segunda-feira, 22 de março de 2010

O Coveiro

O Coveiro
Alexandre Pushkin
Recorda-se, sem dúvida, o esclarecido leitor de que tanto Shakespeare como Walter Scott
descrevem os seus coveiros como sendo criaturas alegres e amigas de gracejar. Com a devida
deferência à verdade, não podemos seguir-lhes o exemplo, e, desde já, nós confessamos que as
disposições de espírito do nosso cangalheiro se harmonizam perfeitamente com o seu sombrio
mister.
Adriano Prokhorof era, por temperamento, carrancudo, pensativo e reservado. Apenas rompia o
silêncio habitual em ocasião de especial urgência, como por exemplo, para repreender as filhas, se
as apanhava ociosas, à janela, ou para pedir o triplo do preço pelos caixões dos infelizes (e às vezes
dos felizes) que de tal precisavam.
Eram variados e múltiplos os assuntos que preocupavam o espírito de Prokhorof, nessa tarde,
enquanto saboreava a sua sétima chávena de chá. Pensava no último enterro que tivera, sob um
memorável temporal, em que a chuva tanto prejudicara a essa, os fatos e o chapéu. Previa certas
despesas inevitáveis, porque o seu material funerário encontrava-se já em péssimo estado; ainda
assim depositava, era certo, grandes esperanças na riquíssima Sra. Truchina, que havia mais de um
ano flutuava entre a vida e a morte.
Truchina, porém, parecia inclinada a demorar a partida, e esta circunstância não deixava de o
preocupar. Além disto, afligia-o o receio de que os herdeiros procurassem outro agente funerário,
apesar de lhe terem solenemente prometido que só ele seria encarregado de lhes enterrar a mãe.
Cada vez mais triste e sombrio, Prokhorof chegara à sua décima chávena de chá, quando uma
repentina pancada à porta lhe paralisou a actividade do pensamento.
– Pode entrar! – exclamou o cangalheiro.
Apareceu um homem, que logo à primeira vista se via ser um lojista alemão, e aproximou-se do
cangalheiro com um alegre sorriso .
– Desculpe-me, meu bom vizinho, – começou ele, falando um russo bastante atrapalhado – de
vir perturbar assim, o seu sossego... Desejo travar conhecimento consigo. Sou, por ofício, sapateiro,
e chamo-me Gottlieb Schultz. Moro do lado oposto desta rua, naquela casita em frente das suas
janelas. Amanhã, celebro as minhas bodas de prata e esperamos que o senhor e suas filhas nos dêem
a honra de jantar connosco.
O convite foi delicadamente aceito, e, no dia seguinte, ao meio-dia em ponto, o recoveiro,
acompanhado de suas filhas, dirigiu-se à casa de Schultz.
A casita do sapateiro estava cheia a transbordar, constando as visitas, na sua maioria, de
operários alemães, com as suas mulheres e os seus aprendizes.
Havia lá, apenas, um funcionário russo, Urko, velho polícia, que, apesar de seu humilde nome e
das funções que desempenhava, aprendera habilmente a arte de predispor as pessoas de influência a
seu favor.
Era muito popular e conhecidíssimo entre os residentes alemães do distrito de Nikitski, e, sem a
sua presença, considerava-se incompleta qualquer das suas reuniões.
Adriano ProkhoroI, quase desde o primeiro momento, ficou encantado com Urko : "Vale a pena,
pensou, travar relações com um homem assim".
E, quando foram jantar, conseguiu arranjar lugar junto de Urko.
Tanto Schultz e a mulher, como Lotchen, sua filha, de dezassete anos, trataram do jantar com o
máximo cuidado, havendo de tudo em abundância. Apesar de Urko ingerir suficiente alimento para
sustentar quatro homens, Adriano Prokhorof não lhe quis ficar atrás. Fizeram ambos honra ao jantar.
A conversação, em alemão, no entanto, ia-se tornando mais e mais barulhenta.
De repente, o dono da casa pediu atenção. Tirando a rolha de uma garrafa, encheu o copo,
exclamando, em russo:
– Bebo à saúde de minha querida Luísa!
Depois, abraçou com ternura a consorte, que teria quarenta e cinco anos, imprimindo-lhe na face
rosada um ruidoso beijo. Os convivas, seguindo-lhe o exemplo, esgotaram as taças, bebendo à
saúde da "querida Luísa" ...
– Agora, bebo à saúde dos meus nobres amigos! – exclamou o anfitrião, abrindo outra garrafa.
