domingo, 13 de outubro de 2013

Irritar os Imbecis e Envergonhar a Estupidez


“Não pintar o visível, mas tornar visível” (ou dar visibilidade), esta é a fórmula do pintor Paul Klee para a sua obra. Esta fórmula aproxima-se nitidamente da tarefa que Deleuze atribui à filosofia: não pensar o pensável ou o pensado, mas forçar o impensável a ser pensado, forçar a língua a dizer o indizível, como fazem os poetas. Para Deleuze a opinião verosímil (ou verdadeira) ou razoável (acompanhada de razão), com tudo o que a acompanha não passa de um abrigo, de uma protecção contra o caos, uma espécie de anti-caos subjectivo. Por isso mesmo, a opinião e tudo o que se lhe vincula - a discussão, a comunicação, a promoção de consensos … - nada têm a ver com o pensamento, ou que o acto pensante, sendo uma luta contra o caos (e não um abrigo confortável) é sempre inevitavelmente uma ostensiva guerra à opinião.
Claramente influenciado pelas neuro-ciências, para Deleuze, a arte, a ciência e a filosofia são as três maneiras como o cérebro enfrenta o caos e o recorta, o atravessa, o “mede”. “Pensar é sempre pensar por conceitos (Filosofia), ou por funções (Ciência), ou por sensações (Arte), e nenhum destes pensamentos é melhor do que os outros, ou mais plenamente, mais completamente, mais sinteticamente, pensamento”. (Deleuze). Mas estes operadores do pensamento (conceito, função, sensação) têm de ser criados, não preexistem aos sujeitos ou aos cérebros. Nos termos de Deleuze, a arte cria sensações (perceptos e afectos) sob a acção de figuras estéticas, num plano de composição. A ciência cria funções que se apresentam como proposições em sistemas discursivos, sobre um plano de referência ou de coordenação.  A filosofia é criação de conceitos e de personagens conceptuais sobre um plano de imanência, ou consistência. Tanto na filosofia como na ciência e na arte trata-se de afrontar o caos, de desenhar um plano sobre o caos.
Deleuze propõe que se liberte a filosofia das garras redutoras da lógica. “A lógica é reducionista, não por acidente, mas por essência e necessariamente”. (Deleuze) É que a lógica tem, também ela, uma imagem do pensamento, infantil imagem extraída, não da ciência, mas dos actos elementares de recognição. Se a ciência é a forma superior, porque criativa da finitude do nosso mundo, visto que estuda os corpos e os seus estados nos seus processos de constituição e de modificação, a lógica modela-se pelo mais limitado e desinteressante desses movimentos, o recognitivo. As proposições lógicas são prospectos informativos, para Deleuze. A lógica só conhece proposições, por isso é, por essência inapta para dar conta da criatividade filosófica, científica ou artística. “As discussões são boas para as mesas redondas, mas é sobre uma outra mesa que a filosofia lança os seus dados cifrados. Das discussões, o mínimo que se pode dizer é que não fariam avançar o trabalho, porque os interlocutores nunca falam das mesmas coisas. Que alguém tenha tal opinião, e pense nisto em vez daquilo, o que é que isso pode interessar à filosofia, enquanto os problemas em jogo não forem ditos?” (Deleuze)
A que tribo pertences e a quais te opões? A pragmática das opiniões não consiste noutra coisa, tudo uma questão de tribos, de colectividades, e de enunciação pelo indivíduo das suas pertenças e das suas rivalidades. Assim, aquele que afirma que “todos os gatos são agressivos” e que “os cães são animais inteligentes” reconhece-se como membro da comunidade dos que detestam os gatos e gostam de cães, rivalizando com a comunidade que pensa o inverso ou de forma diferente. A opinião constitui-se num objeto de discussão porque o sujeito assume a sua posição individual como sendo a de um grupo, potencialmente de todos os que pensam como deve ser sobre o assunto. Toda a opinião fala em nome de uma maioria, ou pretende ser uma maioria potencial, um princípio de consenso, de senso comum. É por isso que a filosofia, que pretende distanciar-se do senso comum, nada tem a ver com a opinião e com a discussão ou argumentação como forma de determinar as opiniões mais razoáveis ou mais justas.
(…)
Por outras palavras, a verdade não é coisa preexistente a descobrir, mas em todos os domínios, mesmo no científico, é sempre objecto de uma criação, sempre produto de sentido, isto é, como reformulação dos dados dos problemas, invenção de novas condições, suscitação de novos modos de ver, de sentir e de pensar: toda a verdade interessante se estabelece como crítica, ou “falsificação”, de outras verdades, de ideias preestabelecidas. A verdade depende sempre do sentido, não o inverso, e o sentido de uma coisa é a sua novidade, a sua singularidade, o seu interesse, a sua criação da possibilidade de novas percepções, afecções ou ideações. É esse, com efeito, o mais elevado poder do pensamento: não a da faculdade da verdade, mas a do novo, a da criação de sentido. Isto é particularmente nítido na filosofia e é isso que a aproxima muito mais da arte do que da ciência.
Eduardo Prado Coelho interpreta esta perspectiva de Deleuze como correspondendo a uma passagem do paradigma científico, funcionando por argumentos e controvérsias, a um paradigma estético definido por linhas de energia e de sentido. Com efeito para Deleuze, filosofar não é saber, mas criar.
Como todas as coisas, a filosofia não pode querer ter razão contra a sua época. Mas a filosofia pode e deve ter razão antes dela, como força criativa e de antecipação de novas possibilidades. Então, sendo o mundo um imenso dispositivo de comunicação, há uma responsabilidade que a filosofia deve assumir desde já: descomunicar, introduzir curto-circuitos na comunicação. Filosofar é ter vergonha. Vergonha dos homens, vergonha de ser homem. E essa vergonha não tem de ser exclusivamente motivada pelas grandes tragédias absurdas, guerras e barbáries, mas também por situações irrisórias, quotidianas, uma afirmação, uma conversa, uma extrema mediocridade do pensamento, o discurso de um homem do Estado, um programa de TV.
A filosofia deve servir, pelo menos, para irritar os imbecis, para envergonhar a estupidez, para fazer da estupidez algo de vergonhoso.
Segundo Deleuze, através dos modelos de racionalidade comunicativa, a filosofia nada mais faz do que colaborar, fornecendo instrumentos “validados” à tarefa social dos media. Graças a este sistema comunicacional, já não é necessário dominar os outros através da disciplina e da obediência, porque o controlo, o condicionamento do movimento livre, uma nova espécie de servidão voluntária vieram substituir a disciplina e a obediência.

Sem comentários: