Espinosa, no século XVII, faz uma distinção básica entre discurso e acção. O discurso livre é a livre expressão do pensamento. O pensamento é o domínio nobre da liberdade do indivíduo, que não pode, por motivo algum ser limitado, pensa ele. A acção, pelo contrário, pode e, em alguns casos, deve ser limitada pelo poder soberano, não necessariamente porque seja errada ou injusta, mas tão só porque gera ou pode gerar a dissolução da sociedade, cuja subsistência não seria compatível com uma liberdade de acção que correspondesse por inteiro à liberdade de pensamento e, portanto, de expressão. Se vivesse no século XXI, Espinosa poderia compreender por que razão essa distinção, para o bem e para o mal, não é tão clara quanto as suas ambições racionalistas gostariam que fosse. É que o discurso é também uma acção. Estou com ele, no entanto, na defesa da absoluta liberdade de expressão do pensamento, sobretudo porque a vida em sociedade limita, independentemente do regime político em que vivamos, a nossa liberdade de agir. Algo deve permanecer livre, para que os limites impostos à nossa acção não resultem em tirania, em dogmatismo, em fanatismo. E aquilo que é susceptível de permanecer livre é o pensamento. A sua expressão é uma condição indispensável da sua existência: não é possível organizar ideias em pensamento, se forem limitadas as suas expressões; o confronto de pensamentos livres (a sua expressão livre) é portanto um direito e um dever inalienáveis.
Não sei quantas pessoas conseguem compreender esta perspectiva de Espinosa, sem sentirem algum mal estar, não tanto na forma, mas mais no conteúdo, na substância das suas conclusões. Ele é um crente no racionalismo e um precursor dos ideais políticos liberais. O seu racionalismo geométrico, matemático, dificulta-lhe o acesso à racionalidade humana, que não se limita a uma qualquer das suas formas e que incorpora a razoabilidade, isto é, a gestão de razões conflituantes. Nem por isso, o seu conceito de liberdade se opõe, antes pelo contrário, ao esgrimir dessas razões conflituantes, isto é, de toda a riqueza da racionalidade humana. O seu conceito de conatus permite, de algum modo, superar o aparentemente insuperável: a razão matemática e simplificadora e a complexidade da humanidade e da sua ligação à natureza. Mas, na sua concepção política, respira-se sobretudo essa crença numa razão humana restrita, limitada à sua forma legitimadora. Daí, o seu liberalismo um pouco estranho para nós.
Mas todo o liberalismo deveria ser considerado estranho. Na verdade, reduzir ou subordinar o problema das relações Estado-Cidadão à liberdade é estranho, sobretudo se nos lembrarmos que qualquer forma de vida humana é incompatível com a recusa da vida em sociedade, e, portanto, com a recusa de limites à liberdade individual. A liberdade de que muitos falam e com que sonham é, na verdade, independência, isto é, viver em sociedade com todos os benefícios, mas sem os custos inerentes. Em todo o caso, os independentes não são livres; o problema da liberdade nem sequer se lhes coloca; são independentes. A liberdade política é sempre uma questão social. Sendo certo, então, que é necessário que sejamos livres e, simultaneamente, que abdiquemos de uma parte da nossa liberdade para poder usufruir dela (como diria Espinosa e outros), a questão central não é a liberdade, mas a liberdade justa. Que justiça existe ou deixa de existir em alguém fazer isto ou aquilo? O problema central e sobreordenado da política é a justiça, portanto. Não a justiça que se pratica nos tribunais, porque essa resulta sempre da injustiça, mas a justiça que, existindo, dispensaria os tribunais. A justiça coloca o problema da relação entre os cidadãos e entre o Estado e os cidadãos. A liberdade justa é a consequência de uma justiça livre, isto é, susceptível de ser objecto de debates razoáveis em nome do bem para todos.
Neste sentido, os comportamentos anti sociais são os mais condenáveis de entre todos os que são susceptíveis de ser adoptados numa sociedade humana. Não só porque são injustos, mas também e sobretudo porque põem em causa as bases justas da convivência social. E os discursos anti sociais? Esses não são condenáveis ao nível da acção, porque e na medida em que se situam fora dela. Mas são condenáveis ao nível do discurso.
Os discursos anti sociais são discursos delinquentes. Mas não passam disso mesmo, de discursos. Tal como o discurso de Passos Coelho, num encontro com a JSD, em que defendeu que a legitimidade da intervenção dos jovens na vida política actual resulta dos prejuízos induzidos pelas acções das gerações anteriores, isto é, pela geração dos seus pais e avós. Este é um discurso delinquente. Todas as gerações devem deixar às seguintes um mundo melhor. Foi o que a geração dos pais dos jovens de hoje fez. A legitimidade da intervenção política dos jovens tem a ver com a sua obrigação de deixarem aos seus filhos um mundo melhor do que aquele que receberam. E se aquele que receberam não é justo, devem lutar para que, no futuro, o seja. Como método, sugiro um primeiro passo: rejeição total de discursos delinquentes; sugiro ainda um segundo: identificar o que resta neste mundo que estão a receber de anti social; finalmente, um terceiro passo: combater tudo o que se apresente configurado com hardware anti social.
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