Uma certa inatividade tem-me permitido ver, como ambiente de fundo, alguns programas de televisão que, tirando o facto de existirem como papel de parede, não me parecem grande coisa. Como sabemos por experiência, por vezes a imagem, o som, etc. de fundo atira-se para a frente do palco. Foi o que aconteceu com a colaboração de umas jovens psicólogas realmente inteligentes e com uma qualidade que invejo, a de serem capazes de subordinar, sem humilhar nem ofender, o rigor científico ao objectivo de serem entendidas. Falavam do sorriso e do seu papel na felicidade. Elas não disseram que o sorriso resolve os problemas que nos afetam, mas ajuda a resolver as nossas afeções, por outras palavras, obviamente.
Certamente para alimentar e engordar o conceito de ritmo televisivo (como se isso fosse só uma conveniência de quem vê e não um combate comercial, entre operadoras e contra a participação refletida dos espectadores) esta colaboração das psicólogas foi intervalada por uma reportagem (?) a crianças sobre, justamente, o sorriso. A uma delas, foi perguntado "em que momento sorris mais?"; a criança podia dizer qualquer coisa, mas respondeu algo genial: "na Páscoa". Surrealista.
Vamos lá então ao surrealismo.
O meu computador acordou também com uma mensagem: "início das férias escolares de Natal". Muito romanticamente, ouvi o toque de campainha e reagi como se estivesse a pegar num balde cheio de água, que, afinal, estava vazio. Surrealismo outra vez.
E agora que estou para aqui a pensar nisto, embora sem rede, só porque não a tenho procurado (deve existir algures uma ou mais), a minha situação bilingue gera conflitos. A palavra original é a francesa Surréalisme. Não é Sou-réalisme (nem existe verdadeiramente tal palavra, a não ser eventualmente associada à dimensão poética da vida, ou a um barbarismo intelectual, ou a um programa de humor, e por aí). Surréalisme (pode ser feita a analogia com Surgelé) significa ultra-realismo. Isto digo eu sem rede. O que aconteceu foi que o ultra-realismo realista, digamos assim, sentiu o ultra-realismo romântico como um absurdo. O absurdo consistiria em dizer, por exemplo, que "a água canta no leito de um rio", quando sabemos que a água não se dá ao trabalho de cantar nada. Talvez seja esta coisa que tenha levado Dali a representar uma mulher a ver-se ao espelho, tal como ela se vê e não como o pintor a vê. (De novo, sem rede)
Aonde quero chegar: Este ultra-realismo não deixa, no entanto, de ser freudiano, lacaniano... Coisa bem surrealista, esta. Tal como as férias escolares de Natal e a Páscoa, como o momento em que uma criança se dedica a sorrir com mais vontade e com mais frequência.
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