Nem inconscientes, nem omniscientes, sabedores do caminho que escolhem sem saber porque escolhem esse caminho, os homens encontram-se naturalmente numa situação favorável à ilusão. Assim, imaginam que são livres e que agem de acordo com a sua vontade: certos de querer, mas sem a menor ideia sobre o que os determina a querer, são levados a acreditar que a sua vontade decide por si mesma, arbitrariamente. Do mesmo modo, embora ignorem as causas das coisas, os homens acreditam facilmente que as conhecem, porque só consideram aquilo que, para eles, aparece sob a luz. Ora, os homens percebem muito rapidamente a utilidade das coisas, a sua aptidão para satisfazer ou não os apetites humanos, e mais geralmente aquilo a que, em filosofia, se chama finalidade: a adaptação de uma coisa a um fim qualquer. Pensam saber responder à questão “porquê esta coisa?”, sob pretexto de que sabem “para que” é que a coisa em questão pode ser boa: a causa é, para eles, sobretudo a finalidade e ficam por aí.
Estas ilusões são naturais, portanto, anteriores a toda a aquisição de conhecimento. Mas o mais grave é que os conhecimentos adquiridos posteriormente pelos homens, em vez de os ajudarem a ultrapassar o preconceito inicial, correm o risco de o reforçarem até o tornar praticamente indestrutível. É o que acontece quando esses conhecimentos são adquiridos através de experiências vagas, ao sabor dos encontros entre os homens, e entre eles e a natureza que os envolve. Ao descobrir na natureza todos os tipos de coisas úteis, os homens constroem facilmente a ideia de que todas essas coisas lhes são destinadas. Se lhes acontece questionar-se sobre a origem desses favores, isso não os conduz a abandonar o preconceito da finalidade e a equacionar um outro tipo de causa. Apoiando-se sempre no pouco que sabem, conservando a sua ignorância em toda a sua plenitude, acham que seres semelhantes a eles (livres como eles), mas mais poderosos, dirigem intencionalmente a natureza para satisfação humana: os deuses ou um Deus.
O preconceito transforma-se, então, em superstição, segundo um processo que Espinosa qualifica de “delírio” (III, p. 63). A interpretação finalista da natureza alimenta-se, com efeito, de todos os desmentidos que a experiência parece infligir-lhe. Os incessantes desmentidos empíricos engordam o delírio finalista. Constatando que a natureza não lhes oferece só coisas úteis, os homens começam a imaginar um Deus justiceiro, com vontade de fazer bem aos seus fiéis e mal àqueles que lhe desobedecem. E quando a experiência lhes diz claramente que as coisas boas e as coisas más caem indiferentemente aos pés dos piedosos e dos ímpios, nem por isso renunciam ao seu sistema, e convencem-se que a justiça divina é insondável.
Esta construção delirante não é suscetível de ser destruída pelas lições da experiência que, pelo contrário, contribuem para a consolidar. Se é possível que tenha sido destruída em alguns espíritos, isso deve-se a uma mudança radical na forma de conhecer: graças à matemática, explica Espinosa, que “fez luzir diante dos homens uma outra regra de verdade” (III, p. 63). Espinosa, aqui, está a referir-se particularmente à geometria: na geometria, não nos ocupamos nunca com a finalidade das figuras, mas somente com a sua definição e a demonstração das suas propriedades. O conhecimento de Deus só pode escapar à superstição se seguir a regra geométrica: é o que Espinosa leva a cabo na primeira parte da Ética.
No entanto, será que o modo de demonstração que convém ao círculo ou ao triângulo pode convir também a Deus, ao estudo das coisas naturais e à explicação das paixões humanas? Que norma de verdade é esta que a matemática faz luzir, e em que medida é que ela é válida para todo o conhecimento? Antes de abordar estas questões, talvez seja útil voltar ao preconceito natural dos homens, e questionarmo-nos sobre em que consiste precisamente uma ideia falsa.
A Ideia Falsa
Vejamos de novo a ideia que os homens fazem geralmente a respeito daquilo a que chamam a sua liberdade, como sendo o poder de decidir e de agir sem razão ou sem ter de a apresentar. Quando um homem se crê livre neste sentido, a falsidade da ideia não reside na consciência que este homem toma da sua decisão, pois essa consciência, em si mesma, é perfeitamente verdadeira. Poderemos dizer que ela reside na ignorância que é a causa da sua decisão? Mas esta ignorância, em si mesma, não é nada: é uma simples falta de conhecimento. Numa ideia falsa, a falsidade não se encontra verdadeiramente em lado nenhum. É o que nos diz a proposição 33 da segunda parte: “Não há nas ideias nada que seja afirmado, em virtude do qual sejam consideradas falsas” (III, p. 107). Uma ideia não é falsa porque contém uma propriedade que a torne falsa. Ela é falsa porque lhe falta aquilo que seria necessário para que pudesse ser um conhecimento completo do seu objeto. No caso em apreço, o homem que se crê livre só tem uma representação incompleta do seu desejo.
Toda a ideia falsa, sem exceção, é assim, segundo Espinosa, uma ideia mutilada, inadequada, uma simples privação de conhecimento. Não uma qualquer privação de conhecimento, mas uma forma específica de privação que nos dá a representação de um objeto recusando-nos a representação da sua causa, impedindo que o objeto seja conhecido por nós como deveria ser. As nossas ideias falsas estão em nós “como consequências sem premissas”, para utilizar uma expressão de Espinosa na demonstração da proposição 28 da segunda parte da Ética (III, p. 104).
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