Sentado em frente ao fogo quente da lareira, dormitava embebedado pela música suave e insinuante da chuva que, desde há várias horas, inundava os jardins e hortas, despertando a cobiça dos caracóis e de toda a restante bicharia, a quem a natureza determinou, com superior sabedoria, que só teriam direito a pastagem nos dias em que as ervas e caules das tronchudas se enternecessem com água caída dos céus. Para os carneiros, touros, burros e gado congénere, foram reservados os outros dias.
Esta decisão, sábia como sabemos, foi tomada pela natureza numa altura em que os estudos para a criação do homem iam muito avançados. Já vários ensaios tinham sido levados a cabo, dando origem às variadas espécies de macacos e gorilas ainda sobreviventes.
Investigações posteriores levaram muitos autores a pensar que o homem seria descendente desses simpáticos animais. Mas não, se por descendência se entender a sequência de paternidades e maternidades.
Pelo contrário, o homem é o resultado de um conjunto de experiências mal sucedidas com vista à criação de um ser perfeito. A última, a que deu origem ao homem actual, criou um bicho de tal modo preocupante que a natureza cancelou o programa em curso, desistindo definitivamente da sua ideia de criar o tal ser perfeito.
Ora, nessa altura, todos os animais pastavam nos mesmos prados e nos mesmos dias e até às mesmas horas.
Não viria daí qualquer problema, não fossem os bois, os carneiros, os burros e seus congéneres responsáveis pela morte por esmagamento de quantidades astronómicas de caracóis.
Um dia, reunidos de emergência, os caracóis decidiram que prefeririam morrer de fome a ter que morrer debaixo das patas de qualquer burro, que aparecesse a trote ou a galope, na pradaria.
A natureza, sempre previdente, promulgou então a famosa Lei da Repartição das Pastagens no Tempo e no Espaço.
Caracóis, Camelos, Lagartos, Burros, Elefantes, Girafas, Grilos, e toda a restante bicharada aclamaram, no maior referendo alguma vez realizado, a natureza como sua rainha.
E assim tem sido até aos dias de hoje.
Durante a festa, que decorreu logo a seguir à publicação dos resultados do referendo e que animou todo o mundo conhecido e por conhecer, nasceu o primeiro homem.
Por desatenção, ou por aquela fraqueza que ataca os poderosos, levando-os a não prestar o cuidado devido a pormenores insignificantes, a natureza esqueceu-se de incluir o homem naquela, como em todas as restantes Leis promulgadas. Este lamentável esquecimento é a única explicação plausível para a busca incessante do conhecimento das Leis da natureza, a que o homem se tem dedicado desde então com um insucesso confrangedor, apesar dos nomes pomposos de Filosofia, Ciência, ou outros, com que auto-mimoseou a sua genuína ignorância.
No início limitou-se a subornar alguns animais, a que depois chamou domesticados, para que lhe lessem e interpretassem as Leis da natureza. Mas fê-lo com tal arrogância que os cães, os gatos, os bois e os outros preferiram, de acordo com o nº 8 do art.º 4º do Dec-Lei sobre a Distribuição da Sabedoria, jurar-lhe fidelidade a ter que revelar aquilo que, para todos, era mais do que evidente: as Leis da natureza não foram feitas para serem conhecidas, mas para serem respeitadas; como, por esquecimento, o homem fora excluído desse compromisso, nunca seria capaz de as respeitar e muito menos de as conhecer. Por isso, estaria condenado, para todo o sempre, a pastar a qualquer hora, em qualquer pradaria, só ou acompanhado, mas sempre sem critério definido.
Enquanto, dormitando em frente à lareira, me entregava a estas reflexões, James, que como todos sabem é meu amigo, embora eu procure, de agora em diante, cada vez mais evitar essa qualificação para não ser repetitivo, incensava a sala com o fumo do seu eterno cachimbo. Media-a ao comprido e ao largo com os seus passos de antigo tropa. De quando em vez, parava. Olhava para o infinito. E tomava notas num canhenho sebento.
A chuva continuava a convidar lagartos, osgas e caracóis a regalarem-se com a fartura tenra da casca nova de roseiras e maracujás recém-plantados.
De súbito:
- Eureka! - gritou.
Acordei estremunhado:
- Quem?
- Como, quem?
- Pensei que tinhas dito o nome de alguém … - e procurei de novo o conforto do sofá - já estava na fase de começar a sonhar…
- Como podes tu sonhar num dia destes?
- Há dias próprios para sonhar? Como os dias próprios para as osgas pastarem?
- As osgas não sonham, meu caro.
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