quinta-feira, 10 de abril de 2008

RUSGAS NA NOITE

Nas últimas noites, a bem da sanidade moral, as rusgas bateram Lisboa de ponta a ponta. Os melhores podengos da polícia, à hora que os arcos voltaicos tiritam na cacimba matutina afuroaram as alfurjas, as padieiras das casas, a sombra dos viadutos.

No fim da caçada contaram cento e sessenta cabeças que vão ser encaixotadas num porão e remetidas, como purgueira, para adubar a Guiné.
Tinham cara de fome, enxutos os bolsos, não usavam gravata, talvez na véspera houvessem bispado um lenço a burguês, que queriam?

Eram vadios? De modo algum a ordem social pode consentir este parasitismo baixo que se estruma pelas ruas aos pontapés das botas de verniz da gente rica. A ordem social é asseada como uma cocotte de Paris: moinantes só apadrinha aqueles que calçam luvas cor de canário, ostentam crachás, ou em ocasião crítica rapam de uma senha franquista.

Os que trazem uma andaina sebenta, bebem as amarguras das pobres toleradas en rascão barato, em vez de ser em beneditino, esses corre-os a pontapé.

De entre os presos das últimas noites , alguns mostravam calos nas mãos, áscuas da forja no rosto, mas que haviam cometido o desleixo de não ir dormir a palácio, nem de trazer na botoeira a gardénia murcha da orgia.

Outros, eram os pequenos esfarrapados, cuja mãe é a rua, qua gastam os pulmões a pregoar os algoritmos da Santa Casa, moem as pernas a fazer recados e pernoitam ao sereno como os pardais.

Tinham perpetrado, todos, o crime de não trazer colarinho da moda, de terem cara de miséria e não serem sequer primos de um conselheiro, desses pares marcantes da contradança monárquica.

Massa amorfa, foram arrebanhados para um calabouço como para uma ménagerie, varridos das calçadas como o cisco pela agulheta municipal.

Quem se importa do cisco que vai para a sarjeta e daí para os lodaçais do mar?

As cento e sessenta cabeças arrebanhadas vão pagar a sua pouca filosofia da vida. Arrombassem o erário, mas não furtassem um chavo a um burguês, fanassem, mas de luva branca, monóculo de viseira, explorassem as mulheres mas com tom, com linha, com arte.

Vão para a Guiné; as casas de correcção continuarão sendo colégios de meninos amparados. No sol dos trópicos hão-de os vagabundos achar a terapêutica dos seus vícios. E as pretas da Guiné será a boa estrela redentora destes porcos rufiões que bebem o sangue das amantes em vinho feito a martelo.

( crónica de Aquilino Ribeiro publicada no jornal A Vanguarda, de 28/9/1907)

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