Criou-se no ambiente de produção e divulgação cultural a ideia de que é legítimo que um agente dessa área se sinta devidamente recompensado só por o seu nome surgir nos créditos que divulgam o produto. Não era mau que assim fosse. Mas, para isso, seria necessário identificar agentes de realização, de produção, de divulgação, etc., de cultura como gente que é sustentada pela escravatura de outros de outras áreas da intervenção social. E, deste ponto de vista, o que poderia ser bom torna-se péssimo.
Pois bem, conheço um jovem, desde que nasceu e que me conhece a mim desde esse mesmíssimo momento, que tem colaborado com a concretização da ideia dos gestores municipais da cidade de Paulo Rocha (um realizador e produtor de cinema bastante ignorado nos circuitos comerciais, porque não fez filmes comerciais). Para que se saiba, tive conhecimento do respeito que Paulo Rocha despertava no circuito cinéfilo de França, algum tempo antes de esse rapaz ter nascido. Na semana do Cinema Português (muito mais rico do que se pensa em Portugal) em Poitiers, assisti a filmes e a vários debates com realizadores portugueses no Teatro Municipal da cidade e em outros sítios (na verdade, comprei um livre trânsito para todas as sessões da semana e quase não faltei a nenhuma). Foi aí que vi e ouvi Manoel de Oliveira a falar e a dizer em público que o seu assistente de realização, Paulo Rocha, o salvou do vazio e da dificuldade em dar continuidade à obra iniciada. A primeira e logo decisiva colaboração deu-se num filme quase desconhecido, e completamente desprezado pelos circuitos comerciais, "A Caça". Na verdade, era um filme experimental, sem tempo que o incluísse numa grande metragem e com tempo demais para ser incluído numa Curta. Era só um filme denso, de qualidade fotográfica invejável e agradavelmente ritmado. Manoel de Oliveira ficou de tal modo encantado pela beleza da imagem que parece, por vezes, ter-se esquecido do ritmo, que não da densidade.
Acontece que esse tal jovem (para mim, será sempre jovem porque está fora de hipótese que venha a ser mais velho, ou, sequer, tão velho como eu) foi, sem qualquer benefício de capital de relações prévias, protegido como assistente de realização, como assistente de produção e até, de algum modo como realizador e guionista das suas próprias Curtas, e de outros modos, por Paulo Rocha. E, embora tenham discutido muito um com o outro, por vezes zangaram-se mesmo, não conseguiram nunca deixar de de ser amigos um do outro. Esse jovem foi escolhido para lhe fazer um elogio fúnebre há não muito tempo. Assisti e fiquei sinceramente comovido.
Feitas as apresentações, digamos ao que venho:
Essa administração municipal, tendo sabido que esse tal rapaz está a fazer um estudo académico de nível bastante elevado sobre o último filme de Paulo Rocha "Se fosse ladrão... roubava", uma montagem, absolutamente original e provocatória de citações dos seus anteriores filmes, isto é, uma ousadia sem nome, de uma beleza incontestável, mas incompreensível para quem não conheça a sua obra e os seus atores, contratou de algum modo a sua colaboração para o efeito.
O que é que inquieta o rapaz? É que a próxima sessão de homenagem a Paulo Rocha prevê a passagem do filme "A Ilha dos Amores" de Paulo Rocha, destinada a alunos das escolas da cidade, certamente só para encher a sala, que a cidade parece estar a borrifar-se para um dos seus mais originais e cultos criadores de arte.
E ele (o tal rapaz) acha indecente que se espere que os jovens dessas escolas tenham de compreender e sobretudo aderir emocionalmente a uma arte mais reflexiva do que outra coisa qualquer, depois de terem sido treinados afincadamente a olhar para as imagens, em movimento, ou estáticas, para justamente se pouparem ao trabalho de reflexão. E já está incomodado por antecipação porque está a prever a atitude disciplinadora dos professores, mais incómoda do que o desinteresse dos alunos, na sala de projeção. É, apesar das imperfeições certamente da minha responsabilidade, bom rapaz.
Ele gostaria de fazer montagens, criar ritmos de apresentação, representações explicativas, dinamismo, surpresa, etc., nessa homenagem, através justamente da apresentação selecionada de cenas da "Ilha dos Amores". Mas Isso custa dinheiro... Mais vale fazer um simulacro de algo que corre sérios riscos de denegrir aquele que se quer homenagear.
E qual é, então, o problema da "Ilha dos Amores" de Paulo Rocha? O seu filme dá voz à tradição oriental da Ilha dos Amores, que certamente terá inspirado Camões a compor uma versão ocidentalizada, mas com um sentido muito idêntico, muito libertador. Os alunos, naturalmente, nem fazem ideia de que a tradição da Ilha dos Amores não foi criada originalmente por Camões. A outra dificuldade, e ainda mais séria, é que Paulo Rocha foi embaixador, diplomata, qualquer coisa do género no Japão, e adorou a influência da tradição poética Haiku de Bashô (por outro lado, o pai de Paulo Rocha foi um importante, bastante rico, e muito mais azarado, proprietário de empresa import-export com navios próprios que privilegiou as relações com o Brasil, país onde alguns poetas se deixaram, a partir de 1930, seduzir por essa arte). As cenas da "Ilha dos Amores" de Paulo são em formato Haiku, se assim se pode dizer. É que o Haiku, na sua forma mais completa, associa-se à imagem e retoma um nome diferente (tenho de parar de dar informação a mais, porque a cada vez que a acrescento ela cria insuficiências).
Esse filme de uma poesia sublime, mas estranha para quem tenha lido os Lusíadas, e ainda muito mais para quem não o leu, dura mais de três horas. Trata-se de uma produção artística, sem objetivos de circuito comercial, que se pagou, praticamente sem lucro, no circuito de debate reflexivo da arte. Para amantes. Não para indiferentes.
E agora? Valia ou não a pena montar visualmente a homenagem de forma a que as imagens animassem um debate, a curiosidade, a provocação, a destruição da distância de quem vê face a quem tornou visível?
Não há respeito pela arte quando se lhe falta ao respeito, apresentando-a, em formato de homenagem, de forma inacessível. Corrigir isto custa algum dinheiro, pois custa. Mas não é a arte que custa dinheiro. É o trabalho das pessoas. E esse tem de ser pago aos artistas, aos criadores de um bem comum, tal (pelo menos) como está a ser pago aos destruidores desse e de outros bens comuns, só para garantir a paridade das armas nesta guerra, que os doidos estão a levar de vencida, pelos menos a ver pela sua desfaçatez.
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