Esta segunda-feira, ficámos a saber pelo primeiro-ministro que o sistema educativo em
Portugal é uma fábrica de salsichas - um conceito, à primeira vista, transformador de
professores em operários e de alunos em enchidos e que surgiu pela pena de Karl Marx,
numa leitura do escocês Neil Smith, professor universitário que se sentia nesse ambiente,
onde "alguns de nós são as salsichas, alguns de nós enchem a tripa com a carne,
alguns de nós só manejam as máquinas e alguns são os gerentes".
O geógrafo e antropólogo não se importava especialmente com a imagem que, no i
nício do século passado, já era usada em relação a algumas escolas inglesas e cuja
raiz é negativa, sem ofensa para as fábricas de enchidos de carne picada temperada.
Neil Smith estava mais preocupado com um fenómeno que lhe parecia global e que
por isso exigia uma solução à altura. A sua inquietação principal era, aliás, quem
iria governar essa fábrica que tem imensas filiais locais. Mas nunca restringiu a questão
à simples "salsicha educativa", como o fez Passos Coelho, embora possa ser uma
maneira de combater a ideia dos estudantes de que a maioria da matéria é
"chouriço educativo".
Passos versou assim esta segunda-feira, na sessão solene de abertura do ano letivo
do Conselho Nacional de Educação, em Lisboa: "Sabemos melhor do que ninguém que
aumentar a chamada salsicha educativa não é a mesma coisa que ter um bom resultado
educativo. Foi assim que, no passado, a generalização de novos graus de ensino não
corresponderam a um salto qualitativo mais exigente no produto escolar. Temos muitos
mais alunos a frequentar o ensino básico e secundário, esperamos poder vir a ter
significativamente mais alunos a frequentar o ensino superior, mas é importante que
o resultado final corresponda a uma melhoria da qualidade do ensino que é prestado."
Mas quem é que usa esta expressão? Se Passos diz "a chamada salsicha educativa"
é porque já ouviu alguém falar nela. Numa rápida busca na Net, verifica-se que em
português a estreia parece pertencer-lhe e que no resto do mundo fala-se na questão
levantada por Neil Smith, mas apenas na "fábrica de salsichas educativa", embora
se saiba de antemão que, se numa verdadeira fábrica de salsichas se produzem os
tais enchidos de carne picada e temperada, numa escola formam-se estudantes.
Por esta ótica, o aluno é a salsicha. No caso da expressão usada pelo líder do
governo português, como não soa muito bem dizer "aluno educativo", talvez a salsicha
seja a própria escola, o que faria do Estado e dos privados proprietários de
estabelecimentos de ensino fabricantes de salsichas.
A educação é cada vez mais uma mercadoria e as escolas fábricas
"Quem governa a fábrica de salsichas?" é o título do artigo escrito por Neil Smith em 2002,
dois anos antes da sua morte prematura, publicado na revista Antipode e inspirado
num parágrafo de "O Capital", de Karl Marx, que, numa tradução livre, dizia: "Um professor
é um trabalhador produtivo, quando, além de trabalhar a cabeça dos alunos, se esfalfa
para enriquecer o proprietário da escola. E essa relação não se altera, lá porque o
capitalista investiu numa fábrica de ensinar em vez de numa fábrica de salsichas".
Os sistemas universitários de Estocolmo a Sidney, de Seul a São Paulo - dizia o professor
escocês no início deste século -, preocupavam-se, nos anos 1970, em fornecer um
ensino público. Agora, correm a reinventar-se como "emblemas" de organizações
empresariais. Trata-se, no seu ponto de vista, de uma corrida global, cujos efeitos
se começaram a fazer sentir na última década do século XX. Foi o avanço do
neoliberalismo, da modificação das relações comerciais, que levou ao mercantilismo
no ensino, à transformação da educação em mercadoria com os olhos postos
num alvo: o lucro.
A "nova" forma de encarar a escola ganha espaço à medida que a relação entre o capital
e o Estado se torna mais íntima e o Estado faz uma retirada estratégica de algumas
das suas "antigas" incumbências sociais, sustentava Neil Smith. O professor escocês
acreditava que valia a pena lutar pela fábrica de salsichas, uma vez que, se as
universidades dessem um passo atrás, teriam dificuldade em desempenhar a sua
missão, em especial na parte de investigação. Todavia, seria preciso que, globalmente,
se erguessem conjuntos de vozes que pusessem em causa os proprietários, os operários
e os produtos das filiais.
Passos Coelho, assumindo-se como neoliberalista, parece estar consciente de todo
este processo: não só aceita completamente o conceito - a utilização da expressão
no seu discurso surge sem qualquer apreciação ou dúvida -, como está disposto a
engordá-lo, se assim se pode dizer quando se trata de enriquecer uma salsicha
educativa. Fica-se a saber quem manda na fábrica, apesar de o ministro desta
indústria ter demonstrado algumas dificuldades na colocação de "enchedores de tripa".