Os convivas, agradecendo-lhe a gentileza, esvaziaram de novo os copos, e dali em diante
continuaram as saúdes, em rápida sucessão. Beberam, separadamente, à saúde de cada pessoa e,
depois, à de todos; à saúde da cidade de Moscovo e à saúde de uma dúzia de colónias alemãs,
dentro e nas cercanias da cidade de Moscovo; à saúde de todos os operários e artistas, como
corporação e separadamente, a cada individualidade conhecida; à saúde dos patrões e à saúde dos
seus aprendizes.
Prokhorof bebeu copo sobre copo, tornando-se tão alegre que chegou ele próprio a fazer uma
chistosa saúde. Seguiu-lhe o exemplo um gordo padeiro, que, empunhando um copo cheio de vinho,
bebeu à saúde Unserer Kundleute (dos nossos fregueses). A esta última saúde, como aliás às outras,
todos, unanimemente, responderam. Seguiu-se uma troca geral de amabilidades: o alfaiate
cumprimentou o sapateiro, o sapateiro cumprimentou o alfaiate e o padeiro cumprimentou o
sapateiro e o alfaiate. Enquanto se efectuava esta troca de cumprimentos, Urko levantou-se e,
voltando-se para seu vizinho, dirigiu-lhe a seguinte pergunta:
– Olhe lá, amigo, então não faz uma saúde aos seus fregueses enterrados?
Este gracejo fez rir às gargalhadas os circunstantes, mas o cangalheiro, sentindo-se ofendido,
assumiu um ar sombrio. Ninguém, contudo, lhe prestou atenção, e continuaram bebendo saúdes e
bebendo por beber, até chegar a madrugada. Por fim, os convivas ergueram-se para sair. O gordo
padeiro e o encadernador, que parecia ter a cara encadernada em couro vermelho, acompanhou
Urko, de braço dado, até a sua budka.
O cangalheiro voltou para casa, muito bêbado e muito zangado.
– O que faria rir tanto esses idiotas? Porventura não é tão honroso o meu ofício como os deles?
Ah!argumentou sozinho, em voz alta. – Quererão eles comparar um coveiro com um carrasco? Ora
esperem... Eu tencionava oferecer-lhes um jantar em minha casa... mas agora... nunca!... Convidarei
só os meus fregueses... Sim... os meus fregueses mortos e cristãos...
– Por que está dizendo tantas tolices, patrão? – observou-lhe a criada, que lhe estava
descalçando as botas. – Que está a dizer? Persigne-se e vá se deitar, ande... Ora, que ideia!...
Convidar gente morta para jantar! Então, não querem lá ver?...
– Pois está combinado. Tão certo como eu me chamar Adriano, hei de convidá-los a todos,
amanhã. Vinde, meus bondosos amigos mortos, vinde partilhar da minha hospitalidade. Vinde...
todos!...
E, após estas palavras, caiu sobre a cama e, daí a segundos, dormia profundamente.
Chegou, enfim, o dia em que a Sra. Truchina se resolveu a partir. Prokhorof foi logo chamado e
ficou tão satisfeito que até recompensou com uma bela moeda preta de dez kopecks o moço que lhe
trouxe o recado. Depois, vestiu-se, tomou um drosky e dirigiu-se, apressado, à casa da Sra.
Truchina. Junto ao portão, encontrou um grande grupo de polícias. de comerciantes e parentes, que
fazia lembrar um bando de corvos farejando carne morta. O cadáver, amarelecido e desfigurado, foi
colocado sobre uma mesa; amigos, parentes e criados logo o cercaram. Foram cerradas as janelas.
acesas as velas e o padre leu as orações apropriadas ao caso. Adriano dirigiu-se ao filho da Sra.
Truchina. um jovem comerciante, trajando com elegância, a fim de o informar de que tudo estava
preparado para o enterro, com a máxima perfeição. O moço herdeiro agradeceu-lhe o cuidado,
acrescentando que, atendendo à consternação em que se achavam, não discutiria nessa ocasião o
preço, confiando plenamente no consciencioso carácter de Prokhorof. O cangalheiro. como sempre,
assegurou-lhe que lhe não levaria dinheiro de mais pelos seus serviços e, trocando um olhar
significativo com um dos administradores das propriedades de Truchina, saiu a fim de fazer os
preparativos para o enterro. O dia foi trabalhoso para Prokhorof, e foi com alívio que viu chegar a
noite e terminado o seu trabalho.
A noite estava clara e o céu estrelado. O cangalheiro, ao aproximar-se de casa, ouviu alguém
abrir o portão e entrar no pátio. "Quem será?", pensou ele. "Quem me quererá falar, a esta hora?
Talvez algum ladrão ou um namoro para as patetas das minhas filhas! São casos fáceis de
acontecer". Lembrou-se de chamar em seu auxílio o amigo Urko. Mas, neste momento, outro
indivíduo se aproximou da porta, e ia a entrar, quando estacou, ao ver o assustado cangalheiro, a
quem cumprimentou, tirando da cabeça o boné branco. Pareceu a Prokhorof que não lhe eram
desconhecidas as feições do intruso, apesar do inútil esforço que fez para recordar-lhe o nome.
