terça-feira, 14 de abril de 2009

O PROBLEMA DA VERDADE


Numa perspectiva científica rigorosa, um problema só é um problema científico se a ciência assim o entender, isto é, se houver perspectivas de a ciência o poder resolver. Se não, então o problema será do domínio da especulação ou do ocultismo.
Ora, se procuras levar uma vida digna, sobretudo se essa dignidade passar pelo exercício do poder, tens de saber respeitar esse princípio científico. Só tem estatuto de problema aquele a que tu saibas responder. Se, de todos os que te colocarem, não souberes responder a nenhum, deves muito simplesmente ignorá-los a todos porque serão seguramente irrelevantes.
O mesmo se deve dizer relativamente ao problema da verdade.
Antes que comeces a fazer as confusões habituais de gente medíocre, convém que saibas que a verdade é um adereço. Num palco, por exemplo, nenhum adereço deve ofuscar o desempenho dos actores; pelo contrário, os adereço devem realçar o trabalho dos actores. Se algum adereço não cumprir esta missão, é porque é descartável e, em bom rigor, deve ser imediatamente descartado. Há gente medíocre que entende - vá lá saber-se porquê - que a verdade é a figura principal de todos os cenários políticos ou da vida comunitária. Tens portanto de optar: se queres continuar a ser medíocre, continua a pensar que a verdade vale o que quer que seja por si só, mas não te queixes de seres um falhado na vida; se queres ter sucesso, usa a verdade para embelezar os teus actos e se alguma vez, como acontecerá frequentemente, a verdade não servir para isso, aprende a pô-la de lado. A verdade deve estar ao teu serviço e não ao serviço de si mesma. A verdade ao serviço de si mesma é um totalitarismo que tu nunca podes aceitar, pela simpes razão de deixares de ser capaz de a controlar.
Esta linguagem, se foste educado como quase todos nós, numa perspectiva de vida medíocre, pode parecer-te estranha. E é, de facto, não porque seja ininteligível, mas porque é uma linguagem de elite, só acessível aos iniciados na ciência da banalidade.
A banalidade é, com efeito, uma ciência exacta que se perfila no horizonte do conhecimento humano como a final e a decisiva modalidade de conhecimento superior do ser humano. Embora seja adereço, como qualquer verdade, a verdade é que não te bastarão as lições que programei para este Tratado para que aprendas a ter sucesso. Mais grave ainda: sendo eu um simples mestre da banalidade, não alcançarei nunca a perfeição nesta ciência, que, no entanto está perfeitamente ao teu alcance. Passa-se comigo algo idêntico ao que se passa com um treinador de futebol: o treinador já não tem fôlego sequer para jogar um jogo a sério durante mais do que cinco minutos, fuma, tem barriga, etc., mas compete-lhe a ele fazer com que os seus jogadores sejam os melhores do mundo. Em ti, que lês este Tratado, deposito toda a esperança num futuro repleto de banalidades.
Voltando à vaca fria, compreenderás então que a verdade, sendo um adereço, deve estar ao teu serviço. De uma forma ainda muito incipiente, esta é já uma prática de sucesso de quase todos os poderosos. Por exemplo, quem não aceita de bom grado que quem revele as verdades de uma país, ou de uma comunidade, ou de um serviço, seja considerado traidor? Precisamente, o traidor é aquele que sabe a verdade e a divulga. Muitas vezes, essa verdade é conhecida de toda a gente, mas é guardada como um segredo, um segredo que toda a gente conhece, mas um segredo porque ninguém fala dele. Aplaude-se a condenação do traidor que teve a ousadia de falar de uma coisa que toda a gente sabe, mas que era segredo. Vejamos um caso concreto: qualquer governante tem o direito de dizer que o país está a enriquecer; se o que ele diz é verdade ou mentira, isso é um assunto que não lhe diz respeito: a verdade, como vimos, é aquilo que pode ilustrar a importância do actor, não aquilo que lhe tira a luz. Traidor será aquele, medíocre claro está, que se pergunta em voz alta: Como pode estar o país a enriquecer, se cada vez há mais pessoas a comer os seus próprios dentes para não passar fome? Esta é uma pergunta íntima, subjectiva, sem valor de verdade e que todavia configura alta traição aos superiores interesses do país.
Note-se que, em última análise, a banalidade enquanto ciência tem no seu horizonte, já não tão longínquo como se pensa, garantir a qualquer ser humano a possibilidade de decretar que a soma de 2 com 2 não tem de ter o resultado de 4, pode variar e até pode não dar resultado nenhum. Esta soma pode, se assim se quiser, por vontade política, deixar de existir no cenário das operações possíveis. O mesmo se diga, por exemplo, a respeito do facto de a soma dos ângulos de um triângulo ser equivalente a dois ângulos de um quadrado, qualquer que seja a dimensão de um e de outro. Esta é uma verdade que, como está bem de ver, pode não interessar a toda a gente. E depois como pode uma verdade estar acima de quem manda? Quem manda até pode estar distraído e não saber dela, e de repente alguém atira-lhe com a verdade à cara... Isto não é coisa que se faça. Um dos objectivos mais grandiosos desta emergente ciência da banalidade é garantir que este tipo de desfaçatez desapareça definitivamente nas nossas comunidades mais desenvolvidas.

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