domingo, 5 de outubro de 2014

A Morte Gloriosa do Filho de Staline e o Cheiro que lhe Sobreviveu

Autor: BARBOSA, Jorge N
Data: 1995
A SOMBRA DO PESSEGUEIRO
(redondilhas a mote de Milán Kundera e de “estranha leveza do ser”)

Jorge Nunes Barbosa

O filho de Staline considerava-se filho de Deus. Não é que os outros o não fossem, mas ele tinha, a esse respeito, aquela certeza insofismável que resulta de ser filho do homem mais poderoso do Universo conhecido do seu tempo, que, de resto, e para reforço da sua profunda convicção, ordenara, sem pestanejar, o fuzilamento de sua mãe.

Mandou a ironia do destino, ou o cinismo das tropas de Hitler (as numerosas pesquisas realizadas sobre este assunto nunca chegaram a uma verdadeira conclusão), que o filho de Staline, infamemente capturado, fosse encarcerado na, para si, detestável companhia de alguns dos súbditos de elite de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra. 

Entre o glorioso filho de Staline e os elegantíssimos súbditos de Sua Majestade estalou, em pleno auge da 2ª Guerra Mundial, uma guerra particular, motivada pela incapacidade congénita dos ingleses em suportar a ideia fixa do filho de Staline, que entendia que não devia limpar a merda que fazia. Os primeiros argumentavam que, para desinfestar o ambiente, era obrigação de cada um limpar a merda que fizesse. O outro, citando Galileu, ripostava, disparando ao ritmo de metralhadora todas as pragas e injúrias do léxico russo, que a melhor forma de apreciar o valor do homem era avaliando a obra por ele legada aos vindouros. Se a merda, que os ingleses faziam, os envergonhava, que a limpassem; a sua não seria removida do local onde ele a pusesse.

Os ingleses, superiormente educados na já famosa Universidade de Cambridge, ficaram apopléticos ao ouvirem da boca daquele energúmeno, que praguejava à velocidade da luz, uma citação do cientista que criara os princípios da Física Matemática. Pediram tréguas, que lhes foram concedidas em termos profundamente vexatórios: tiveram que aceitar que eles próprios deixariam de limpar a merda que fizessem.

Humilhados e vilmente ofendidos, os digníssimos súbditos de Sua Majestade, em Assembleia Geral secreta, facilitada pela brutal bebedeira que o filho de Staline tomara para celebrar a sua retumbante vitória, decidiram que cada um deveria analisar, com todo o espírito científico ainda disponível, após o vexame sofrido, quais as estratégias e tácticas das regatas, travadas contra os de Oxford, que se aplicariam a esta situação unanimemente reconhecida como absolutamente inadmissível.

Na sequência dessa assembleia, de conclusões vergonhosamente inconsequentes, a revolta nas hostes de Sua Majestade atingiu tais proporções que lhes deu volta aos intestinos. O ambiente da caserna, se já era insuportável, tornou-se agora decididamente pestilento. O próprio filho de Staline, num curtíssimo lampejo de lucidez, no meio da sua estrondosa bebedeira, pensou que talvez fosse ele o único a ter direito de deixar obra feita para a posteridade.

Logo que as cores do mundo passaram de branco invisível para o violeta vínico genuíno, o filho de Staline deslocou-se penosamente à casa do guarda, para que a autoridade legalmente instituída deslindasse, de uma vez por todas, o dilema que originara a sua guerra particular, e que tinha sido agravado pelo estabelecimento de tréguas. Toda a gente sabe, e o filho de Staline também, que quando as tréguas agravam o conflito que dá origem à contenda, estamos perante a ameaça de uma Guerra Mundial. Ora, duas guerras mundiais simultâneas só poderiam anular-se mutuamente por constituirem uma afronta à lógica elementar das coisas. Esta reflexão foi exposta ao SS de serviço que, depois de um longo momento de reflexão, retorquiu do alto das suas botas cardadas:
- Se a guerra acabasse agora, seríamos nós, os alemães, os principais beneficiados. Não vejo motivo para me preocupar com isso. De mais a mais, não estou aqui para tratar de assuntos de merda.

O filho de Staline, que ainda via tudo violeta à sua volta, passou a ver estrelas, também de cor violeta, mas muito mais brilhantes, a bailarem na secretária, na cadeira, nas botas, nas paredes, na fotografia de Hitler, no chão, no tecto e em tudo quanto era sítio.

Em passo de corrida firme, e sem qualquer hesitação, dirigiu-se, a grande velocidade, para os limites do campo. Parou dois segundos frente ao arame farpado electrificado que lhe servia de fronteira e atirou, decidido, contra ele todo o seu corpo. E ali se espalmou, projectando estrelas brancas, azuis, verdes, amarelas, mas sobretudo violetas, por todo o campo.

Para que conste, aqui fica registada a história verdadeira da morte gloriosa do filho de Staline, o único homem que, durante a 2ª Guerra Mundial, morreu por uma causa nobre, quase metafísica. Morreu por uma causa de merda; todos os outros morreram por causa da estupidez.

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