Jorge Barbosa
Curso de Artes Visuais
Filosofia
Abril, 2013
A perspetiva de Deleuze sobre Kant
A revolução copernicana
No racionalismo dogmático, a teoria do conhecimento fundava-se na ideia de urna correspondência entre o sujeito e o objeto, de um acordo entre a ordem das ideias e a ordem das coisas. Este acordo tinha dois aspectos: implicava em si mesmo uma finalidade; e exigia um princípio teológico como fonte e garantia dessa harmonia, dessa finalidade. Mas é curioso verificar que, numa perspectiva muito diferente, o empirismo de Hume recorria a um expediente semelhante: para explicar que os princípios da Natureza estivessem de acordo com os da natureza humana, Hume era forçado a invocar explicitamente uma harmonia preestabelecida. A ideia fundamental do que Kant denomina a sua «revolução copernicana» consiste no seguinte: substituir a ideia de uma harmonia entre o sujeito e o objeto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objeto ao sujeito.
A descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora ou, mais precisamente, que há algo de legislador na faculdade de conhecer. (De igual modo, algo de legislador na faculdade de desejar.) Assim, o ser dotado de razão descobre em si novos poderes. A primeira coisa que a revolução copernicana nos ensina é que somos nós que comandamos. Há aqui uma inversão da antiga concepção da Sageza: o sábio definia-se de uma certa forma pelas suas próprias submissões, de uma outra forma pelo seu acordo «final» com a Natureza. Kant opõe à sageza a imagem crítica: nós, os legisladores da Natureza. Quando um filósofo, aparentemente muito afastado do kantismo, anuncia a substituição de Parere por Jubere, mostra-se mais devedor a Kant do que ele próprio pensa. Seria legítimo esperar que o problema de uma submissão do objeto pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo subjetivo. Mas nenhuma solução é mais estranha ao kantismo. O realismo empírico é uma constante da filosofia crítica. Os fenómenos não são aparências, mas também não são produtos da nossa atividade. Afetam-nos na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos, precisamente porque não se trata de coisas em si. Mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos? Como é que um sujeito passivo pode ter, por outro lado, uma faculdade ativa de tal ordem que as afecções que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a esta faculdade? Em Kant, o problema da relação do sujeito e do objeto tende, pois, a interiorizar-se: converte-se no problema de uma relação entre faculdades subjetivas que diferem em natureza (sensibilidade receptiva e entendimento ativo).
A síntese e o entendimento legislador
Representação quer dizer síntese do que se apresenta. A síntese consiste, portanto, no seguinte: uma diversidade é representada, ou seja, tida como encerrada numa representação. A síntese tem dois aspectos: a apreensão, pela qual fixamos o diverso como ocupando um certo espaço e um certo tempo, pela qual «produzimos» partes no espaço e no tempo; a reprodução, pela qual reproduzimos as partes precedentes à medida que chegamos às seguintes. A síntese assim definida não incide somente sobre a diversidade tal como aparece no espaço e no tempo, mas sobre a diversidade do espaço e tempo em si mesmos. Sem ela, com efeito, o espaço e o tempo não seriam «representados».
A síntese, quer como apreensão quer como reprodução, é sempre definida por Kant como um ato da imaginação. Mas a questão é: será inteiramente exato dizer, como fizemos precedentemente, que a síntese basta para constituir o conhecimento? Na verdade, o conhecimento implica duas coisas que extravasam a própria síntese: ele implica a consciência ou, mais precisamente, a pertença das representações a uma mesma consciência na qual devem estar ligadas. Ora, a síntese da imaginação, tomada em si mesma, não é de modo algum consciência de si. Por outro lado, o conhecimento implica uma relação necessária com um objeto. O que constitui o conhecimento não é simples-mente o ato pelo qual se faz a síntese do diverso, mas o ato pelo qual se refere a um objeto diverso representado (recognição: é uma mesa, é uma maçã, é tal ou tal objeto...).
