Portas diz que os mais pobres não se manifestaram (in DN). Como é que ele sabe?
Não vou repetir esta pergunta "de como é que ele sabe?" para não fazer figura de parvo, como adiante se verá.
Embora sabendo as terríveis consequências do meu acto insensato, decidi levar o cão (o Chaplin) ao jardim que dista de minha casa uns 100 a 200 metros. Sentei-me na esplanada do café e deixei que manifestasse em toda a liberdade o seu gosto pela corrida e pela descoberta de um mundo sempre igual. E ele lá foi. Uns minutos depois, como é seu hábito, veio a correr postar-se do meu lado esquerdo. Do outro lado, uns jovens, que frequentavam seguramente a escola secundária vizinha (Antº Sérgio), perguntaram se podiam fazer-lhe festas, se mordia. Respondi-lhes prontamente que não, que não mordia a não ser que fossem alunos indisciplinados nas aulas e tivessem fracas notas. Neste caso, iriam para casa sem, pelo menos, uma das mãos. Era vê-los a retirar as mãos como se as tivessem pousado numa grelha de assar sardinhas. O cão rosnou só para dizer que também tem sentimentos: "que é isso de me fazerem festas e retirarem as mãos como se fosse leproso ou tivesse sido atacado pela peste?"
A senhora que se sentava na mesa ao lado da minha, pela farpela e pela curiosidade certamente professora, perguntou: "como é que ele sabe que eles são maus alunos?" Estive vai não vai para lhe responder "como haveria ele de não saber?". Mas fiquei por uma resposta ambígua: "para explicar uma coisa dessas preciso do tempo todo de uma reunião de departamento curricular". Fez-se silêncio sepulcral. Como apesar de tudo também tenho sentimentos, acabei por acrescentar: "não sei o que se passa na cabeça do cão, mas o certo é que foram eles que se denunciaram." "Eu sei, reparei nisso, mas como é que ele soube?"
As dores estavam a voltar e eu já sabia que ia precisar de uma ou duas horas de completo repouso. O Chaplin também já dava sinais de estar a perceber o contexto e voltamos a casa, eu para me estender num ninho de almofadas, ele para tomar conta de mim, como se esse fosse o seu destino.
Pelo caminho, enquanto me arrependia sem grande convicção, dado o episódio dos maus alunos, desta curta, mas arriscada viagem, ia pensando naquele dia em que o Chaplin se deu ao trabalho de ir cheirar umas calças pendentes no rabo de um dos alunos da escola. Cheirou e não rosnou. Espirrou, para aliviar as narinas do cheiro. E o rapaz deu um salto, como se lhe tivessem puxado as ditas pendentes. O Chaplin pôs a sua cara de anjo e, virando-se para mim, explicou-se como podia: "esta era a moda nas prisões americanas: aqueles que não se importassem de ser sodomizados usavam as calças deste modo. Que queres que faça disto? Era um aviso a toda a população prisioneira, um aviso sem palavras e sem reclamações, como convinha na situação." Tomei nota. Já mais complicado foi o caso em que o cheiro das calças pendentes se misturou com o cheiro a restos de coisas para comer, ou outra coisa qualquer. Aí, ele ladrou mesmo. "Que lata a destes palermas de juntarem migalhas e até uma daquelas máquinas que apita e fala com umas calças daquelas?" Rosnou, ladrou e não pediu desculpa.
Pior foi o dia em que uma mosca, entrada pela janela, decidiu postar-se em frente ao focinho do cão. O Chaplin cheirou-a como é de sua obrigação, e a palerma levantou voo. O bicho abocanhou-a em menos de um segundo. Espirrou mas ela não saiu. E foi com os beiços num trejeito de nojo que a mastigou e comeu. Tenho que o ensinar a cuspir. Afinal, não é assim tão diferente de espirrar, e talvez, assim, aguente melhor as contrariedades da vida.
MAS COMO É QUE ELE SABE?
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