AS ESQUERDAS, A CRISE E A TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO (dossiê)
Onde está a esquerda?
por
Numa altura em que o capitalismo atravessa a
sua mais grave crise desde a que ocorreu na década de 1930, os
principais partidos de esquerda parecem mudos, embaraçados. Prometem,
quando muito, remendar o sistema. Mais frequentemente, procuram
comprovar o seu sentido de responsabilidade recomendando, também eles,
uma purga liberal. Durante quanto tempo poderá durar este jogo político
aferrolhado, face ao crescimento da cólera social?
Os americanos que se manifestam contra Wall
Street protestam também contra os intermediários de Wall Street no
Partido Democrata e na Casa Branca. Ignoram sem dúvida que os
socialistas franceses continuam a invocar o exemplo de Barack Obama.
Segundo estes, Obama, ao invés de Nicolas Sarkozy, terá sabido agir
contra os bancos. Será isto apenas um equívoco? Quem não quer (ou não
pode) confrontar os pilares da ordem liberal (financeirização,
globalização dos fluxos de capitais e mercadorias) sente-se tentado a
personalizar a catástrofe, a imputar a crise do capitalismo aos erros de
concepção ou de gestão do adversário interno. Em França, a culpa
incumbirá a «Sarkozy», em Itália a «Berlusconi», na Alemanha a «Merkel».
Muito bem. E noutras paragens?
Noutras paragens, e não só nos Estados Unidos, os dirigentes políticos que a esquerda moderada durante muito tempo apresentou como referências estão também a enfrentar protestos indignados. Na Grécia, Georges Papandreu, presidente da Internacional Socialista, põe em aplicação uma draconiana política de austeridade que combina privatizações maciças, supressões de empregos na função pública e abandono da soberania do país, em matéria económica e social, a uma «troika» liberal [1]. Os governos de Espanha, de Portugal ou da Eslovénia também fazem lembrar que a palavra esquerda se encontra tão desbaratada que deixou de ser associada a um conteúdo político particular.
Um dos melhores procuradores do impasse da social-democracia europeia é Benoît Hamon, actual porta-voz… do Partido Socialista francês (PS). «Na União Europeia», sublinha ele no seu último livro, «o Partido Socialista Europeu (PSE) está historicamente associado, pelo compromisso que o liga à democracia cristã, à estratégia de liberalização do mercado interno e respectivas consequências nos direitos sociais e nos serviços públicos. Foram governos socialistas que negociaram os planos de austeridade exigidos pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional. Em Espanha, em Portugal e na Grécia, obviamente, o alvo da contestação dos planos de austeridade são o FMI e a Comissão Europeia, mas também os governos socialistas nacionais. (…) Uma parte da esquerda europeia, à semelhança da direita europeia, deixou de pôr em causa que é preciso sacrificar o Estado-providência para restabelecer o equilíbrio orçamental e agradar aos mercados. (…) Fomos em vários lugares do globo um obstáculo à marcha do progresso. Não me resigno a isso» [2].
Outros, em contrapartida, consideram esta transformação irreversível, por pensarem que a sua origem reside no emburguesamento dos socialistas europeus. O Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro, embora ele próprio seja moderado, estima que a esquerda latino-americana deve revezar a do Velho Continente, muito capitalista, muito americanizada, e por isso cada vez menos legítima quando pretende defender os interesses populares: «Está actualmente a ocorrer uma deslocação geográfica da direcção ideológica da esquerda no mundo», assinalava em Setembro passado um documento preparatório do Congresso do PT. «Neste contexto, a América do Sul distingue-se (…) A esquerda dos países europeus, que no século XIX tanto influenciou a esquerda no mundo, não conseguiu dar respostas adequadas à crise e parece capitular perante a dominação do neoliberalismo.» [3] Talvez o declínio da Europa signifique também o crepúsculo da influência ideológica exercida pelo continente onde nasceram o sindicalismo, o socialismo e o comunismo – e que parece, mais do que outros, resignar-se ao seu apagamento.
