O código da ciência
Jorge Buescu
Existe, infelizmente, uma falta de consciência generalizada sobre o processo e mecanismos que levam uma faixa de conhecimento a poder ser considerada científica. Esse processo, que na era moderna começou a esboçar-se com Galileu e Bacon e foi refinado por uma longa e ilustre linhagem de pensadores e de práticas, está hoje solidamente instituído através de um conjunto de práticas e regras próprias a que chamarei o código da ciência e passarei a descrever.
O código da ciência, a lógica que descreve a actividade científica e permite caracterizar uma faixa de conhecimento como científico, encontra-se descrito na extraordinária obra do filósofo austríaco Karl Raimund Popper A Lógica da Descoberta Científica. Independentemente de pequenas observações pontuais que foram feitas a esta obra publicada em 1934, o facto é que ela contém o credo básico de todos os cientistas praticantes. As convicções íntimas de pelo menos 99% dos cientistas sobre o significado da sua prática diária de investigação, mesmo que disso não tenham consciência, são as descritas por Popper.
E o código da ciência, em traços gerais, é o seguinte. Em primeiro lugar, nunca se pode provar que uma teoria científica é verdadeira. Uma teoria científica pode, como a mecânica newtoniana no seu auge, descrever toda a realidade imediatamente acessível e fazer previsões sobre novas situações (comportamento de vigas ou trajectórias de planetas ou de foguetões), realizando-se experiências que confirmam essas previsões. Será que isso permite afirmar que essa teoria é verdadeira? A resposta é não. Não existe um teste único que permita concluir de uma vez por todas se uma teoria é verdadeira ou não. A única afirmação lógica que se pode fazer ao realizar um teste (experimental ou conceptual, pouco importa) a uma teoria que bate certo com as previsões é a de que essa teoria, dentro dos limites em que foi testada, se adequa à realidade. Ou seja, é um bom modelo. Por exemplo, a mecânica newtoniana é um bom modelo para escalas não microscópicas (onde imperam os fenómenos quânticos), velocidades baixas relativamente à da luz (fenómenos de relatividade restrita) e campos gravitacionais pouco intensos (fenómenos de relatividade geral).
Assim, nunca se pode provar nem afirmar que uma teoria científica é verdadeira. Quando muito, pode provar-se que é falsa — se se realizar um teste cujos resultados sejam contrários às suas previsões. Os testes positivos nada provam do ponto de vista lógico; demonstram, quando muito, uma extensão do domínio de aplicabilidade da teoria.
A ideia seminal de Popper foi precisamente a de tomar esta característica de uma teoria como sendo a definição do seu carácter científico. Isto é: uma teoria é científica se e só se faz previsões inequívocas sobre um fenómeno, esse fenómeno pode ser testado, os resultados podem ser negativos e a teoria pode, portanto, ser infirmada. Ou seja: se podem ser concebidos testes que provem que a teoria é falsa. Este critério é hoje universalmente conhecido como o critério da falsificabilidade de Popper: uma teoria é científica se e só se é falsificável.
Para retomar o exemplo da mecânica newtoniana, ela é falsificável e, portanto, científica. Em face de um fenómeno concreto, realiza previsões inequívocas que podem ser testadas e, portanto, invalidar a teoria. Um exemplo concreto, após 250 anos de sucessos, é o da precessão do periélio de Mercúrio: a mecânica clássica fazia previsões que se afastavam da realidade por um factor de 2. Essa falsificação da mecânica clássica abriu as portas à aceitação da relatividade geral como modelo mais aperfeiçoado de uma teoria da gravitação. E forneceu também um aviso real: nenhuma teoria científica está imune à revisão.
Como exemplo de uma teoria não científica, podemos tomar a astrologia. É claro que se trata de uma teoria não falsificável. As previsões astrológicas são suficientemente vagas para nunca admitirem um teste de falsificabilidade («este ano tenha atenção à sua saúde» ou «em Março morrerá uma figura mundialmente conhecida», em vez de «a 15 de Abril vai partir uma perna» ou «o papa vai morrer entre 10 e 17 de Março»). No caso (altamente improvável) de alguma vez algum astrólogo emitir uma previsão falsificável não verificada, ouve-se um coro de explicações ad hoc e a posteriori. As mais comuns são observações como «a astrologia funciona nalguns casos». Em que casos funciona? Ninguém sabe. Em que casos não funciona? Ninguém sabe. O que os distingue a priori? Ninguém sabe. Assim, a astrologia está legitimada, quer acerte, quer falhe, as previsões. Ou seja, não é falsificável. Portanto, não é científica, Popper dixit. É uma pseudociência.
BUESCU, J. (2001) — O mistério do bilhete de identidade e outras histórias. 3.ª ed. Lisboa: Gradiva, pp. 12-13.
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