A vida é um tiro de pistola, disparado contra nós, à queima-roupa. Muitas coisas seriam diferentes, se nos tivesse sido dada a oportunidade de nos prepararmos para ela, para a vida. Em sono profundo, fomos levados a visitar um teatro, para cujo palco fomos empurrados, sem aviso prévio. Acordámos, com a pancada que recebemos nas costas, já frente a uma plateia completamente lotada. Se fomos brutalmente tirados a um sono profundo e arremessados para um palco à força, à revelia de todos os direitos, liberdades e garantias, a verdade é que, uma vez diante do público, o palco é todo nosso e a liberdade não tem limites. Agora, temos de nos desenrascar com os holofotes em cima de nós, a luz intensa a ferir-nos os olhos.
Entrar na vida foi uma fatalidade, mas vivê-la é a própria expressão da liberdade. Fomos arremessados para a vida, e isso, para que fomos arremessados, temos de construí-lo por nossa própria conta e risco, temos mesmo de o fabricar, porque não existia para nós quando nos tiraram do sono.
Acontece que, sendo a vida fabricada por nós, por cada homem, ela não se cansa de nos colocar problemas, aqueles que o homem não coloca a si próprio, que lhe caem sobre a cabeça como um balázio disparado pelo seu viver. Estes problemas, os que a vida coloca ao homem, são sempre do mesmo género e da mesma família: uma realidade diferente deveria substituir aquela que está diante dos nossos olhos. Como meteoros desalmados, rasgando os céus, desenfreados, esses problemas nascem, todavia, dos nossos pés que escondem, pousados, o único sítio do universo que não podemos ver. Em bom rigor, os problemas estão em pretender que o que não é passe a ser. São problemas práticos, portanto. Práticos, porque não foram colocados por nós à vida, mas disparados sobre a nossa cabeça por ela.
Pois bem, o nosso herói, o homem pragmático, hommo pragmaticus (fique aqui registada a patente em língua digna), moderno, não por ser idealista, romântico ou racionalista, antes por não saber, ele, nem quem quer que seja, que coisa é verdadeiramente, a não ser que é um homem de hoje, como tem sido de todos os tempos..., o homem pragmático, prossigamos então, no primeiro instante em que pousou os pés no palco da vida, tomou a firme e embriagante decisão de ser um puro homem de acção, um homem para resolver problemas práticos. E não escolheu mal: um puro homem de acção é um animal de puro sangue, é um verdadeiro animal.
O homem pragmático está sempre alerta. Vive nas fronteiras de si mesmo, debruçado para o lado de fora. Vigia as sombras do cosmos e nelas descobre os inimigos, todos sem excepção, a abater. Só lhe interessa, todavia, o que seja visível, tangível. Do círculo só vê a circunferência, aquilo que se vê, precisamente. Uma impertinente dor de dentes ou uma inoportuna angústia íntima podem fazê-lo recuar a atenção da periferia para o interior do círculo, mas só num instante fugaz, que um homem pragmático não se interessa por ninharias.
Como já alguém disse, vede os lírios dos campos, mas deles retirai os olhos rapidamente para ver mais pragmaticamente os macacos nas jaulas do Jardim Zoológico. É espantoso como esses homenzinhos pragmáticos estão em tudo: nada lhes escapa do que acontece ao seu redor. Vivem num perpétuo êxtase, retidos fora de si mesmos pela urgência dos perigos exteriores. Voltar-se para si mesmo seria distrair-se daquilo que se passa fora, e semelhante distracção seria a morte do macaco. A natureza é feroz: não tolera os que dela se distraem. Há que estar com cem olhos, em incessante “quem vem lá”, pronto a receber notícias das mudanças circundantes. Atenção à natureza é vida de acção. O puro animal é o puro homem de acção, o hommo pragmaticus.
O homem pragmático vive numa guarda avançada de si mesmo, agarrado com atenção ao teatro cósmico, deixando para trás de si o seu próprio ser. Entrincheirado, agarrado à baioneta, perscruta com binóculos de primeiríssima qualidade o mundo e tudo à sua volta e só vê dele, porque só elas são visíveis, as fronteiras de cada coisa. Muito raramente, consegue parar, mas nunca consegue reparar, re-parar.
A pergunta que sempre se faz quando se identifica uma nova espécie, neste caso, uma nova, de muitos milhões de anos, espécie de homem, é se os seus elementos têm inteligência. Registe-se aqui, para que conste: o homem pragmático é inteligente. E tal, como todas as restantes espécies de homem, leva a inteligência presa por um alfinete. Pode perdê-la por dez mil reis de mel coado. Mesmo o mais inteligente de todos os homens só o é às vezes, e muito poucas vezes. O mesmo se pode dizer do sentido moral e do gosto estético. No caso específico do homem pragmático, a fome e a sede de beber são psicologicamente mais fortes, têm mais energia psíquica bruta do que a fome e a sede de justiça. Quanto mais elevada for uma actividade do organismo, menos vigorosa, estável e eficiente será no hommo pragmaticus.
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