Estará então perdido o desafio? Podem os eleitores e militantes de esquerda que aderem de preferência a conteúdos, mais do que a rótulos, esperar combater a direita, inclusive nos países ocidentais, com camaradas conquistados pelo liberalismo mas que continuam a ser eleitoralmente hegemónicos? Com efeito, o bailado tornou-se um ritual: durante as campanhas eleitorais, a esquerda reformista distingue-se dos conservadores por mero efeito de óptica. E depois, quando surge a ocasião, governa como os seus adversários, não perturba a ordem económica e protege as pratas do palácio.
A transformação social cuja necessidade, ou mesmo urgência, é proclamada pela maior parte dos candidatos de esquerda ao exercício de responsabilidades, requer que estes candidatos vejam nisso mais do que retórica eleitoral. Mas também… que eles acedam ao poder. É neste ponto que a esquerda moderada vem dar lições aos «radicais» e outros «indignados». Porque ela não fica à espera que aconteça o «grande dia», nem tão-pouco sonha aninhar-se numa contra-sociedade isolada das impurezas do mundo e povoada de seres excepcionais. Pegando nas palavras de François Hollande, proferidas há cinco anos, ela não pretende «bloquear em vez de fazer. Travar, em vez de agir. Resistir, em vez de conquistar». E considera que «não vencer a direita é mantê-la, e portanto optar por ela» [4]. Em contrapartida, a esquerda radical preferiria, segundo o mesmo Hollande, «cavalgar qualquer raiva» a fazer «a escolha do realismo» [5].
A esquerda governamental, é esse o seu grande trunfo, dispõe «aqui e agora» de forças eleitorais e de quadros impacientes que lhe permitiriam substituir a direita com prontidão. «Vencer a direita», todavia, não faz as vezes de um programa ou de uma perspectiva. Ganhas as eleições, as estruturas vigentes – nacionais, europeias, internacionais – podem impedir a vontade de mudança que se tenha exprimido durante a campanha. Nos Estados Unidos, Barack Obama pôde assim sustentar que certos lóbis industriais e a obstrução parlamentar dos republicanos minaram o voluntarismo e o optimismo («Yes, we can») que haviam sido ratificados por uma ampla maioria popular.
Noutras paragens, alguns governos de esquerda desculparam a sua prudência ou pusilanimidade invocando «constrangimentos » ou uma «herança» (falta de competitividade internacional do sector produtivo, dimensão da dívida, etc.) que terão limitado a sua margem de manobra. «A nossa vida pública encontra-se dominada por uma estranha dicotomia», analisava Lionel Jospin já em 1992. «Por um lado, censura-se o poder [socialista] por causa do desemprego, do mal dos subúrbios, das frustrações sociais, do extremismo de direita, da desesperança da esquerda. Por outro lado, intimam-no a não renunciar a uma política económica financeira que torna muito difícil o tratamento daquilo que se denuncia» [6]. Vinte anos depois, a formulação desta contradição continua actual.
Sempre que expõem os seus argumentos a favor do «voto útil», os socialistas lembram que uma derrota eleitoral da esquerda desencadeia a aplicação pela direita de um arsenal de «reformas liberais» – privatizações, redução dos direitos sindicais, amputação das receitas públicas –, reformas essas que irão destruir os eventuais instrumentos de uma outra política. Mas essa derrota também pode ter virtudes pedagógicas. Benoît Hamon admite, por exemplo, que na Alemanha «o resultado das eleições legislativas [de Setembro de 2009], em que o SPD teve o seu pior resultado [23% dos votos] desde há um século, convenceu a direcção deste partido a enveredar por uma necessária mudança de orientação» [7].
Sair desta armadilha requer que se estabeleça uma lista das condições prévias que sancionem a globalização financeira. Mas surge desde logo um problema: tendo em conta a abundância e a sofisticação dos dispositivos que desde há trinta anos inseriram o desenvolvimento económico dos Estados na especulação capitalista, até mesmo uma bonacheirona política de reformas (menor injustiça fiscal, progressão moderada do poder de compra dos salários, contenção do orçamento do ensino, etc.) impõe daqui para a frente um número significativo de rupturas. Ruptura com a actual ordem europeia, mas também com as políticas a que os socialistas se associaram [9].
