado e pêlo bem escovado, de gravata ao peito e sapato envernizado imigrou - o diabo explique porquê - para a sua floresta. Recebido como merece ser recebido um urso de lenço branco no bolso do casaco e meias de seda nos pés, rapidamente o recém-chegado realizou que aquela seria, de então em diante, a sua casa. Sonhou, na primeira noite, com a felicidade inefável de poder ser útil a um vizinho de unhas rentes, de arranhar só quando de outra forma não pudesse ser. As suas unhas, dele, o recém-chegado, pelo contrário, eram grandes e bonitas. Bem tratadas e fortes, eram um dos muitos motivos para se orgulhar de si mesmo. Todos os dias as envernizava cuidadosamente. Sabia que, deste modo, se manteriam fortes e belas. Assim, ninguém detectaria o perigo que representavam, e melhor desempenhariam as suas funções.
O urso-qu’-ursava chegou mesmo a pensar que aquele verniz todo só servia para que o seu novo vizinho utilizasse as unhas como espelho para, a todo o momento, se deleitar consigo mesmo. Demorou muito tempo a perceber que não.
As pulgas, que pululavam debaixo da gravata do recém-chegado, realizavam congressos trimestrais, cujo tema único era: “Será o verniz que dá força às unhas, ou a força das unhas resulta simplesmente de se esconnderem debaixo do verniz?”
Desenvolveram-se duas grandes tendências académicas, na sequência desses congressos.
As pulgas aderentes à primeira tendência, segundo a qual seria o verniz que daria força às unhas, envernizaram as suas próprias patas. A partir daí, esta tendência passou a dominar cientificamente todos os congressos. Apesar da mais que visível inutilidade dos referidos debates, estes continuaram a ser realizados, para que ficasse cada vez mais claro que a única perspectiva que merecia dominar era a perspectiva dominante.
O urso recém-chegado tinha, no entanto, um grande problema: não sabia ursar, isto é, não sabia ser urso.
O urso-qu’-ursava propôs-se ensiná-lo a ursar.
Criou, então, uma escola do 1º ciclo, depois uma escola EB2,3, depois uma escola secundária, mais tarde uma universidade.
O urso recém-chegado concluiu a escolaridade obrigatória, obteve o diploma do ensino secundário, bacharelou-se, licenciou-se, mestrou-se e finalmente concluiu o seu doutramento.
(…)
Actualmente, a floresta é habitada por dois ursos: um que diz-qu’-ursa, mas não ursa, e por outro qu’-ursa e, por isso, raramente diz-qu’-ursa.
O que diz-qu’ursa-mas-não-ursa passou a ser o responsável por aquela escola e por todas as outras que, em todas as florestas, foram construídas para ensinar ursos a ursar.
Tal como os congressos das pulgas, essas escolas servem, desde então, para que fique bem claro que as perspectivas que merecem dominar são as perspectivas dominantes, isto é, as perspectivas de quem diz-qu’-ursa-mas-não-ursa
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