quinta-feira, 27 de março de 2008

SERES HUMANOS NÃO RENTÁVEIS




Ensaio sobre a relação entre história da modernização, crise e
darwinismo social neo-liberal

Robert Kurz

Nota Prévia: Este texto constitui a versão escrita de uma
apresentação efectuada a 15.11.2005 em Brunnen, Suiça, nas Jornadas
Anuais da INTEGRAS (Schweizer Fachverband für Sozial- und
Heilpädagogik) [Associação Profissional de Pedagogia Médica e
Social]. O texto não desenvolve ideias novas, mas consegue dar, ainda
assim, uma perspectiva sobre as afirmações standard na análise da
crítica do valor e da dissociação, de outro modo só possível de
encontrar espalhada em diversos artigos ou no contexto da
argumentação mais extensa dos livros. Os sub-títulos são de
responsabilidade da redacção da INTEGRAS. As apresentações desta
jornada serão publicadas brevemente em brochura



É incontestável: a divisão da sociedade aprofunda-se e assume
proporções dramáticas; simultaneamente, as instituições que devem
tratar e administrar o social definham e paralisam devido a
restrições financeiras. O problema pode apresentar actualmente
aspectos diferentes em cada país, de acordo com a sua situação
económica no mercado mundial, as tradições nacionais e as relações
estruturais; mas a tendência de fundo é em todo o lado a mesma. Se
uma ordem social agrava permanentemente o catálogo das suas
exigências e exclui cada vez mais seres humanos, tal constitui um
indício de que ela atingiu os limites imanentes na sua constituição
fundamental, como modo de produção e de vida. Trata-se, pois, de uma
crise estrutural das formas que constituem a base da sua reprodução,
cegamente pressupostas por norma. Por isso esta crise, como problema
social total, não pode ser explicada nem vencida por nenhum ponto de
vista duma actividade específica, dum interesse particular ou duma
instituição particular. Torna-se necessária, por assim dizer, a vista
aérea panorâmica da crítica social, para encontrar uma orientação
na "nova intransparência [Unübersichtlichkeit]" (Habermas).

Em primeiro lugar estamos perante uma grande confusão após a
derrocada do socialismo. O fim do conflito de sistemas e da guerra-
fria foi interpretado como vitória definitiva do capitalismo
ocidental; prometia-se uma nova idade do ouro de prosperidade,
através da abertura a todo o mundo do mercado, num sistema mundial
universal unificado. Entretanto é tão violenta a desilusão, com
sempre novos cortes sociais, crises económicas, guerras civis por
todo o mundo e barbárie crescente, que se tornou necessária uma
explicação diferente. Não são os pontos diferentes, mas sim os pontos
comuns de ambas as sociedades do pós-guerra que são essenciais para
se conseguir entender este desenvolvimento.

Todas as sociedades modernas são sistemas produtores de mercadorias,
independentemente de o serem numa constituição mais regulada
estatalmente (socialismo de estado, keynesianismo) ou na forma do
mercado mais desenfreado (capitalismo de concorrência neoliberal); e
o seu sistema de referência comum é o mercado mundial. O mercado
universal, porém, não existe por si, mas é a esfera funcional dum fim-
em-si social irracional, que consiste em fazer do valor mais valor
para fazer do dinheiro mais dinheiro (valorização do capital ou
acumulação de capital). Só através deste fim em si que no fundo lhe
está subjacente é que o mercado se tornou universal, enquanto a
produção de mercadorias nas sociedades pré-modernas tinha apenas
carácter marginal e a vida era reproduzida na sua maior parte sob
outras formas. Karl Marx apreendeu esta diferença em duas simples
fórmulas da relação de mercadoria (M) e dinheiro (D). Enquanto
simples forma de nicho nos poros das sociedades agrárias a relação
funcionava segundo a fórmula M-D-M. O dinheiro limitava-se aqui ao
papel de mediação, estando os objectos da necessidade em forma de
mercadoria no princípio e no fim da transacção. Na modernidade
inverte-se a relação, que aqui funciona segundo a fórmula D-M-D'. Os
próprios objectos concretos da necessidade são apenas o "meio" para a
valorização do capital-dinheiro, isto é, para a transformação de
valor (D) em mais valor (D'). Isto significa que a satisfação das
necessidades é rebaixada a um simples subproduto da valorização e
torna-se dependente desta. A produção desliga-se dos laços sociais da
vida, como "economia empresarial" e autonomiza-se como processo
sistémico anónimo face aos seres humanos, que deixam de ter qualquer
controle sobre a reprodução da sua própria vida.