Se não se puser em causa, por exemplo, a «independência» do Banco Central Europeu (cuja política monetária os tratados europeus garantiram que ficaria fora de qualquer controlo democrático), se não houver uma flexibilização do pacto de estabilidade e crescimento (que em períodos de crise asfixia qualquer estratégia voluntarista de luta contra o desemprego), se não se denunciar a aliança dos liberais com os social-democratas no Parlamento Europeu (que levou estes últimos a apoiar a candidatura à direcção do BCE de um antigo banqueiro do Goldman Sachs, Mario Draghi), e isto sem falar do «comércio livre» (a doutrina da Comissão Europeia), da auditoria à dívida pública (para não reembolsar os especuladores que apostaram contra os países mais fracos da Zona Euro); se não houver tudo isto, o desafio iniciar-se-á em más condições.
Mais: começará antecipadamente perdido. Com efeito, nada permite acreditar que François Hollande em França, Sigmar Gabriel na Alemanha ou Edward Miliband no Reino Unido possam vir a ter êxito onde já falharam Barack Obama, José Luis Zapatero e Papandreu. Imaginar que «uma aliança que faça da união política da Europa o âmago do seu projecto» assegure, como espera Massimo d’Alema em Itália, «o renascimento do progressismo» [10], é coisa que mais parece (na melhor das hipóteses) um sonho acordado. No estado actual das forças políticas e sociais, uma Europa federal só poderá consolidar ainda mais os dispositivos liberais que já são asfixiantes e desapossar o povo, um pouco mais, da sua soberania, entregando o poder a opacas instâncias tecnocráticas. Não são a moeda e o comércio domínios já «federalizados»?
Mas enquanto os partidos da esquerda moderada continuarem a representar a maioria do eleitorado progressista – quer por adesão ao seu projecto, quer pelo sentimento de que este constitui a única perspectiva para uma próxima alternância –, as formações políticas mais radicais (ou os ecologistas) ficam condenadas ao papel de figurantes, de força complementar ou de necessários inúteis. Entre 1981 e 1984, o Partido Comunista Francês (PCF), mesmo com 15% dos votos, quarenta e quatro deputados, quatro ministros e uma organização com dezenas de milhares de militantes, nunca influiu na definição das políticas económicas e financeiras de François Mitterrand. O naufrágio em Itália da Refundação Comunista, prisioneira da sua aliança com partidos de centro-esquerda, não é um precedente mais exaltante. Tratava-se nessa altura de evitar a todo o custo o regresso ao poder de Silvio Berlusconi – que apesar disso aconteceu, embora mais tarde.
A história deste período, todavia, não se resume à pressão irresistível exercida por um movimento social sobre partidos de esquerda tímidos ou intimidados. Foi de facto a vitória eleitoral da Frente Popular que soltou um movimento de revolta social, dando aos operários o sentimento de que não teriam pela frente, como antes, o muro da repressão policial e patronal. Alentados, sabiam também que nada lhes seria dado pelos partidos nos quais tinham votado, sem que os obrigassem a isso. Daí essa dialéctica vitoriosa – mas muito rara – entre eleições e mobilização, mesas de voto e fábricas. No estado actual das coisas, o governo de esquerda que não se veja perante uma pressão equivalente encerrar-se-á de imediato numa conversa à porta fechada com a tecnocracia que perdeu o hábito de fazer outra coisa que não seja liberalismo. A sua única obsessão consistirá em seduzir agências de notação, a respeito das quais toda a gente sabe que elas «degradarão» de imediato qualquer país que encete uma verdadeira política de esquerda.
Em que ficamos: audácia ou atolamento? Os riscos da audácia – isolamento, inflação, degradação – são-nos repisados de manhã à noite. E os do atolamento? Ao analisar a situação na Europa da década de 1930, o historiador Karl Polanyi lembrou que «o impasse em que se meteu o capitalismo liberal» resultou nessa altura, em vários países, numa «reforma da economia de mercado levada a cabo com base na destruição de todas as instituições democráticas» [11] Desde já, mostra-se alarmado um socialista tão moderado como Michel Rocard, sublinhando que o endurecimento das condições impostas aos gregos poderá provocar a suspensão da democracia neste país. «No estado de exasperação em que este povo se vai encontrar», escrevia Rocard no mês passado, «é duvidoso que qualquer governo grego possa manter-se sem o apoio do exército. Esta triste reflexão é sem dúvida válida para Portugal e para a Irlanda, ou para outros países maiores. Até onde iremos?» [12] …
Apesar de ser apoiada por toda uma quinquilharia institucional e mediática, a república do centro vacila. Começou a corrida de velocidade que opõe o endurecimento do autoritarismo liberal e o início de uma ruptura com o capitalismo. Esta última parece estar ainda muito longe. Mas quando os povos deixam de acreditar num jogo político cujos dados estão viciados, quando observam que os governos se privaram da sua própria soberania, quando se obstinam em reclamar que se controlem os bancos, quando se mobilizam sem saber aonde os vai conduzir a sua exasperação, isso significa que a esquerda ainda está viva.
sexta-feira 4 de Novembro de 2011Noutras paragens, e não só nos Estados Unidos, os dirigentes políticos que a esquerda moderada durante muito tempo apresentou como referências estão também a enfrentar protestos indignados. Na Grécia, Georges Papandreu, presidente da Internacional Socialista, põe em aplicação uma draconiana política de austeridade que combina privatizações maciças, supressões de empregos na função pública e abandono da soberania do país, em matéria económica e social, a uma «troika» liberal [1]. Os governos de Espanha, de Portugal ou da Eslovénia também fazem lembrar que a palavra esquerda se encontra tão desbaratada que deixou de ser associada a um conteúdo político particular.
Um dos melhores procuradores do impasse da social-democracia europeia é Benoît Hamon, actual porta-voz… do Partido Socialista francês (PS). «Na União Europeia», sublinha ele no seu último livro, «o Partido Socialista Europeu (PSE) está historicamente associado, pelo compromisso que o liga à democracia cristã, à estratégia de liberalização do mercado interno e respectivas consequências nos direitos sociais e nos serviços públicos. Foram governos socialistas que negociaram os planos de austeridade exigidos pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional. Em Espanha, em Portugal e na Grécia, obviamente, o alvo da contestação dos planos de austeridade são o FMI e a Comissão Europeia, mas também os governos socialistas nacionais. (…) Uma parte da esquerda europeia, à semelhança da direita europeia, deixou de pôr em causa que é preciso sacrificar o Estado-providência para restabelecer o equilíbrio orçamental e agradar aos mercados. (…) Fomos em vários lugares do globo um obstáculo à marcha do progresso. Não me resigno a isso» [2].
Outros, em contrapartida, consideram esta transformação irreversível, por pensarem que a sua origem reside no emburguesamento dos socialistas europeus. O Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro, embora ele próprio seja moderado, estima que a esquerda latino-americana deve revezar a do Velho Continente, muito capitalista, muito americanizada, e por isso cada vez menos legítima quando pretende defender os interesses populares: «Está actualmente a ocorrer uma deslocação geográfica da direcção ideológica da esquerda no mundo», assinalava em Setembro passado um documento preparatório do Congresso do PT. «Neste contexto, a América do Sul distingue-se (…) A esquerda dos países europeus, que no século XIX tanto influenciou a esquerda no mundo, não conseguiu dar respostas adequadas à crise e parece capitular perante a dominação do neoliberalismo.» [3] Talvez o declínio da Europa signifique também o crepúsculo da influência ideológica exercida pelo continente onde nasceram o sindicalismo, o socialismo e o comunismo – e que parece, mais do que outros, resignar-se ao seu apagamento.
Estará então perdido o desafio? Podem os eleitores e militantes de esquerda que aderem de preferência a conteúdos, mais do que a rótulos, esperar combater a direita, inclusive nos países ocidentais, com camaradas conquistados pelo liberalismo mas que continuam a ser eleitoralmente hegemónicos? Com efeito, o bailado tornou-se um ritual: durante as campanhas eleitorais, a esquerda reformista distingue-se dos conservadores por mero efeito de óptica. E depois, quando surge a ocasião, governa como os seus adversários, não perturba a ordem económica e protege as pratas do palácio.
A transformação social cuja necessidade, ou mesmo urgência, é proclamada pela maior parte dos candidatos de esquerda ao exercício de responsabilidades, requer que estes candidatos vejam nisso mais do que retórica eleitoral. Mas também… que eles acedam ao poder. É neste ponto que a esquerda moderada vem dar lições aos «radicais» e outros «indignados». Porque ela não fica à espera que aconteça o «grande dia», nem tão-pouco sonha aninhar-se numa contra-sociedade isolada das impurezas do mundo e povoada de seres excepcionais. Pegando nas palavras de François Hollande, proferidas há cinco anos, ela não pretende «bloquear em vez de fazer. Travar, em vez de agir. Resistir, em vez de conquistar». E considera que «não vencer a direita é mantê-la, e portanto optar por ela» [4]. Em contrapartida, a esquerda radical preferiria, segundo o mesmo Hollande, «cavalgar qualquer raiva» a fazer «a escolha do realismo» [5].
A esquerda governamental, é esse o seu grande trunfo, dispõe «aqui e agora» de forças eleitorais e de quadros impacientes que lhe permitiriam substituir a direita com prontidão. «Vencer a direita», todavia, não faz as vezes de um programa ou de uma perspectiva. Ganhas as eleições, as estruturas vigentes – nacionais, europeias, internacionais – podem impedir a vontade de mudança que se tenha exprimido durante a campanha. Nos Estados Unidos, Barack Obama pôde assim sustentar que certos lóbis industriais e a obstrução parlamentar dos republicanos minaram o voluntarismo e o optimismo («Yes, we can») que haviam sido ratificados por uma ampla maioria popular.
Noutras paragens, alguns governos de esquerda desculparam a sua prudência ou pusilanimidade invocando «constrangimentos » ou uma «herança» (falta de competitividade internacional do sector produtivo, dimensão da dívida, etc.) que terão limitado a sua margem de manobra. «A nossa vida pública encontra-se dominada por uma estranha dicotomia», analisava Lionel Jospin já em 1992. «Por um lado, censura-se o poder [socialista] por causa do desemprego, do mal dos subúrbios, das frustrações sociais, do extremismo de direita, da desesperança da esquerda. Por outro lado, intimam-no a não renunciar a uma política económica financeira que torna muito difícil o tratamento daquilo que se denuncia» [6]. Vinte anos depois, a formulação desta contradição continua actual.
Sempre que expõem os seus argumentos a favor do «voto útil», os socialistas lembram que uma derrota eleitoral da esquerda desencadeia a aplicação pela direita de um arsenal de «reformas liberais» – privatizações, redução dos direitos sindicais, amputação das receitas públicas –, reformas essas que irão destruir os eventuais instrumentos de uma outra política. Mas essa derrota também pode ter virtudes pedagógicas. Benoît Hamon admite, por exemplo, que na Alemanha «o resultado das eleições legislativas [de Setembro de 2009], em que o SPD teve o seu pior resultado [23% dos votos] desde há um século, convenceu a direcção deste partido a enveredar por uma necessária mudança de orientação» [7].
Os socialistas gregos felicitam-se por ter agido mais depressa do que Margaret Thatcher…
Um «restabelecimento doutrinário» de amplitude igualmente modesta ocorreu em França após a derrota legislativa dos socialistas em 1993 e no Reino Unido após a vitória do Partido Conservador em 2010. E constatar-se-á em breve, sem dúvida, uma hipotética situação idêntica em Espanha e na Grécia, por parecer muito improvável que os actuais governantes socialistas destes países atribuam a sua próxima derrota a uma política exageradamente revolucionária… Para defender a causa de Papandreu, a deputada socialista grega Elena Panarítis chegou mesmo a recorrer a uma referência inesperada: «Margaret Thatcher precisou de onze anos para levar a cabo as suas reformas num país que tinha problemas estruturais menos importantes. O nosso programa foi posto em aplicação há apenas catorze meses!» [8]… «Papandreu é melhor do que Thatcher!», em resumo.Sair desta armadilha requer que se estabeleça uma lista das condições prévias que sancionem a globalização financeira. Mas surge desde logo um problema: tendo em conta a abundância e a sofisticação dos dispositivos que desde há trinta anos inseriram o desenvolvimento económico dos Estados na especulação capitalista, até mesmo uma bonacheirona política de reformas (menor injustiça fiscal, progressão moderada do poder de compra dos salários, contenção do orçamento do ensino, etc.) impõe daqui para a frente um número significativo de rupturas. Ruptura com a actual ordem europeia, mas também com as políticas a que os socialistas se associaram [9].
Se não se puser em causa, por exemplo, a «independência» do Banco Central Europeu (cuja política monetária os tratados europeus garantiram que ficaria fora de qualquer controlo democrático), se não houver uma flexibilização do pacto de estabilidade e crescimento (que em períodos de crise asfixia qualquer estratégia voluntarista de luta contra o desemprego), se não se denunciar a aliança dos liberais com os social-democratas no Parlamento Europeu (que levou estes últimos a apoiar a candidatura à direcção do BCE de um antigo banqueiro do Goldman Sachs, Mario Draghi), e isto sem falar do «comércio livre» (a doutrina da Comissão Europeia), da auditoria à dívida pública (para não reembolsar os especuladores que apostaram contra os países mais fracos da Zona Euro); se não houver tudo isto, o desafio iniciar-se-á em más condições.
Mais: começará antecipadamente perdido. Com efeito, nada permite acreditar que François Hollande em França, Sigmar Gabriel na Alemanha ou Edward Miliband no Reino Unido possam vir a ter êxito onde já falharam Barack Obama, José Luis Zapatero e Papandreu. Imaginar que «uma aliança que faça da união política da Europa o âmago do seu projecto» assegure, como espera Massimo d’Alema em Itália, «o renascimento do progressismo» [10], é coisa que mais parece (na melhor das hipóteses) um sonho acordado. No estado actual das forças políticas e sociais, uma Europa federal só poderá consolidar ainda mais os dispositivos liberais que já são asfixiantes e desapossar o povo, um pouco mais, da sua soberania, entregando o poder a opacas instâncias tecnocráticas. Não são a moeda e o comércio domínios já «federalizados»?
Mas enquanto os partidos da esquerda moderada continuarem a representar a maioria do eleitorado progressista – quer por adesão ao seu projecto, quer pelo sentimento de que este constitui a única perspectiva para uma próxima alternância –, as formações políticas mais radicais (ou os ecologistas) ficam condenadas ao papel de figurantes, de força complementar ou de necessários inúteis. Entre 1981 e 1984, o Partido Comunista Francês (PCF), mesmo com 15% dos votos, quarenta e quatro deputados, quatro ministros e uma organização com dezenas de milhares de militantes, nunca influiu na definição das políticas económicas e financeiras de François Mitterrand. O naufrágio em Itália da Refundação Comunista, prisioneira da sua aliança com partidos de centro-esquerda, não é um precedente mais exaltante. Tratava-se nessa altura de evitar a todo o custo o regresso ao poder de Silvio Berlusconi – que apesar disso aconteceu, embora mais tarde.