Estas duas determinações do conhecimento têm uma relação profunda. As minhas representações são minhas enquanto estão ligadas na unidade de uma consciência, de tal sorte que o «Eu penso» as acompanha. Ora, as representações não estão assim unidas numa consciência sem que o diverso que sintetizam esteja no mesmo passo referido a um objeto qualquer. Sem dúvida, conhecemos unicamente objetos qualificados (qualificados como tal ou tal por uma diversidade). Mas nunca o diverso se referiria a um objeto se porventura não dispuséssemos da objetividade como de uma forma em geral («objeto qualquer», «objeto = x»). Donde vem esta forma? O objeto qualquer é o correlato do Eu penso ou da unidade da consciência, é a expressão do Cogito, sua objetivação formal. Por isso, a verdadeira fórmula (sintética) do Cogito é: penso e, pensando-me, penso o objeto qualquer, ao qual se refere uma diversidade representada.
A forma do objeto não remete para a imaginação, mas para o entendimento: «Sustento que o conceito de um objeto em geral, que não é possível encontrar na mais clara consciência da intuição, pertence ao entendimento como a uma faculdade particular.» Com efeito, todo o uso do entendimento se desenvolve a partir do Eu penso; mais ainda, a unidade do Eu penso «é o próprio entendimento». O entendimento dispõe de conceitos a priori que se chamam categorias; se perguntarmos como é que as categorias se definem, veremos que são ao mesmo tempo representações da unidade da consciência e, como tais, predicados do objeto qualquer. Por exemplo, nem todos os objetos são vermelhos, e os que o são não o são necessariamente; mas não há objeto que não seja necessariamente substância, causa e efeito de outra coisa, que não esteja em relação recíproca com outra coisa. A categoria confere assim à síntese da imaginação uma unidade sem a qual esta nos não proporcionaria conhecimento algum propriamente dito.
Em suma, podemos dizer o que incumbe ao entendimento: não é a própria síntese, mas a unidade da síntese e as expressões desta unidade.
A tese kantiana é: os fenómenos estão necessariamente submetidos às categorias, de tal modo que, pelas categorias, somos os verdadeiros legisladores da Natureza. Mas a questão é, antes de mais: por que motivo é precisamente o entendimento (e não a imaginação) o legislador? Por que motivo é ele que legisla na faculdade de conhecer? Para encontrar a resposta a esta questão, talvez baste comentar os respectivos termos. E evidente que não poderíamos perguntar: porque é que os fenómenos estão submetidos ao espaço e ao tempo? Os fenómenos são o que aparece, e aparecer é estar imediatamente no espaço e no tempo. «Como é unicamente mediante estas puras formas da sensibilidade que uma coisa pode aparecer-nos, isto é, tornar-se objeto de intuição empírica, o espaço e o tempo são puras intuições que contêm a priori a condição da possibilidade dos objetos como fenómenos.» Eis porque o espaço e o tempo são objeto de uma «exposição», não de uma dedução; e a sua exposição transcendental, comparada à exposição metafísica, não levanta qualquer dificuldade particular. Não é possível, portanto, dizer que os fenómenos estão «submetidos» ao espaço e ao tempo: não só porque a sensibilidade é passiva, mas sobretudo porque ela é imediata, além de a ideia de submissão implicar, ao invés, a intervenção de um mediador, isto é, de uma síntese que refira os fenómenos a uma faculdade ativa capaz de ser legisladora.
Por conseguinte, a imaginação também não é faculdade legisladora. A imaginação encarna precisamente a mediação, opera a síntese que refere os fenómenos ao entendimento como única faculdade que legisla no interesse de conhecer. É por isso que Kant escreve: «A razão pura abandona tudo ao entendimento, o qual se aplica imediatamente aos objetos da intuição ou, antes, à síntese destes objetos na imaginação.» Os fenómenos não são submetidos à síntese da imaginação, são submetidos por esta síntese ao entendimento legislador. Ao contrário do espaço e do tempo, as categorias como conceitos do entendimento são, pois, objeto de uma dedução transcendental, que coloca e resolve o problema particular de uma submissão dos fenómenos.