Trabalho, valor, valorização

O mecanismo interno desta "economia desvinculada [herausgelösten]"
(Karl Polanyi) reside na exploração de energia humana ("trabalho").
Nas sociedades pré-modernas a abstracção trabalho era negativamente
conotada, como nome colectivo originariamente para as actividades dos
dependentes (escravos). Apenas na modernidade o trabalho foi
positivado e universalizado. Aqui o trabalho funciona
como "substância" (Marx) do valor e da valorização. O dinheiro não é
senão a representação de um quantum de trabalho. Contudo, a
actividade nesta forma correspondente à autofinalidade sistémica é
também desvinculada dos conteúdos da necessidade e portanto
indiferente face a estes; por isso se trata de "trabalho abstracto"
(Marx). É indiferente se se fabrica bolachas de chocolate ou granadas
de mão, o importante é que a energia humana abstracta como "dispêndio
de nervo, músculo e cérebro" (Marx) possa ser transformada em
dinheiro (mais-valia). À autofinalidade da valorização corresponde a
autofinalidade do "trabalho abstracto"; a infindável acumulação de
valor não é senão a infindável acumulação de trabalho morto
(passado). Do trabalho tem que se fazer sempre de novo trabalho. Sob
estas condições o mercado já não representa nenhuma troca entre
produtores independentes. Ele não passa da esfera da realização da
mais-valia, isto é, da retransformação de "mais trabalho" em "mais
dinheiro". Por isso a "liberdade do mercado" é ilusória; esta
liberdade tem por base a relação coerciva do "trabalho abstracto".
Aqui a coerção já não é pessoal (como por exemplo na relação de
senhor e servo), mas uma coerção sistémica anónima de se vender a si
mesmo como "máquina de dispêndio" de energia humana abstracta (força
de trabalho) na "economia desvinculada".

Todas as actividades, "atitudes" e comportamentos que são necessários
para a reprodução da vida, mas que não podem ou dificilmente podem
ser incluídos no sistema do "trabalho abstracto" e da economia da
valorização desvinculada foram historicamente dissociados deste e
delegados nas mulheres como "trabalho de amor" sem custos (o chamado
trabalho doméstico, a assistência, o acompanhamento, a dedicação, o
desempenho de funções de amortecimento socio-psíquico etc.). O
sistema da economia desvinculada é, portanto, desde logo,
simultaneamente um sistema de "dissociação sexual [geschlechtlichen
Abspaltung]" (Roswitha Scholz). Daí que a dissociação é uma categoria
da totalidade, tal como a valorização e o "trabalho abstracto"; a
relação social total apresenta-se assim como uma relação social
complexa, intrinsecamente fragmentada. A relação de dissociação não
se limita a uma determinada esfera (por exemplo, a família), mas
apresenta-se transversal a todas as áreas da reprodução, incluindo o
próprio "trabalho abstracto". A "economia da valorização" é definida
como "estruturalmente masculina". Entretanto, no processo da
modernização, também as mulheres foram cada vez mais usadas como
reservatório de força de trabalho. Não, porém, no sentido de uma
libertação, mas como dupla subordinação, ao "trabalho abstracto" e
aos momentos dissociados em boa medida considerados de menor valor e
secundários ("dupla carga"). Até hoje as mulheres têm sido em regra
mais mal pagas na economia da valorização, continuam a ser pouco
representadas nas funções de direcção e simultaneamente todo
o "trabalho de amor" continua a ser considerado da sua competência em
todos os domínios.

O moderno patriarcado produtor de mercadorias e as suas contradições

Este breve esboço da conexão sistémica que está na base de todas as
variantes do moderno patriarcado produtor de mercadorias (pois esta é
a designação mais precisa da sociedade da valorização, incluindo a
relação de dissociação) revela só por si um monstruoso desaforo. No
entanto este foi interiorizado e transformado em normalidade
inquestionável no decurso dum longo processo histórico. Os seres
humanos têm que ser "rentáveis" no sentido do fim em si do sistema;
só assim a existência está garantida. Estas exigências foram impostas
nos primórdios da modernidade desde o século XVI e no capitalismo
primordial dos séculos XVIII e XIX com coacção sangrenta e contra uma
longa resistência dos movimentos sociais. Na primeira metade do
século XX, na época das guerras mundiais industrializadas e das
crises da economia mundial, o moderno patriarcado produtor de
mercadorias já parecia fracassar nas suas contradições internas e
dissolver-se no caos e na barbárie – com manifestação extrema no
sistema de aniquilação de seres humanos especificamente alemão do
anti-semitismo exterminador ou nacional-socialismo.