– Vem dar-me a honra da sua visita? – balbuciou Prokhorof com voz ofegante. – Queira entrar.
– Não esteja com cerimónias! - retorquiu o desconhecido, bruscamente. – Vá à frente; ensine o
caminho às suas visitas!
Abriu-se a cancela e Prokhorof e a sua visita entraram no pátio.
– Vá andando, conduza-me à sua sala de recepção! – ordenou o desconhecido.
Prokhorof obedeceu em silêncio e foi trepando a escada até ao primeiro andar. Pareceu-lhe estar
a casa cheia de pessoas estranhas.
"Que demónio significa isto tudo?" pensou ele, apressando-se a entrar na sala. "É possível?"
Nem tempo teve de raciocinar; tremia como uma folha ao vento e os pés pareciam estar pregados ao
solo. A sala estava povoada de fantasmas. Os rostos cadavéricos, as bocas chupadas, os olhos turvos
e semicerrados, inspiravam pavor. Prokhorof aterrado, reconheceu todos os seus clientes; o
desconhecido, que o seguira, era o oficial reformado, a quem havia enterrado num memorável dia
de chuva. Em breve, Prokhorof achou-se cercado de um grupo numeroso de senhoras e homens, que
o cumprimentavam, dirigindo-lhe amabilidades. Apenas um se conservou à distância, parecendo
envergonhar-se do fato pobre e coçado que vestia; Prokhorof reconheceu-o; era um homem
recentemente enterrado, a expensas da paróquia. Todos os outros trajavam de pano fino, de seda ou
de cetim, ostentando uniformes os da estirpe nobre, enquanto os comerciantes vestiam os Kaftans
domingueiros.
– Então não sabia, Prokhorof? – começou o oficial reformado, tomando a palavra por todos:
aceitamos o seu convite e viemos aqui gozar a sua hospitalidade. Só deixaram de vir aqueles que de
todo não se podiam mexer, os que se desfizeram em pedaços, os que já não tinham carne nem pele
nos ossos. Afora esses, vê aqui reunidos todos os seus fregueses e até, entre os desventurados, um
houve que não pôde resistir ao seu tentador convite, e também o veio visitar.
Ao mesmo tempo, um pequeno esqueleto, abrindo caminho aos empurrões, aproximou~se de
Prokhorof. Trazia o fato em farrapos e os ossos dos pés batiam uns nos outros, com ruído sinistro,
dentro das botas altas de montar.
– Não me conheces, Prokhorof? – perguntou o esqueleto. – Não te recordas do ex~sargento da
guarda, Pedra Petrovitch Kurilkim, o próprio, a quem, em 1799, vendeste o teu primeiro caixão?
Não te recordas do caixão de pinho que tão amave1mente substituíste ao caixão de carvalho que já
te havia sido pago?
Aqui, o esqueleto avançou para o envolver nos descarnados braços. Prokhorof soltou um grito
de terror, e, com um soco, atirou ao chão o esqueleto. Levantou-se um burburinho geral. Todos
queriam vingar a honra do seu camarada. O pobre Prokhorof foi cercado e de todos os lados
romperam terríveis ameaças de vingança. Esmagado, e quase ensurdecido pelo tumulto, caiu sobre
os ossos do ex-sargento da guarda e perdeu os sentidos.
Já o sol ia alto, dardejando os seus raios a pino sobre a cama de Prokhorof, quando este abriu os
olhos. A criada achava-se no quarto, tratando do samovar. A recordação dos acontecimentos da noite
encheu-o de pavor. Esperava ouvir da criada os resultados finais.
– Sim, senhor, dormiu-lhe bem – observou Akulina, dando-lhe o chalat (casaco de fumar) – O
vizinho, o alfaiate, veio aqui convidá-lo para uma festa de anos, mas não quisemos interromper-lhe
o sono.
– Esteve aqui alguém da casa da Senhora Truchina?
– O quê? Ela morreu?
– Sempre és muito parva, rapariga! Onde tens a cabeça? Pois não foste tu própria que me
ajudaste a vestir o fato para o enterro dela?
– O patrão está doido, ou são ainda os efeitos da piella? De que enterro fala? Ontem, passou o
dia todo com os alemães, veio para casa a cair de bêbado, deitou-se, e dormiu até agora.
Será possível? – exclamou o cangalheiro, com um suspiro de alívio.
– É, com certeza! – replicou Akulina.
– Bem, então chama os pequenos e vamos almoçar.

Sem comentários: