terça-feira, 22 de abril de 2008

MARAVILHOSA DEMOCRACIA, MARAVILHOSA

Há cada vez menos pessoas que acreditam que a democracia significa uma justa repartição dos bens públicos entre os cidadãos, a partilha aberta de informação e a participação activa dos cidadãos na vida do seu país. A democracia é como um gelado de chocolate: é uma coisa boa, mas em excesso pode provocar doenças fatais. Essas pessoas que pensam que a democracia é como acima se diz fazem pior: transformam o gelado de chocolate em remédio para matar ratos.
Portugal é um exemplo de democracia equilibrada: a ninguém passa pela cabeça, por exemplo, que os dirigentes políticos sejam eleitos porque são mais competentes para isto ou para aquilo. Na verdade, o povo sabe lá para que é que eles servem. Nem lhe interessa saber. Nem interessa a ninguém, se formos rigorosos.
Importa então que clarifiquemos como podes ambicionar a ser um dirigente político respeitado num país tão encantador como Portugal, onde a democracia não peca por exageros, onde até, se for necessário para o bem do povo, pode haver falta dela, mas ninguém se queixa. Maravilhoso país este.
  • Em primeiro lugar, deves aprender a discursar sem conteúdo. O conteúdo daquilo que dizes não interessa a ninguém: só baralha as mentes e cria embaraços. Tudo o que digas deve ser pura retórica, como faz por exemplo o Ministro Santos Silva, um verdadeiro bastião na arte de dizer nada com muitas palavras e todas redondas. Essa arte de retórica, absolutamente vazia de conteúdo (isto é importante) será o que vai permitir que insultes o povo que te elegeu, e todos os cidadãos, um de cada vez, é claro, ou então uma corporação de cada vez, fiquem verdadeiramente extasiados e te prometam mais votos para a próxima vez.
  • Mais do que tudo, o combate à pobreza e à miséria deve ser um estilo, uma maneira de falar, de ficar com o ar compungido, sobrancelhas caídas, cantos dos lábios tombados, um dedo tremente na testa, seguido de um sorriso de dentes lavados e encerados, optimista e confiante. Quanto ao resto, quem quiser que faça pela vida, que os governantes têm mais em que pensar. Só a título de exemplo, citemos o enorme trabalho que lhes dá preparar um discurso, uma entrevista, um debate: que roupa devem usar? que cores devem ter a gravata e o casaco? Qual a cor do fundo do palco em que se vão exibir? As unhas estão bem cortadas? E o cabelo? como está? O fecho da saia, ou das calças está bem fechado? - não vá o diabo infiltrar-se e colaborar com o adversário . A um homem político, o pior desastre que pode acontecer, aquilo que o levará à derrota certa não são as suas ideias, mas o espectáculo degradante de a gravata não combinar com as cores de fundo de palco, ou então que as calças lhe caiam em pleno discurso. A uma mulher não lhe fica mal que um ou mais botões da blusa se lhe desapertem, no ímpeto do debate, se tiver alguma coisa que se veja, mas morrerá definitivamente para a política se a tinta do bâton tiver um milímetro que seja a mais do que devia ter. Pensar nestes e em muitos outros pormenores ocupa todo o tempo a cabeça de governantes que se prezem. Se queres seguir essa maravilhosa carreira profissional, é bom que te prepares desde já. Essa carreira é impiedosa para mentes preguiçosas.
  • Se não sabes o que fazer (porque pelo menos de três em três meses tens de tomar uma medida, que não seja um discurso - a vida de governante tem este senão), pensa em algo que te irrite solenemente. Se por exemplo não gostaste que a tua namorada ou namorado te tenha trocado por outro ou outra, mesmo que sejas gay, e nem tivesses nenhum interesse nela ou nele, trata de tomar uma medida qualquer que prejudique o novo amigo ou amiga do traidor ou da traidora. Já agora, e antes que me esqueça, usa sempre o feminino e o masculino (nesta ordem), como fiz atrás, mesmo que te estejas a referir a calhaus: neste caso dirás “as pedras e os calhaus deste país merecem o que têm”, por exemplo. Se, pelo contrário, alguém te apoiou e te ajudou a superar esse problema de traição inqualificável, toma uma ou mais medidas que beneficiem essa pessoa e os seus familiares. Se ela prejudicar alguém, tanto melhor, porque não precisarás de fazer um penoso discurso com o seguinte conteúdo: “a quem me beija a mão, eu beijo a face, e não diga que vai daqui - é que as mãos (nunca se sabe) são o alojamento preferido dos micróbios.” Um discurso, como este com conteúdo, é a morte do artista.
  • Se alguém contestar o que dizes, ou, pior ainda o que não fazes ou o que fazes, acusa-o de deslealdade para com a organização. Ninguém sabe o que isso é, a organização. “Tragam-me aqui a organização que eu quero conhecê-la”. Ninguém traz. Não se sabe onde mora, onde vai tomar café ou que praia frequenta na época balnear. A “organização” é uma palavra-chave: abre as portas a toda a intriga e a toda a arbitrariedade. Não te esqueças que a capacidade de intriga e de arbitrariedade são duas das qualidades mais importantes de um qualquer político que queira fazer carreira digna. “Organização” é então a palavra-chave desta coisa. Se, num lapso programado, trocares a palavra organização pelo teu próprio nome, limita-te a sorrir e com toda a displicência deste mundo, na próxima oportunidade, troca o teu nome pela palavra organização, e estarás perdoado.
  • Se te acusarem com razão que não estás a ser democrata, filia-te rapidamente num partido de esquerda. Aí , não tens de dar qualquer justificação. Esses partidos são democratas de cognome. E podes tranquilamente fazer e dizer o que fazias e dizias antes. Se te acusarem que está a hipotecar o futuro da economia do país, filia-te logo que possas num partido de direita. Aí , não terás de dar qualquer explicação. Os partidos de direita são insuspeitos nessa matéria. A palavra matéria é outra que deves aprender a usar. Se pensas que matéria quer dizer aquilo de que são feitas as coisas, isso é porque és primitivo, ainda pensas como Aristóteles que viveu há muito mais de 2 000 anos. Não te admires que digam que estás ultrapassado: 2 000 anos é muito tempo… “Matéria” quer dizer o que muito bem te apetecer; sobretudo é uma palavra útil para te referires com eficácia e rapidez a um assunto de que nunca ouviste falar, nem queres ouvir, porque tens a panela ao lume e não há tempo para tudo.

Em resumo, democracia equilibrada, como aquela que se pratica em Portugal é um sistema que serve para eleger qualquer uma ou um (veja-se acima o motivo desta má formação linguística) que saiba e pratique o que antes se afirma e, em complemento indispensável, tenha aprendido a fazer manguitos a quem a ou o elegeu.

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