Eis como o problema é resolvido nas suas grandes linhas: 1.° Todos os fenómenos estão no espaço e no tempo; 2.° A síntese a priori da imaginação incide a priori sobre os próprios espaço e tempo; 3.° Os fenómenos estão, portanto, necessariamente submetidos à unidade transcendental desta síntese e às categorias que a representam a priori. E realmente neste sentido que o entendimento é legislador: sem dúvida, ele não nos diz as leis a que estes ou aqueles fenómenos obedecem do ponto de vista da sua matéria, embora constitua as leis a que todos os fenómenos estão submetidos do ponto de vista da sua forma, de tal maneira que eles «formam» uma Natureza sensível em geral.
Uso legítimo, uso ilegítimo
1.° Apenas os fenómenos podem ser submetidos à faculdade de conhecer (seria contraditório que as coisas em si o fossem). O interesse especulativo incide, portanto, naturalmente sobre os fenómenos; as coisas em si não são objeto de um interesse especulativo natural. 2.° Como é que os fenómenos são precisamente submetidos à faculdade de conhecer, e a quê nesta faculdade? São submetidos, pela síntese da imaginação, ao entendimento e aos seus conceitos. E pois o entendimento que legisla na faculdade de conhecer. Se a razão é assim levada a abandonar ao entendimento o cuidado do seu próprio interesse especulativo, é porque ela não se aplica aos fenómenos e forma Ideias que superam a possibilidade da experiência. 3.° O entendimento legisla sobre os fenómenos do ponto de vista da sua forma. Como tal, aplica-se e deve aplicar-se exclusivamente ao que lhe é submetido: não nos fornece conhecimento algum das coisas tais como elas são em si.
Esta exposição não aflora um dos temas fundamentais da Crítica da Razão pura. A títulos diversos, o entendimento e a razão são profundamente atormentados pela ambição de nos fazerem conhecer as coisas em si. Uma tese constantemente recordada por Kant é a de que há ilusões internas e usos ilegítimos das faculdades. Acontece às vezes a imaginação sonhar, em lugar de esquematizar. Mais ainda: em lugar de se aplicar exclusivamente aos fenómenos («uso experimental»), acontece ao entendimento pretender aplicar os seus conceitos às coisas tais como elas são em si («uso transcendental»): E ainda não é o mais grave. Em vez de se aplicar aos conceitos do entendimento («uso imanente ou regulador»), acontece à razão pretender aplicar-se diretamente a objetos e querer legislar no domínio do conhecimento («uso transcendente ou constitutivo»). Porque é isto o mais grave? O uso transcendental do entendimento pressupõe apenas que este se abstraia da sua relação com a imaginação. Ora, tal abstração teria apenas efeitos negativos se porventura o entendimento não fosse impelido pela razão, que lhe dá a ilusão de um domínio positivo a conquistar fora da experiência. Como diz Kant, o uso transcendental do entendimento vem unicamente da circunstância de este negligenciar os seus próprios limites, ao passo que o uso transcendente da razão nos ordena que transponhamos os limites do entendimento (22).
É neste sentido que a Crítica da Razão pura merece o seu título: Kant denuncia as ilusões especulativas da Razão, os falsos problemas para os quais ela nos arrasta, a respeito da alma, do mundo e de Deus. Kant substitui o conceito tradicional de erro (o erro como produto, no espírito, de um determinismo externo) pelo de falsos problemas e de ilusões internas. Estas ilusões são ditas inevitáveis e até tidas como resultantes da natureza da razão (23). Tudo o que a Crítica pode fazer é conjurar os efeitos da ilusão sobre o próprio conhecimento, mas não impedir a sua formação na faculdade de conhecer.
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