Tendo-me dedicado, não a ouvir o que diz (que não interessa), mas a prestar atenção ao que faz, reparei que o nosso primeiro fala com os portugueses (nem que sejam só 20) como aqueles senhores que atendem os seus servos sempre à hora das refeições. Falam com eles sempre a mastigar qualquer coisa: um naco de boroa, um pedaço de bolo, ou uma tira de toucinho, tanto faz. Deste modo são passadas três mensagens, qual delas a mais importante isso fica ao vosso critério:
- Os senhores estão sempre muito ocupados. Trabalham a todas as horas e até à hora de almoço têm de despachar com os seus criados.
- Os senhores são atenciosos. Atendem os seus servos mesmo à hora sagrada da refeição.
- Os senhores são gente trabalhadora. Logo que o servo tenha dito ao que vinha, ala que se faz tarde, e o senhor precisa de empurrar o naco com uma pinga. Não oferece nada porque é frugal.
Então, o nosso primeiro fala assim, como um senhor que, atenciosamente, atende o seu servo às horas das refeições. Como um colonizador atenderia um seu escravo. Só lhe falta o palito nos dentes, a bailar de um lado para o outro. E um "sombrero".
"Está a almoçar? Desculpe lá. É que a vaca vai dar bezerros mais logo." Voz cava e bem colocada: "Não tem de se preocupar; estou mesmo a acabar. Então os bezerros vão nascer. Folgo muito. Olhe, já agora, pode apanhar um cacho de uvas da ramada do lado esquerdo para levar à sua Ermelinda. Os bagos que caiam ao chão pode levá-los aos seus filhos que bem devem andar precisados de uma guloseima. Não colha do lado direito que foram pulverizados com caga-já. Quando houver novidades, passe por cá, que já devo estar a cear e, portanto, posso atendê-lo. Vá lá à sua vida. E não se lembre de dizer que vem daqui." que o mesmo é dizer: "não se esqueça de cantar as minhas glórias e a minha generosidade. As uvas, não se esqueça, do lado esquerdo que do lado direito têm caga-já".
É assim que fala o nosso primeiro: sempre a mastigar... e a engolir (não vá alguém pensar que está só a morder os dentes de raiva).
À hora da ceia lá está ele. Não é esta a primeira, nem a última. Lindo quadro pode, então, ser visto. O nosso primeiro ao centro. Decididamente, falta-lhe o palito nos dentes a balouçar. É preciso falar urgentemente com quem cuida da sua imagem. Ao seu lado direito (do lado esquerdo de quem vê) "a do farto regaço". Ao colo da "do farto regaço", embalado, com ar feliz, a chuchar no dedo, o nosso vice-primeiro. Os comensais estão todos dispostos, de forma a que a fotografia apanhe, de todos, a tacha arreganhada. Ninguém quer fazer, desta vez, figura de emplastro (isso, fazem eles a toda a hora em outras ocasiões). No fundo do quadro, conferindo-lhe a beleza em falta, uma fazenda de ar bucólico: cores suaves e doces de uma seara de trigo, emoldurada por ramadas de vinhas viçosas e gulosas. Os servos da gleba trabalham a terra. Magros, famintos. Alguns são piegas. Outros estão a mandar o mastigador à merda. No lado esquerdo da imagem, vê-se uma pequena escaramuça. O Aristides, que tinha ido colher as uvas para a sua Ermelinda, levanta os braços, impedindo que um desnaturado qualquer lhe roube o cacho de uvas. "Foi o senhor que mas deu. Sai daí. Só te posso dizer que as daquele lado estão cheias de caga-já". Um servo que corria para aquele lado estacou de repente. Abriram-se dois buracos na terra debaixo dos seus pés. Logo o palerma que vinha no seu encalço aproveitou para lá depositar umas sementes de girassol. Assim como assim, aquilo era trabalho, empreendedorismo, inovação, etc.
Ao nosso fotógrafo, pede-se-lhe agora que alargue o ângulo da sua objetiva. Assim faz. Vê-se agora claramente, à frente da mesa da ceia, dois leprosos, cada um com a sua trombeta nova em folha e a brilhar, e um cão sarnento. Os leprosos procuram apanhar as migalhas. O seu sonho é saltar para a mesa e comer coisas ainda inteiras e não mastigadas. O cão lazarento está lá para guardar a porta de intrusos e para impedir os leprosos de acreditarem que alguma vez conseguiriam ficar de frente, tacha arreganhada, para o fotógrafo. O cão sarnento lembra: "Fui eu que organizei esta ceia e todas as outras que se seguirão. Não me cansarei de o proclamar aos quatro ventos. Não precisei de andar na escola para aprender a coçar as pulgas. Aquele copinho de leite que ali vês, sentado ao centro, está lá porque fui eu que o lá pus. Fui eu que lhe cocei as pulgas. Se vós, leprosos, quereis ocupar algum daqueles lugares, só tendes que vos portar como eu digo. Já sabeis que fui eu que mandei afinar as vossas trombetas. Estão afinadas. Agora, não as desafineis. O resto, deixai comigo que sei coçar as minhas próprias pulgas e as dos outros, se for preciso. O que me faz falta é aprender a cantar." E recomeçou: "Grândolaa, vila moreena..." "Cala-te lá", disseram os leprosos em uníssono.
Um bater de palmas. O nosso primeiro quer ouvir o bobo. "Venha o do abrunho e que se cale o cão sarnento que não é tenor. Somos amigos, tenho muita consideração por ele, mas a amizade e a consideração também têm limites". E engoliu o que disse, ou então foi uma tira de toucinho frito.
E aqui se reproduz o poema do "do abrunho". O vice-primeiro embalado pela "do farto regaço" já dormia a sonhava sem os recalcamentos da sua vida. E pensava: "será que, se me puser em posição de sacrifício, o ar doloroso, de missionário, ela vai continuar a embalar-me? Não. É melhor não. Já sei o que vai acontecer. Vira-se logo, e, depois, a missionária é ela". Vamos ao poema, aqui reproduzido como pode ser, mas não como certamente merece.
(Som de piano e viola acústica em ritmo binário. uma voz rouca, mas afinada)
Noite escura
Dia claro
Chave na fechadura
Eu truz, truz
Tu traz, traz.
(rufo de bateria. Metais a impor ritmo ternário de valsa. Baixo a confirmar. Voz uma oitava acima, desafinada. Bateria ao jeito dos Maroon Five)
Tu traz, traz
E a noite escura
Eu truz. truz
E o dia claro
Chave, chave
Fechadura na chave
E a lua no alto
E eu cá embaixo
Porta aberta
Porta fechada
Luz no céu
A chave caeu.
(voz rouca, afinada. ritmo binário. Piano)
Noite escura
Dia claro
Chave na fechadura
Eu truz, truz
Tu traz, traz.
Palmas. O vice-primeiro acordou e lembrou-se da lavoura, dos ranchos folclóricos, e dos velhinhos. O nosso primeiro recomeçou a mastigar e a engolir. O cão sarnento uivou. Fez-se silêncio. Um sorriso brilhou-lhe nos lábios. E então pôde ver-se com toda a clareza: o palito do primeiro estava nos dentes do cão. Que falta lhe faz o palito... Mais do que o sombrero. Questão de imagem!
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