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Uma troika em seis mitos
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Antes de conhecermos, pela voz dos senhores da troika, a parte má do acordo assinado pelo governo (deixo a análise das medidas para quando as conhecermos em pormenor - há coisas que exigem tempo e ponderação), vale a pena desmistificar seis mitos sobre a intervenção externa: que ela só acontece porque o governo nos trouxe até aqui; que a troika está cá para nos ajudar; que, tendo governantes incompetentes, devemos aceitar que seja ela a governar-nos; que todos temos de nos sacrificar; que temos a obrigação de evitar a instabilidade social; e que o nosso grande problema é ter Estado a mais. 1 - A intervenção externa acontece porque o governo nos trouxe até aqui. Antes de mais, seria necessário perceber o que é o "aqui". O que Portugal está a viver, já viveu a Grécia e a Irlanda e tudo indica que poderá vir a ser experimentado por Espanha e talvez pela Itália e pela Bélgica. Cada um destes países tem apenas uma coisa em comum: fazer parte do euro. Esta crise resulta de uma crise internacional e de um ataque especulativo ao euro, depois das enormes perdas do setor financeiro no imobiliário. Esse ataque acontece porque o euro é uma moeda forte presa por arames institucionais. Ver um gigante sem defesas é demasiado tentador. Porque foram estes países e não outros? Porque são as presas doentes de uma manada em fuga. Uma manada composta por Estados egoístas e sem solidariedade entre si. O euro é disfuncional e nós somos o elo mais fraco. E porque são estes os estados mais frágeis? Por razões diferentes. A Grécia por causa da sua astronómica dívida pública, a Irlanda pelo colapso da sua banca e do seu outrora tão elogiado modelo de crescimento económico, Portugal por causa da sua dívida externa - sobretudo privada. Tendo os três países em comum o facto de, por terem menos peso económico e político, serem mais dispensáveis. A dívida externa portuguesa tem responsabilidades antigas. Resumiria, de forma um pouco simplificada, em cinco causas: uma moeda forte para uma economia fraca; a destruição de quase todo o tecido produtivo de bens transacionáveis e a aposta em bens e serviços não exportáveis, mais consentâneos com os hábitos de uma elite económica conservadora e rentista; um mercado de arrendamento anémico com excesso de endividamento para compra de casa, que foi promovido pelo Estado; as parcerias público-privado, que ajudaram ao endividamento da banca e do Estado; e salários baixos que impedem que se acrescente valor ao que se produz e que dificultam a poupança. Tudo isto impediu o crescimento e a poupança e promoveu o endividamento privado. Ou seja, os nossos problemas são antigos. Remontam pelo menos à entrada de Portugal na então CEE, era Cavaco Silva primeiro-ministro. Continuaram e aprofundaram-se com António Guterres, Durão Barroso e José Sócrates. Sim, este governo deixou-nos vulneráveis. Mas não foi apenas este. Foram pelo menos todos os governos desde meados dos anos 80. 2 - A troika está cá para nos ajudar. FMI, BCE e UE estão a emprestar-nos dinheiro a juros altos. Não nos estão a fazer favor nenhum. A urgência do empréstimo resulta de um cerco à nossa dívida soberana e da descapitalização da nossa banca. Temos culpas próprias, como já o disse, mas o aperto final deveu-se a juros especulativos que tornaram o pagamento da dívida e o financiamento nos mercados virtualmente impossíveis. Na prática, estamos a trabalhar para pagar juros de assalto, não para amortizar a dívida. Não vale a pena dizer que se não queremos depender dos outros não pedimos emprestado. Está por inventar a primeira empresa ou Estado que não recorre ao crédito. Só quem não faz a menor ideia do que está a dizer - ou está de má-fé - pode afirmar tamanho disparate. Já o problema estrutural - económico, social e até político - que é o endividamento das famílias tem razões bem mais profundas. Razões que todas as medidas que se têm anunciado só irão aprofundar. Porque menos Estado social com mais contração salarial corresponde a mais endividamento das famílias para garantir serviços essenciais, como a educação, a saúde ou a habitação. Esse tem sido, aliás, um dos segredos do capitalismo financeiro por esse mundo fora: pressionar os Estados a deixar de garantir o que é fundamental para oferecer com juros aquilo que os impostos de todos garantiam. Na verdade, Portugal foi obrigado a pedir a intervenção externa. E o objetivo desta imposição é fácil de perceber: os credores queriam um cobrador a governar o País. Percebendo que esta espiral seria insustentável, é necessário sacar tudo o que há a sacar antes que se faça a renegociação da dívida. E que ela, sendo inevitável como é, aconteça o mais tarde possível. Basicamente, quando já não houver nada para levar e a banca europeia esteja numa posição mais robusta que lhe permita lidar sem problemas com as inevitáveis perdas. Conclusão: a troika não está aqui para ajudar Portugal a reerguer-se. Está cá para garantir que ficamos algum tempo ligados à máquina, assinando o nosso testamento antes de nos finarmos. Se cá estivesse para nos ajudar, negociava políticas de crescimento, as únicas que nos podem tirar deste buraco, e não políticas recessivas, que piorarão ainda mais a nossa situação. Se estivesse aqui para nos ajudar, emprestava dinheiro a juros aceitáveis, e não a juros especulativos que garantem lucro a instituições de que fazemos parte. Se estivesse aqui para nos ajudar, estaríamos a discutir a inevitável renegociação da dívida a tempo dela ter alguma eficácia. 