Rousseau, Émile
O texto:
“Cuidamos das plantas através da cultura, e os homens através da educação.
Mesmo que o homem nascesse grande e forte, o seu tamanho e a sua força
ser-lhe-iam inúteis antes de aprender a servir-se deles; ser-lhe-iam
prejudiciais por impedir os outros de lhe prestar assistência; e, abandonado a
si mesmo, morreria de miséria, mesmo antes de ter conhecido as suas
necessidades. Lamentamo-nos da infância; não vemos que a raça humana teria
perigado, se o homem não começasse por ser criança. Nascemos fracos, temos
necessidade de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de
assistência; nascemos estúpidos, temos necessidade de juízo. Tudo o que não
temos na altura do nascimento, e de que precisamos quando somos adultos, é-nos
dado pela educação. Esta educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou das
coisas. O desenvolvimento interno das nossa faculdades e dos nossos órgãos
corresponde à educação da natureza; o uso que aprendemos a fazer deste
desenvolvimento vem da educação dos homens; e o que adquirimos através da nossa
experiência com os objectos que nos afectam correponde à educação pelas coisas.
Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de mestres. O discípulo, em que
as suas diversas lições se contrariam, é mal educado, e nunca estará em
conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem todas nos mesmos pontos e
tendem para os mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive consequentemente.
Só deste se pode dizer que é bem educado”.
Proposta de ensaio:
Tese: Neste texto, Rousseau estabelece um paralelo entre a
cultura das plantas e a educação dos homens. O seu objectivo, para além de
sublinhar a necessidade da educação e a feliz condição do homem apesar da sua
fraqueza natural, é o de definir o que é uma boa educação. Este texto não é,
por isso, incompatível com a crítica que faz Rousseau da cultura como
desnaturação no Second Discours e no Discours sur les sciences et les
arts. A tese dos três mestres (coisas, natureza e homem) permite repensar a
educação e descobrir o fundamento das teorias mais modernas da educação.
Trata-se de um texto com actualidade, na medida em que lembra que a educação
não deve reduzir-se ao treino.
Elementos de explicação:
⁃ Linhas 1 a 6: Após um paralelo entre as
plantas e os homens (associando a cultura a um acompanhamento do movimento da
natureza, ao facto de cuidar dela), Rousseau sublinha que a fraqueza natural do
homem (ser inacabado, teoria da neotenia, ser Prometeu) é na realidade um dom
feliz da natureza. É o que quer dizer quando imagina um recém-nascido grande e
forte, mas incapaz de usar as suas forças. Se o recém-nascido, a criança, não
tivesse essa aparência fraca, não cuidaríamos dela, nem se pensaria na hipótese
de lhe prestar assistência. Talvez Rousseau queira sugerir que é
vulnerabilidade da criança que nos leva a cuidar dela. A fraqueza, a
fragilidade da criança sublinha o seu inacabamento, a sua imaturidade e faz
apelo à maturação pela cultura, pela educação. Conclui, assim, que não nos
devemos queixar dessa fragilidade da infância (aliás, uma demasiada robustez
seria o sinal de um acabamento, que esconderia a plasticidade que é o ponto
chave da possibilidade de aperfeiçoamento que caracteriza o homem por oposição
à rigidez do instinto no animal).
⁃ Linhas 7 a 10: Rousseau limita-se a sublinhar
que essa fraqueza exige cuidados tanto ao nível do corpo como do espírito
(“nascemos estúpidos”). Na verdade, tudo é compensado pela educação. Poderíamos
pensar que Rousseau sugere que nós só somos cultura e que tudo nos é dado pelos
outros (o que colocaria questões inultrapassáveis à sua crítica contra a
cultura desnaturante; com efeito, se nada existe de natural, como poderíamos
falar de desnaturação?)
⁃ Mas nas linhas 11 a 15, vai sublinhar que a
educação não se reduz àquela que é recebida dos homens; há também a educação
através da natureza e através das coisas. Mesmo sendo verdade que nascemos
inacabados, a natureza encarrega-se de, através do “desenvolvimento interno das
nossas faculdades e órgãos, de nos assegurar o cumprimento de objectivos
naturais; É portanto possível um movimento natural e um movimento contra
natura. E, tal como a cultura para a planta, a educação é já pré-orientada por
este movimento natural, inato. O adquirido não se opõe, então, ao inato, não
vem preencher um vazio, vem prolongá-lo, ajudar a fazer uso do que em nós é
inato. À educação recebida dos outros acrescenta-se a experiência pessoal das
coisas. O mundo físico, o mundo dos outros e a nossa própria natureza (são
estes os nossos mestres) são as três fontes de educação que impede qualquer
tentativa de reduzir a educação a um treino, deixando espaço para a
auto-formação e colocando limites à estruturação de si pelos outros.
⁃ Estes últimos esclarecimento permitem a
Rousseau distinguir a boa da má educação: a boa educação seria aquela que
concilia os três mestres, que permite salientar no ser educado aquilo para que
tenderia naturalmente. A educação não é, portanto, um treino, uma formatação,
ela só é aquilo que permite ao indivíduo tornar-se por si mesmo aquilo que ele
é. Esta teoria da educação (muito ao contrário do que defendem, sobretudo,
alguns políticos muito apressados em tirar as conclusões que lhes convêm) está
em perfeita conformidade com ideal do século das Luzes, mesmo concedendo
Rousseau um lugar privilegiado ao sentimento (linhas 1 a 6) e às lições da
experiência.
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