Mas depois da segunda guerra mundial houve o "curto Verão" do milagre
económico. O desenvolvimento das forças produtivas forçado pela
concorrência libertou potencialidades nunca sonhadas, que haveriam de
tornar possível uma "civilização do capitalismo". Apesar da
racionalização a necessidade de "trabalho abstracto" cresceu como
nunca antes, porque os bens industriais de luxo, antes limitados a
uma estreita camada (automóvel, electrónica de uso doméstico e de
entretenimento etc.), entraram no consumo de massas e os mercados
alargaram-se bruscamente. Só então é que as mulheres foram integradas
no trabalho profissional da economia da valorização em grande escala
social. O consumo de massas, incluindo o turismo de massas etc.,
transformou-se numa espécie de quase religião. O fim em si irracional
do sistema parecia reconciliar-se com as necessidades, ainda que numa
forma adaptada, sob muitos aspectos destrutiva (transporte
individual, destruição do ambiente etc.). Outro subproduto do boom do
pós-guerra foi a imparável construção do estado social e de infra-
estruturas públicas, com um elevado standard de educação, trabalho
social e cuidados médicos para todos. É verdade que a realidade
desta "época dourada" da sociedade de valorização do valor e
dissociação, designada "fordismo", do nome do fabricante americano de
automóveis Henry Ford, se limitava aos países do núcleo industrial
ocidental, mas luzia ainda assim uma perspectiva
de "desenvolvimento", também para o resto do mundo.

Ainda que o desenvolvimento das forças produtivas sob a pressão da
concorrência do mercado universal seguisse, depois como antes, o
ditame de transformar trabalho em mais trabalho, e ainda que o brilho
do "milagre económico" tenha começado a esmaecer já desde os anos
setenta, o potencial da produtividade foi desde então celebrado
como "máquina de civilização". Recaíram no passado as muitas gerações
queimadas sob péssimas condições no "trabalho abstracto". Até a
libertação da mulher das suas atribuições tradicionais parecia ser
conseguida em grande medida, apesar da "dupla carga", uma vez que
elas podiam cada vez mais "ganhar o seu dinheiro", as tarefas
domésticas eram consideradas susceptíveis de robotização com a
electrónica e muitos dos domínios dissociados haveriam de ser
resolvidos em sectores comerciais ou em instituições públicas
financiadas pelo Estado.

Porém, desde os anos oitenta que a terceira revolução industrial da
microelectrónica transtornou gravemente os planos de todas estas
esperanças positivas. Desde logo era o mesmo desenvolvimento da
produtividade, que obteve tão grandes sucessos na história do
fordismo no pós-guerra, que constituía simultaneamente a condição da
crise. Pois quanto maior a produtividade, tanto menor a "substância
do trabalho" por mercadoria, e portanto tanto menor o valor a que se
chega no processo da valorização. A contradição está em que cada
empresa individual não "realiza" imediatamente no mercado a mais-
valia que criou dentro das suas quatro paredes, realiza sim uma parte
da mais-valia social total. Esta parte é definida através da
concorrência, onde uma empresa obtém tanto mais êxito quanto mais
barata conseguir fazer a sua oferta. Ora o meio para isso é o aumento
da produtividade. Desde modo, contudo, entram em contradição o meio e
o fim sociais: uma empresa consegue apropriar-se duma parte tanto
maior da mais-valia social total quanto mais contribuir para, através
da elevação da força produtiva, esvaziar e socavar a produção de
valor enquanto tal. Esta contradição chegou a manifestações
explosivas sucessivas nas crises históricas. Contudo ela pôde ser
sempre suplantada porque a queda do valor e com ele da mais-valia por
mercadoria, com a redução da substância de trabalho, era mais que
compensada pela simultânea expansão da quantidade de trabalho total,
com o alargamento dos mercados; com sucesso na era fordista do pós-
guerra, como se viu.

