domingo, 8 de dezembro de 2013

Continuando: Rousseau

Rousseau, Émile

O texto: “Cuidamos das plantas através da cultura, e os homens através da educação. Mesmo que o homem nascesse grande e forte, o seu tamanho e a sua força ser-lhe-iam inúteis antes de aprender a servir-se deles; ser-lhe-iam prejudiciais por impedir os outros de lhe prestar assistência; e, abandonado a si mesmo, morreria de miséria, mesmo antes de ter conhecido as suas necessidades. Lamentamo-nos da infância; não vemos que a raça humana teria perigado, se o homem não começasse por ser criança. Nascemos fracos, temos necessidade de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, temos necessidade de juízo. Tudo o que não temos na altura do nascimento, e de que precisamos quando somos adultos, é-nos dado pela educação. Esta educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno das nossa faculdades e dos nossos órgãos corresponde à educação da natureza; o uso que aprendemos a fazer deste desenvolvimento vem da educação dos homens; e o que adquirimos através da nossa experiência com os objectos que nos afectam correponde à educação pelas coisas. Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições se contrariam, é mal educado, e nunca estará em conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive consequentemente. Só deste se pode dizer que é bem educado”.
Proposta de ensaio:
Tese: Neste texto, Rousseau estabelece um paralelo entre a cultura das plantas e a educação dos homens. O seu objectivo, para além de sublinhar a necessidade da educação e a feliz condição do homem apesar da sua fraqueza natural, é o de definir o que é uma boa educação. Este texto não é, por isso, incompatível com a crítica que faz Rousseau da cultura como desnaturação no Second Discours e no Discours sur les sciences et les arts. A tese dos três mestres (coisas, natureza e homem) permite repensar a educação e descobrir o fundamento das teorias mais modernas da educação. Trata-se de um texto com actualidade, na medida em que lembra que a educação não deve reduzir-se ao treino.
Elementos de explicação:
      Linhas 1 a 6: Após um paralelo entre as plantas e os homens (associando a cultura a um acompanhamento do movimento da natureza, ao facto de cuidar dela), Rousseau sublinha que a fraqueza natural do homem (ser inacabado, teoria da neotenia, ser Prometeu) é na realidade um dom feliz da natureza. É o que quer dizer quando imagina um recém-nascido grande e forte, mas incapaz de usar as suas forças. Se o recém-nascido, a criança, não tivesse essa aparência fraca, não cuidaríamos dela, nem se pensaria na hipótese de lhe prestar assistência. Talvez Rousseau queira sugerir que é vulnerabilidade da criança que nos leva a cuidar dela. A fraqueza, a fragilidade da criança sublinha o seu inacabamento, a sua imaturidade e faz apelo à maturação pela cultura, pela educação. Conclui, assim, que não nos devemos queixar dessa fragilidade da infância (aliás, uma demasiada robustez seria o sinal de um acabamento, que esconderia a plasticidade que é o ponto chave da possibilidade de aperfeiçoamento que caracteriza o homem por oposição à rigidez do instinto no animal).
     Linhas 7 a 10: Rousseau limita-se a sublinhar que essa fraqueza exige cuidados tanto ao nível do corpo como do espírito (“nascemos estúpidos”). Na verdade, tudo é compensado pela educação. Poderíamos pensar que Rousseau sugere que nós só somos cultura e que tudo nos é dado pelos outros (o que colocaria questões inultrapassáveis à sua crítica contra a cultura desnaturante; com efeito, se nada existe de natural, como poderíamos falar de desnaturação?)
     Mas nas linhas 11 a 15, vai sublinhar que a educação não se reduz àquela que é recebida dos homens; há também a educação através da natureza e através das coisas. Mesmo sendo verdade que nascemos inacabados, a natureza encarrega-se de, através do “desenvolvimento interno das nossas faculdades e órgãos, de nos assegurar o cumprimento de objectivos naturais; É portanto possível um movimento natural e um movimento contra natura. E, tal como a cultura para a planta, a educação é já pré-orientada por este movimento natural, inato. O adquirido não se opõe, então, ao inato, não vem preencher um vazio, vem prolongá-lo, ajudar a fazer uso do que em nós é inato. À educação recebida dos outros acrescenta-se a experiência pessoal das coisas. O mundo físico, o mundo dos outros e a nossa própria natureza (são estes os nossos mestres) são as três fontes de educação que impede qualquer tentativa de reduzir a educação a um treino, deixando espaço para a auto-formação e colocando limites à estruturação de si pelos outros.
     Estes últimos esclarecimento permitem a Rousseau distinguir a boa da má educação: a boa educação seria aquela que concilia os três mestres, que permite salientar no ser educado aquilo para que tenderia naturalmente. A educação não é, portanto, um treino, uma formatação, ela só é aquilo que permite ao indivíduo tornar-se por si mesmo aquilo que ele é. Esta teoria da educação (muito ao contrário do que defendem, sobretudo, alguns políticos muito apressados em tirar as conclusões que lhes convêm) está em perfeita conformidade com ideal do século das Luzes, mesmo concedendo Rousseau um lugar privilegiado ao sentimento (linhas 1 a 6) e às lições da experiência.


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