Todos os homens, desde o mais primitivo ao mais civilizado, fazem uso da sua mente ou do seu espírito, uma vez que todos o têm. Se pensar consistisse somente neste exercício do espírito ou da mente, teríamos de admitir que todos os homens pensam. Todos, com efeito, vivem num mundo de significados e de valores. O real não é para nenhum ser humano uma presença muda; é o correlato do seu desvendar, realizado pela língua que falam e pela cultura a que pertencem. O mesmo é dizer que todos procuram um sentido, todos comunicam significados e valores que estruturam a sua relação com o mundo e com os outros homens. Neste sentido, o homem é um ser pensante porque é um ser que fala. O pensamento não é monopólio de ninguém, é próprio da condição humana, mesmo nas suas condições patológicas, pois as palavras de um doente mental, por muito delirantes que sejam, não são completamente destituídas de sentido.
No entanto, não basta usar o espírito, através da palavra, para pensar verdadeiramente. A criança fala, mas, que se saiba, nenhuma criança é autor de uma obra filosófica; por outro lado, durante milénios muitos homens viveram sem saberem o que é que “pensar” quer dizer. É que há uma grande diferença entre o que se pode chamar o pensamento imediato (ou espontâneo) e o pensamento filosófico ou pensamento muito simplesmente.
O pensamento imediato desenvolve-se sob o signo da passividade. O pensamento filosófico desenvolve-se sob o signo da atividade ou da ação humana. O primeiro corresponde à alienação dos domínios da mente e da moral, o outro corresponde à reapropriação desse domínio.
Com efeito, na medida em que aquilo que pensamos é a caixa de ressonância de representações construídas em nós pela educação que recebemos e pelo ambiente cultural a que pertencemos, é errado pretender que somos o sujeito ativo dos nossos pensamentos. Estes pensamentos são fabricados, independentemente da nossa iniciativa intelectual, por instâncias exteriores das quais somos um brinquedo inconsciente. Absorvemo-los com o leite materno e ao longo do nosso desenvolvimento pelo simples facto de estarmos imersos num contexto familiar, social, histórico, e por aprendermos a falar uma língua particular, pois nenhum língua é uma descodificação neutra da realidade. Todas analisam o real de acordo com interesses e com tradições, na situação singular deste ou daquele grupo.
Daqui segue-se que, na sua forma imediata, o pensamento é menos da ordem do pensado do que da ordem do não pensado. Funciona no interior de um sistema de representações que o influenciam, sem que tomemos consciência dessa influência, o que corresponde ao que podemos chamar determinismo ideológico. Deste modo, o pensamento é o porta-voz de significados que o aprisionam. Foram tão bem interiorizados que se solidificaram sob a forma de hábitos mentais que se impõem com uma tal evidência que se constituem em obstáculos internos à atividade pensante. Quer isto dizer que não pensamos como respiramos e que não basta dispormos de um espírito ou de uma mente para pensar verdadeiramente. O pensamento verdadeiro realiza-se sempre como pensamento do pensamento, isto é, como movimento de retorno ou de reflexão da mente sobre si mesma, de forma a submeter as suas produções a um exame racional. Atualiza-se, portanto, como reflexão crítica sobre o que até então era evidente. Marca o momento em que o sentido deixa de ser aceite como um significado recebido, para se transformar num significado problemático. Constitui, portanto, um ponto de ruptura entre um antes e um depois. Era a isto que Sócrates se referia ao dizer que a vida filosófica era uma espécie de segundo nascimento. E isto vale tanto para toda a humanidade como para cada homem particular.
O que é a Filosofia (excerto)
Jorge Barbosa, Setembro 2013
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