quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Justiça e Liberdade

Justiça

Quem orienta as suas opções políticas pelos Direitos Universais do Homem provavelmente não é utilitarista. Se todos os seres humanos são dignos de respeito, independentemente de quem são e de onde vivem, então é errado tratá-los como meros instrumentos da felicidade coletiva. Nos tempos que correm, a enorme falta de cultura que caracteriza muitos dos intervenientes no sistema opinativo dos media e da ação governativa e legislativa, impõe que sejam, não para que mudem de opinião ideológica, mas tão só para que saibam o que dizem, que alguns esclarecimentos sejam dados. Na verdade, poderemos defender os direitos humanos, a pretexto de que o respeito dos mesmos irá, a longo prazo, maximizar a utilidade. No entanto, neste caso, a sua razão para respeitar os direitos não é respeitar a pessoa que os detém, mas sim tornar as coisas melhores para todos ou para a maioria. Uma coisa é condenar a miséria em que vivem algumas pessoas porque reduz a felicidade geral, outra é condenar essa mesma miséria por ser um mal intrínseco, uma injustiça.
Para mim, para quem o debate sobre a moral se transforma em política, quando questiona as leis que devem reger a nossa vida, a reflexão moral necessita de algumns esclarecimentos no tumulto da cidade, nas discussões e incidentes que perturbam a mente pública.
Perguntar se uma sociedade é justa é perguntar de que forma distribui as coisas que prezamos - rendimentos e riquezas, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos e honras. Uma sociedade justa distribui estas coisas da maneira certa: dá a cada pessoa aquilo que ela merece. O problema começa quando se pergunta o que merecem as pessoas.
Se analisarmos as vantagens e as desvantagens da inflação dos preços, em épocas de carestia, a distribuição de prémios de mérito e as ajudas financeiras, estamos a falar de três formas distintas de abordar a distribuição de bens: bem-estar, liberdade e virtude. Cada um destes ideais indica uma forma de reflexão diferente sobre a justiça.

Maximização do Bem-Estar

Para as sociedades de mercado, como a nossa, o máximo bem-estar é um ponto de partida natural. O atual debate político incide muito sobre a forma de promover a prosperidade, ou melhor, o nosso nível de vida, ou estimular o crescimento económico. Para explorar esta ideia, recorremos ao utilitarismo, a explicação de como e porquê devemos maximizar o bem-estar, ou procurar a maior felicidade para o maior número possível de pessoas. No entanto, é esta mesma crença que fundamenta a atribuição de prémios financeiros elevadíssimos a gestores e administradores de instituições bancárias e de seguros, apesar do seu gigantesco insucesso nos últimos anos, para evitar o seu abandono e crises sistémicas (o sistema seria, pelos vistos, mais poderoso do que o mérito dos indivíduos, o que poderia indicar que não mereceriam nem prémio nem castigo); já, no caso da atualização do salário mínimo, a mesma ideologia política assume que a sua evolução deve depender do sucesso, do aumento da produtividade. A não ser que se faça apelo a alguma força superior, como, em certos momentos, faz Mill, este utilitarismo dificilmente será uma prática moral e política que promova o bem-estar da maioria. Pelo contrário, pelos custos que representa, o bem-estar para todos acaba por ser questionado negativamente pelos próprios utilitaristas…

Justiça e Liberdade

A maioria das teorias que fazem depender a justiça da liberdade coloca a ênfase no respeito pelos direitos individuais, embora não se ponha de acordo em relação aos direitos que são mais importantes. A ideia de que a justiça significa respeitar a liberdade e os direitos individuais (aqui justiça não significa só aquilo que é próprio do sistema jurídico, que intervém sobretudo na retificação da injustiça, o que é, na prática, muito arriscado) é tão familiar na política contemporânea como a teoria utilitária de maximização do bem-estar. Por exemplo, as Constituições democráticas do ocidente estabelecem determinados direitos - liberdade de expressão, liberdade religiosa, etc. - que nem mesmo as maiorias simples podem violar. Com efeito, mesmo para muitos libertários e utilitaristas, a justiça significa respeitar certos direitos humanos. Em momentos mais complicados na gestão das sociedades, os libertários e utilitaristas lutam pela redução dos direitos constantes nessas constituições democráticas. Se a puderem fazer sem sufrágio democrático, fá-lo-ão na crença ingénua de que estão a promover o bem-estar para todos.
Nesta linha de pensamento, em que a justiça começa pela liberdade, as discussões políticas do nosso tempo têm lugar entre duas fações rivais da mesma abordagem: a do laissez faire (liberalismo clássico) e a da equidade (por ex.: de Rawls). A liderança do Laissez Faire associa-se e nem se distingue verdadeiramente dos libertários, que consideram que a justiça consiste em respeitar e defender a todo o custo as escolhas voluntárias feitas por adultos responsáveis. A fação da equidade inclui teóricos com pendor mais igualitário. Basicamente, afirmam que os mercados livres não são justos nem livres. A justiça implica, portanto, que sejam colmatadas as desvantagens sociais e económicas que deem a todos uma possibilidade efetiva de sucesso. São teorias que se fazem depender do uso da razão (como em Kant) ou da realização de um contrato teórico (como em Rawls) entre seres inteligentes e racionais que querem ver desejos particulares conflituosos, mas suscetíveis de se subordinarem a princípios gerais, realizados para seu bem e de todos os outros.

Justiça e Virtude


Na política contemporânea, as teorias sobre a virtude são frequentemente identificadas com os conservadores culturais e com a direita religiosa. A ideia de legislar a moralidade corre o risco de cair na intolerância e na coerção. Curiosamente, esta corrente tem, no ocidente, origem em Sócrates, Platão e até Aristóteles. Luther King, e os abolicionistas em geral, foram buscar as suas visões de justiça aos ideais morais e religiosos. Não é uma corrente de pensamento exclusiva de talibãs e de fundamentalistas de qualquer religião, que pretendem, como acontece com os calvinistas mais convictos, que os Estados se constituam como a salvação, polícias mesmo, dos princípios morais das suas crenças religiosas.

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