domingo, 5 de outubro de 2014

O Tempo

Há tempo em que o tempo caminha devagar. Nós, com pressa, e ele, nada. Imperturbável, pé ante pé, nem olha para a nossa pressa de crescer, de amar. Tanto para viver, tanto para fazer e desfazer, e o tempo, em compasso de caracol, caminha ladeira abaixo, ladeira acima, como se tivesse o tempo todo do mundo. À espera que o tempo passe, desesperamos o primeiro dia de escola, o primeiro dia de ser grande, o primeiro dia de todos os dias, que ainda todos são os primeiros, mas um haverá que será o primeiro dos primeiros. E ele não passa. Esperamo-lo à janela, aos pulos de calções na rua, com ar de intelectual de buço a despontar por cima dos beiços, ou de caroços a rebentar no peito. E nada.
Tempo há em que o tempo corre depressa demais. Nós, com vagar, e ele, nada. Imperturbável, em passo de corrida, nem se dá conta do vagar com que queremos parar os olhos, encostar a testa na montra do mundo, cobiçar a beleza lenta das coisas que respiram e das coisas que respiramos. Parece, agora, que o tempo não tem tempo, e nós, que o temos, não o temos, que ele não se deixa agarrar. Por vezes, os pobres, os miseráveis imploram, os joelhos esfolados de pedir, a língua seca de rezar, os olhos queimados de olhar o nada e o vazio, que o tempo apresse o passo, que o fim do mês tarda e a côdea de boroa não chega. Infelizes, chamam a morte, e não sabem. O tempo, ao som das preces, apura o ouvido e, por negligência e gosto de mordomias, abranda a passada, só para contrariar. Desespero dos infelizes. Caladas as orações, chegado o fim do mês, o tempo recupera o tempo perdido, e corre mais depressa do que antes. Tragédia.
O tempo é um cão. Morde-nos as carnes, e lambe-nos as feridas. Cão sem dono, mete o rabo entre as pernas quando o fitamos de frente, e arranca-nos as canelas quando lhe viramos as costas e nos deslumbramos com a imensidão do mar. Sentados à beira-rio, a colar pensos nas carnes rasgadas e a enxaguar lágrimas ressequidas, procura-nos o tempo para nos lamber os dedos magoados. Disso e da mágoa se alimenta o tempo, esse cão danado e doce.
Por uma hora, uma singular hora, um tempo há em que o tempo se ajusta ao compasso da vida. Os ponteiros e as horas ajustam-se, aconchegam-se, vedam todas as frinchas que entre si podem deixar escapar o calor, o frio, a água e o fogo. E ali mesmo se amam o tempo e a vida, por uma hora, uma singular hora, em todo o tempo e em toda a vida. Amam-se como dois amantes que se amam pela primeira e última vez. Os rios que percorrem os corpos entumescem, galgam as margens, tecem almofadas de água e sol, e recuam e brincam, e saltam do leito e fecundam campos, rios e mares à sua volta, e, quando tudo é água e fogo, explodem em raios e trovões, a uma só voz, acordando os céus e fazendo tremer as profundidades da terra. Os olhos olham-se e, surpresos de se verem a si mesmos, cerram as pálpebras, ofuscados de luz, cegueira e saudade, e esperam que os rios voltem ao seu lugar. 
Assim é  quando o tempo, por um instante, se acerta com a vida, por uma hora, uma singular hora, que é como esse instante se chama. Não tem família, nem nome de família, esse instante. Hora é o seu único nome e dela só podemos dizer como se chama a chama desse instante. Hora é o seu nome.
O respeito impõe que a veneremos como se fosse uma deusa. É a primeira das primeiras e é a única. Foi por ela que a vida caminhou mais depressa do que o tempo, é por ela que a vida não quer ir para a frente e arrasta os pés. O tempo, por uma singular hora apaixonado, continua inexorável, cão, como se tivesse ido às putas, e não pára sequer para recordar. Nada.
Felizes daqueles que estão acordados nessa hora. O tempo para trás e o tempo para a frente, mesmo cão, será sempre doce, até quando, furioso, rasgue as carnes e roa os ossos. Será sempre doce. Da sua saliva de fúria nascerá bálsamo perfumado. Jasmim é o perfume. É bom estar acordado na hora em que o tempo acerta com a vida.
Por mim, sei que estava a dormir na hora de acertar. Um sono pesado, de cansaço e desespero. Dormia para esquecer. Agora nada tenho para lembrar.
(...)
As novidades são como os bebés. Fazem o que fazem os bebés. Por isso, os pais e as mães e os tios e tias, avós, sobrinhos e sobrinhas das novidades têm que passar uma boa porção do seu tempo a mudar-lhes as fraldas. A novidade é mudar as fraldas. Essa azáfama incessante de limpar, de assear para não curtir as peles. Essa é a verdadeira novidade. A outra, a que faz como os bebés, é uma nora de tirar água, velha de milénios. Copo atrás de copo puxa água atrás de água. Pinga que pinga, puxa que puxa, roda que roda. Só é novidade se virmos o que faz a nora, e se lhe  mudarmos as fraldas. São os nossos olhos que fabricam a novidade. As nossas mãos, numa de tirar e pôr trapos, benzem o que os olhos vêem. E assim bendita, a novidade caminha com as fraldas coladas ao rabo.
Já não tenho novidades para te dar. Não me agradeças. Que o mérito não é meu. Ao tempo, sim. Agradece ao tempo, à cegueira do tempo que não deixa ver numa nora mais do que uma nora. Descalça as sandálias, cobre a cabeça, esconde o corpo numa túnica azul, fecha os olhos, os lábios húmidos, a alma compungida e os pés ungidos com óleos sagrados, e balbucia uma oração ao tempo. 
Não digas nada, não vá estragar-se a intenção. Não ouças nada. Não sintas nada. Mexe só os lábios, sinal de respeito. E agradece. Ao tempo. 
Agradece por mim também, que não uso sandálias. Caminho descalço, os pés curtidos. Não há óleo que os benza. E não consigo fechar os olhos, medo de perder a pouca luz que o grande luzeiro, por negligência, deixou em mim. Não o avises, não digas nada. Não roubei. Não criei nem matei para roubar. 

Esta pequena luzinha ficou em mim, a iluminar as nódoas negras deste meu corpo magoado porque quis.

JB. 2001

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