A revolução microelectrónica e as suas consequências

Na revolução microelectrónica, contudo, esta compensação já não
funciona. O potencial de racionalização é agora tão grande que
continuamente se torna supérfluo mais trabalho do que aquele que pode
ser absorvido adicionalmente na valorização, através do aumento da
produção de mercadorias. Apesar do aumento da quantidade de
mercadorias, diminui rapidamente a substância de trabalho
social "válida" no standard de produtividade da microelectrónica e
consequentemente a crise assume carácter estrutural. Nas regiões
periféricas do mercado mundial, na zona do socialismo de Estado do
Leste e da "desenvolvimento atrasado" do Sul, tal situação já
conduziu à derrocada social, precisamente porque a microelectrónica
não pôde ser aplicada com êxito por falta de força de capital e por
isso a respectiva produção caiu abaixo do standard de produtividade
mundial (tornando-se, portanto, "não rentável" e deixando de ter
capacidade de concorrência). Esta situação foi interpretada como
falhanço próprio das variantes do socialismo de Estado, em vez de
como parte de uma crise mundial da terceira revolução industrial,
apesar de o mesmo problema há muito se ter feito notar também no
Ocidente, como desemprego estrutural de massas; e precisamente por
causa da forçosa aplicação da microelectrónica.

Desde então a crise atingiu profundamente os centros ocidentais. Cada
vez mais seres humanos se tornam "não rentáveis" e são excluídos; por
todo o lado partes inteiras dos países ficam abandonadas, enquanto a
economia empresarial se globaliza num terreno de rentabilidade que se
reduz. Na falta de produção de mais-valia real, o capital dinheiro
refugia-se simultaneamente numa economia de bolhas financeiras. Já
não é a venda de mercadorias que é decisiva, mas são os ganhos
diferenciais na circulação de títulos financeiros que suportam uma
valorização tornada fictícia. Empresas e partes de empresas são
tratadas como pedaços de carne para trinchar (fusionite e batalhas
por aquisições, sem investimento real). Na interpretação popular, o
complexo causal é na maior parte dos casos posto de pernas para o ar,
responsabilizando erradamente pela miséria, em tom anti-semita, uma
espécie de "praga de gafanhotos" de especuladores, como se o problema
não residisse nas próprias contradições do sistema produtor de
mercadorias. A expansão dos mercados, no contexto do poder de compra
em queda por falta de capacidade de utilização com êxito de "trabalho
abstracto" rentável, transforma-se em capacidades excedentárias
globais, que são sucessivamente desactivadas. É absurdo: pelo facto
de a produtividade se ter tornado "demasiado elevada" e de poderem
ser fabricados muitos bens com pouco trabalho, cada vez mais seres
humanos são rebaixados a um nível de pobreza ainda há pouco tempo
inimaginável. A divisão da sociedade aprofunda-se cada vez mais; até
a classe média está a ser entretanto apanhada pelo turbilhão da crise.

O Estado social está a ser desmontado

Não se trata, porém, apenas da desmontagem das capacidades de
produção não rentáveis mas, na senda desta tendência negativa, também
o Estado se transforma cada vez mais numa simples administração do
estado de emergência, porque já não consegue regular a economia
empresarial globalizada e porque lhe estão a faltar as receitas. Há
um consenso neoliberal suprapartidário em quase todos os países, que
executa e legitima ideologicamente a crise do sistema, apenas e só
contra os seres humanos. Agora se vê que as "aquisições
civilizatórias" do período do pós-guerra não são auto-sustentáveis,
mas tinham que ser alimentadas com uma valorização conseguida
do "trabalho abstracto". Na mesma medida em que este regride, também
a civilização social é obrigada a recuar. É precisamente sob as
condições do desemprego de massas e da nova pobreza que o Estado
social é desmontado e abandona os seus filhos. Estruturas inteiras
definham e são reduzidas a poucas "regiões metropolitanas". O Estado
desfaz-se dos serviços públicos, como um nobre arruinado se desfaz
das pratas da casa. A privatização significa em regra redução à
capacidade de pagamento privada e portanto o fim das estruturas
universais. Os caminhos-de-ferro deixam linhas ao abandono, os
correios fecham estações. No sistema de ensino expande-se o ensino
para duas classes (conceito de elite), nos serviços de saúde a
medicina de segunda classe. Agora diz-se de novo e sem qualquer
cerimónia: tens de morrer mais cedo porque és pobre. Na maior parte
dos casos são as camadas inferiores da pirâmide social as mais
duramente atingidas pelas restrições financeiras nos serviços
públicos, como é o caso das instituições de trabalho social, de
prestação de cuidados aos deficientes, aos sem abrigo e aos idosos,
porque dispõem dos lobbies mais fracos.

