Ao longo dos últimos trinta anos, tornou-se manifesto que o desenvolvimento da integração européia podia produzir um efeito perverso de grandes proporções. Ao retirar uma parte das competências dos países-membros e transferir as responsabilidades dos parlamentos aos executivos, a Europa em construção feria o princípio da própria democracia. Algumas pistas de reflexões por uma Europa mais democrática. Debate animado no Parlamento Europeu, em Estrasburgo.
A decisão de fazer com que fosse eleita pelo sufrágio universal direto, pela primeira vez em 1979, a Assembléia Européia até então composta de representantes dos países-membros foi apresentada como uma etapa fundamental da democratização da Europa. Ela parecia também responder às críticas dos “eurocéticos”, da opinião pública, mas também dos parlamentos nacionais. Os parlamentares britânicos estavam particularmente furiosos por ter que renunciar na prática à soberania absoluta do parlamento de Westminster e denunciaram o fato de que a transferência da soberania tivesse sido feita em beneficio de instituições “não democráticas”. Um "déficit democrático"? No início dos anos 70, um professor universitário trabalhista, David Marquand, embora fosse favorável à presença inglesa no seio da Europa, fez uma análise crítica da situação, estigmatizando o que classificou de “déficit democrático” e sugerindo também a eleição da Assembléia pelo sufrágio universal direto. Aparentemente essa crítica não deveria mais ter razão de ser, já que a reivindicação principal, a da eleição direta, foi obtida. No entanto, nos últimos quinze anos a noção de “déficit democrático” continua a ser associada à construção européia. Essa fórmula choque tornou-se mesmo um verdadeiro slogan em torno do qual constituiu-se a mais heteróclita das coalizões: nela encontramos europeus convictos preocupados em reforçar efetivamente o caráter democrático da construção européia; encontramos também, do lado oposto, os anti-europeus mais ferrenhos tais como alguns partidos conservadores, os partidos de extrema direita, os partidos populistas e alguns grupúsculos de extrema esquerda; encontramos por fim parlamentares europeus muito felizes de poder se beneficiar dos ganhos para reclamar – com razão – competências mais amplas e procedimentos de participação na decisão mais generosos em relação a eles. Com efeito, tudo se passou como se o referente implícito fosse o de um modelo parlamentar mítico, onde, sob o controle assíduo de um povo atento, os representantes eleitos dispusessem da plenitude do poder. Ora, essa visão idealista e idealizada não é realizada em lugar algum. Por um lado, os parlamentos perderam em todo lugar sua importância em relação aos executivos. Por outro lado, a democracia ocidental em geral e européia em particular não só é fundada no “demos”, o poder direto ou midiatizado do povo, mas também sobre um sistema de pesos e contrapesos, sobre a afirmação da separação dos poderes e do Estado de Direito. Esse elemento “constitucionalista” da construção européia está não apenas presente, como é hiperdesenvolvido. A União Européia possui uma Corte de Justiça que faz com que seja respeitado rigorosamente o Estado de Direito. Mas, sobretudo, nenhum sistema político no mundo possui um conjunto tão sofisticado de regras, procedimentos e instituições que garantam o respeito à minoria e que impeçam o abuso de poder ou de maioria: as regras de voto, por exemplo, quando não prevêem a unanimidade dos membros do Conselho, são cuidadosamente calculadas para evitar a dominação pelo número (os pequenos países) ou a potência (os grandes países). A Comissão propõe, mas o Conselho e o parlamento dispõem, e só podem agir se a primeira propõe... Quanto ao Conselho de Ministros, ele só existe no singular sob a forma de ideal-base, já que compreende mais de vinte formações diferentes do Conselho de acordo com a natureza dos problemas tratados. O Conselho Europeu, por fim, formado pelos Chefes de Estados e de Governo, completa esse complexo emaranhado de instituições, o mais sofisticado dos sistemas de “checks-and-balances” jamais concebido historicamente. Sobre essa vertente constitucionalista da democracia, não é de déficit que se deve falar, mas de excesso! Cartazes da campanha para o referendo sobre o Tratado de Maastrich, em setembro de 1992. É nessa vertente, a popular, que as coisas se complicam, embora a União Européia preencha as condições mínimas requeridas pelos sistemas democráticos, ou seja a eleição pelo sufrágio universal direto dos deputados do Parlamento Europeu. Nessa área, só é possível fazer melhoras à margem, notadamente em matéria de escrutínio, de divisão em circunscrições – a França, por exemplo, só comporta uma única circunscrição – de constituição de listas transnacionais, de designação pelos partidos em concorrência do líder que desejarem propor como presidente da Comissão, etc. Seria necessário por exemplo um sistema de partidos europeus de caráter transnacional. Seria também indispensável um “espaço público europeu”, onde as questões ligadas à Europa pudessem ser debatidas de outra maneira que não sob a forma de quinze debates nacionais distintos. Progressos inegáveis estão sendo feitos nesse sentido, mas eles vão de encontro à diversidade lingüística e à separação da informação e dos meios de comunicação. Por um espaço público europeu O processo de democratização será portanto longo e acidentado. Poderíamos progredir em três direções: por um lado, de maneira indireta, fazendo dos parlamentos nacionais lugares de ligação local com a União Européia. Mas eles desejam isso? Por outro lado, introduzindo a possibilidade de consultas diretas aos povos europeus sobre uma mesma questão – por exemplo, a ampliação ou reforma das instituições. Atualmente, essas consultas não são nacionais, dependendo de cada governo e são incapazes de levar à formação de uma maioria européia sobre uma determinada questão. Por fim, de imediato, seria possível reforçar a adesão dos cidadãos a uma União dando aos tratados a força e a clareza de uma Constituição que incluiria – nunca é tarde demais para fazê-lo – a Carta Fundamental dos Direitos do Homem, que falta ainda à União Européia. Yves Mény Professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris Diretor do Centro Robert-Schuman no Instituto Universitário Europeu de Florença | | Referências bibliográficas • Manifeste pour une démocratie européenne, (Manifesto por uma democracia européia), de Philippe Herzog, Editora do Atelier, Paris, 1999. • Le Devenir de l'Europe, (O futuro da Europa), de Sophie Béroud e Jean Weydert, Editora do Atelier, Paris, 1997. • Naissance de l'Europe démocratique, (Nascimento da Europa democrática), de Dominique Wolton, Editora Flammarion, Paris, 1997. • Démocratie et construction européenne, (Democracia e construção européia), de Mario Telo, Editora da Universidade de Bruxelas, Bruxelas, 1995. • Démocratie et corruption en Europe, (Democracia e corrupção na Europa), sob a direção de Donatella Della Porta e Yves Mény, Editora La Découverte, Paris, 1995. | | | | |
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