3 - Devemos aceitar que a troika nos governe, porque não nos sabemos governar. Para além da falta de patriotismo e do desprezo pela democracia que este argumento transporta, ele é infantil. A troika responde perante os países com mais poder. E é neles que estão os nossos principais credores. É por isso que o BCE e a União têm propostas mais violentas do que o FMI. Porque neles se faz sentir de forma mais evidente o poder da Alemanha. Ninguém, no seu perfeito juízo, se deixa governar pelos seus credores sem luta. Os interesses que a troika defende e que o Estado português deve defender são opostos. Para Portugal, a renegociação da dívida é urgente - já devia ter acontecido. Para a troika, deve acontecer o mais tarde possível. As políticas que a troika vai impor atirarão o País para uma crise profunda, apenas para garantir o pagamento do máximo da dívida possível o mais depressa possível. Portugal não tem nenhuma vantagem em aplicá-las e se o fizer apenas estará a ceder a uma pressão que resulta da sua situação de necessidade. A troika não é nossa aliada. Por piores que sejam os nossos governantes, esses, ao menos, podemos eleger ou fazer cair. Dependem de nós. 4 - Todos temos de nos sacrificar para tirar o País do buraco. Esta ideia resulta de dois equívocos: que todos somos responsáveis por o que está a suceder e que todos estamos em condições de fazer sacrifícios. Com um salário médio de 750 euros e vinte por cento da população a viver abaixo do limiar de pobreza é insultuoso dizer que os portugueses vivem acima das suas possibilidades. A maioria dos portugueses faz sacrifícios desde que nasceu e não tem margem para fazer mais. Com ou sem troika, são necessários alguns sacrifícios. Mas não de todos. Apenas dos que nunca os fizeram. Não esquecer este dado fundamental: Portugal é o País mais desigual da Europa. É no combate a essa desigualdade que estão as soluções para a nossa economia. Se quando havia dinheiro ele não foi distribuído com justiça, que os sacrifícios o sejam, agora que o dinheiro falta. 5 - A instabilidade social só vai piorar a nossa situação. Aceitemos este facto: em estado de necessidade, quem tem mais poder tentará fugir ao pagamento da fatura da crise. Sempre assim foi. Como nestas coisas a ética pouco ou nada determina, é a relação de forças entre os vários intervenientes que determinará a forma como os sacrifícios serão distribuídos. Ao sabermos que parte do dinheiro que vem - pago por todos nós a juros especulativos - irá para a recapitulação da banca, não é difícil prever quem ganhará e quem perderá com este empréstimo. Quem, mais uma vez, se sacrificará. Quem, mais uma vez, se safará. Como a democracia estará, nos próximos anos, suspensa, os mais pobres perderam o único poder que tinham: o voto. Já nos foi explicado que, votem em quem votarem, as decisões serão sempre as mesmas. A não ser, claro, que se organizem em torno de uma alternativa política. Que ela apareça e que eles não tenham medo de a apoiar. Resta o outro instrumento: resistir para obrigar a uma distribuição mais justa dos sacrifícios. Em momentos como estes, o poder só compreende a linguagem da força (pacífica, claro está). O discurso mainstream instalou o medo como estado de espírito nacional. Com as famílias endividadas, o desemprego a crescer todos os dias e a precariedade dos vínculos laborais a dominar o nosso mercado de trabalho, paralizar os cidadãos e obrigá-los a aceitar para si todos os sacrifícios é tarefa fácil. Virar os cidadãos contra os que, por terem uma situação laboral mais segura ou apenas por não se conformarem, teimam em resistir vai ser o próximo passo. Convencer todos que quem resiste é irresponsável e levará o País à desgraça, para mais facilmente obrigar todos a aceitar em silêncio a institucionalização política da injustiça social, será o discurso dominante dos próximos anos. 6 - Temos Estado a mais e esse é o nosso problema. Aquilo a que assistimos é à maior transferência de recursos públicos para cofres privados, num processo que vem de longe e que chega agora à sua fase terminal. Assistimos, em todos os países ocidentais, a um assalto ao Estado Social. O seu desmembramento não é uma inevitabilidade económica. É uma escolha política de quem desistiu de ser o governo do povo, pelo povo e para povo. Não nego que o nosso Estado é mal gerido. E essa é a nossa grande responsabilidade coletiva: escolhemos mal quem gere o que nos pertence a todos. Mas a destruição do Estado Social não resolverá os nossos problemas. O fim do Serviço Nacional de Saúde, da Escola Pública, da intervenção do Estado democrático na economia, de uma segurança social universal pública e de leis laborais que garantam o mínimo de segurança aos trabalhadores não libertará "as forças da sociedade civil" do jugo do Estado. Apenas garantirá que tudo o que os cidadãos europeus conquistaram nos últimos sessenta anos - e que os portugueses conquistaram nos últimos quarenta anos - será perdido. A nossa saúde, a nossa educação, a nossa velhice e os nossos direitos viverão sob o jugo do lucro. Na realidade, a questão não é, nunca foi, nunca será, se temos Estado a mais ou a menos. Note-se que no mesmo momento que se emagrece o Estado nacionalizam-se bancos. Privatizam-se os recursos, socializam-se os prejuízos. Nunca o Estado exigiu tanto dos cidadãos, nunca os mais afortunados dependeram tanto dele para acumular ganhos. Aliás, grande parte dos erros do nosso modelo de desenvolvimento resultam disso mesmo: uma elite económica parasitária do Estado e um Estado subserviente a uma elite económica que vive mal com a concorrência e com o risco. A questão é, sempre foi, sempre será, para quem trabalha o Estado. Para onde vão os nossos recursos. O que nos é proposto agora não é o emagrecimento do Estado. É o nosso emagrecimento para que o Estado transfira o nosso dinheiro para os que nunca se sacrificam em momentos de crise. E a pergunta que resta é simples: vamos deixar que o medo nos roube o que por direito nos pertence? |
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