Como uma estrela morta, a república do centro perde a última luz
A Frente de Esquerda (de que faz parte o PCF) espera contradizer tais augúrios. Fazendo pressão sobre o PS, esta frente espera que ele saia dos «seus atavismos». À primeira vista, a aposta parece ilusória, senão desesperada. Porém, se ela incluir outros dados além da relação de forças eleitoral e dos constrangimentos institucionais, poderá rever-se utilmente em precedentes históricos. Nenhuma das grandes conquistas sociais da Frente Popular (férias pagas, semana de trabalho de quarenta horas, etc.) estava inscrita no programa (muito moderado) da coligação que saiu vitoriosa em Abril-Maio de 1936; na realidade, foi o movimento grevista de Junho que as impôs ao patronato francês e à direita.A história deste período, todavia, não se resume à pressão irresistível exercida por um movimento social sobre partidos de esquerda tímidos ou intimidados. Foi de facto a vitória eleitoral da Frente Popular que soltou um movimento de revolta social, dando aos operários o sentimento de que não teriam pela frente, como antes, o muro da repressão policial e patronal. Alentados, sabiam também que nada lhes seria dado pelos partidos nos quais tinham votado, sem que os obrigassem a isso. Daí essa dialéctica vitoriosa – mas muito rara – entre eleições e mobilização, mesas de voto e fábricas. No estado actual das coisas, o governo de esquerda que não se veja perante uma pressão equivalente encerrar-se-á de imediato numa conversa à porta fechada com a tecnocracia que perdeu o hábito de fazer outra coisa que não seja liberalismo. A sua única obsessão consistirá em seduzir agências de notação, a respeito das quais toda a gente sabe que elas «degradarão» de imediato qualquer país que encete uma verdadeira política de esquerda.
Em que ficamos: audácia ou atolamento? Os riscos da audácia – isolamento, inflação, degradação – são-nos repisados de manhã à noite. E os do atolamento? Ao analisar a situação na Europa da década de 1930, o historiador Karl Polanyi lembrou que «o impasse em que se meteu o capitalismo liberal» resultou nessa altura, em vários países, numa «reforma da economia de mercado levada a cabo com base na destruição de todas as instituições democráticas» [11] Desde já, mostra-se alarmado um socialista tão moderado como Michel Rocard, sublinhando que o endurecimento das condições impostas aos gregos poderá provocar a suspensão da democracia neste país. «No estado de exasperação em que este povo se vai encontrar», escrevia Rocard no mês passado, «é duvidoso que qualquer governo grego possa manter-se sem o apoio do exército. Esta triste reflexão é sem dúvida válida para Portugal e para a Irlanda, ou para outros países maiores. Até onde iremos?» [12] …
Apesar de ser apoiada por toda uma quinquilharia institucional e mediática, a república do centro vacila. Começou a corrida de velocidade que opõe o endurecimento do autoritarismo liberal e o início de uma ruptura com o capitalismo. Esta última parece estar ainda muito longe. Mas quando os povos deixam de acreditar num jogo político cujos dados estão viciados, quando observam que os governos se privaram da sua própria soberania, quando se obstinam em reclamar que se controlem os bancos, quando se mobilizam sem saber aonde os vai conduzir a sua exasperação, isso significa que a esquerda ainda está viva.
Notas
[1] Composta pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).[2] Benoît Hamon, Tourner la page. Reprenons la marche du progrès social, Flammarion, Paris, 2011, pp. 14-19.
[3] Agência France Press, 4 de Setembro de 2011.
[4] François Hollande, Devoirs de vérité, Stock, Paris, 2006, pp. 91 e 206.
[5] Ibidem, pp. 51 e 43.
[6] Lionel Jospin, «Reconstruire la gauche», Le Monde, 11 de Abril de 1992.
[7] Benoît Hamon, op. cit., p. 180.
[8] Citado por Alain Salles, «L’odyssée de Papandréou », Le Monde, 16 de Setembro de 2011.
[9] Ler «Uma rejeição da esquerda em nome da Europa», Le Monde diplomatique − edição portuguesa, Junho de 2005.
[10] Massimo d’Alema, «Le succès de la gauche au Danemark annonce un renouveau européen», Le Monde, 21 de Setembro de 2001.
[11] Karl Polanyi, La Grande transformation, pp. entre 305. [Em português: A Grande Transformação – as origens de nossa época, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1980.].
[12] Michel Rocard, «Un système bancaire à repenser », Le Monde, 4 de Outubro de 2011.
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