Após os despedimentos em massa nos sectores comerciais e industriais,
a crise do Estado social e dos serviços públicos resultante da crise
da valorização conduz, também nos sectores antes geridos pelo Estado,
a uma "disponibilização" similar de empregados, que vão engrossar o
exército dos caídos. Um número cada vez maior de seres humanos vê-se
obrigado à prestação de serviços baratos e à venda ambulante, ao
empresariado de miséria etc., na esfera da circulação. As mulheres
são particularmente afectadas. O discurso sobre o fim do patriarcado
é desmentido. Por um lado o Estado e a economia delegam novamente as
tarefas financeiramente exauridas do tratar e do cuidar no
amplo "trabalho de amor" voluntário feminino. Por outro lado as
mulheres também são desproporcionadamente afectadas pelo
desmantelamento dos serviços públicos. Sendo certo que as mulheres
nos países ocidentais igualaram os homens no que respeita a
habilitações académicas, o seu emprego, contudo, concentrou-se em
grande medida nos serviços públicos, precisamente os que agora são
reduzidos. Elas sofrem massivamente a desvalorização das suas
qualificações. Em parte os seus lugares são ocupados por mães
solteiras, tratadas com particular dureza pela administração social,
que são obrigadas a trabalhar sem qualificações ou com qualificações
diferentes. Estas, por sua vez, têm que deixar os filhos em centros
de acolhimento, em que na maior parte dos casos trabalham migrantes
leste-europeias, ainda mais mal pagas. Também a pobreza pública é em
primeira linha uma pobreza feminina. A crise da economia da
valorização e do "trabalho abstracto" é simultaneamente uma crise da
identidade masculina; no quotidiano da crise cresce dramaticamente a
violência (familiar) masculina contra as mulheres, enquanto se fecham
centros de acolhimento e casas de apoio às mulheres.

A hierarquia dos não rentáveis

Quais as consequências do agravamento das condições da crise? Na
generalidade, pode dizer-se que mais cedo ou mais tarde todos somos
não rentáveis. Isso é verdade, mas há nesta abstracção uma cilada
argumentativa, pois assim não são consideradas as diferenciações
internas. Quanto mais a crise se agrava, mais se agrava também a
concorrência universal, que é instrumentalizada pela administração da
crise para jogar uns contra os outros os diversos grupos de caídos.
Há divisão social não apenas entre os vencedores em número cada vez
menor e os perdedores em número cada vez maior, mas também entre os
próprios perdedores. Ainda ocupados e desempregados, mulheres e
homens, jovens e velhos, herdeiros em perspectiva e filhos de
indigentes, saudáveis e doentes, não incapacitados e incapacitados,
nacionais e estrangeiros defrontam-se mutuamente ao nível da pobreza;
e trata-se de ver "quem é que ainda se safa". Temos que nos
confrontar com uma hierarquia de não rentabilidade atravessada por
precárias lutas pela partilha. Mesmo no fundo dessa hierarquia
encontram-se os absolutamente abandonados, que já nem maus e
criminosos podem ser: doentes mentais, incapacitados psíquicos e
físicos, dependentes de assistência e doentes terminais. São em série
os repetidos escândalos em lares de idosos e de internamento,
causados também pela desqualificação do pessoal, em número reduzido e
sob a pressão dos custos e do serviço.

Mesmo no centro das democracias ocorrem uma descivilização e uma
desumanização estruturais, que até agora se julgavam bem longe, na
periferia do mercado mundial, donde de qualquer modo já foram
copiadas em grande parte. Não se trata de nenhum pessimismo, mas de
uma realidade social em expansão. Sob tais condições, as clássicas
reacções de crise e ideologias de crise do sexismo, do racismo e do
anti-semitismo encontram-se na ofensiva por todo o mundo,
transversais a todas as camadas sociais. Os demónios do século XIX e
princípio do século XX regressam em forma modificada; não em último
lugar na forma de uma mentalidade social-darwinista, que tem as suas
raízes no liberalismo clássico e que por isso pode manter hoje a
bênção neoliberal na forma completamente desenfreada. "Survival of
the fittest" é a palavra de ordem repetida de novo e já nada
discretamente. A lógica de base subjacente reza que não é o
patriarcado produtor de mercadorias declarado lei natural que chega
ao fim, mas sim o interesse vital e o direito à vida dos seres
humanos não rentáveis. Regressa com novas honras a teoria
da "superpopulação" do liberal hardcore Thomas Malthus do princípio
do século XIX.

Não foram apenas os nazis que inventaram a divisa assassina da "vida
que não merece ser vivida" e a levaram às últimas consequências, pelo
contrário, ela ganhou fôlego a partir de uma larga corrente de
pensamento social-darwinista, na qual, até à primeira guerra mundial
e mesmo depois, se incluem, além dos liberais, grande parte da
esquerda e da social-democracia (o que hoje é completamente
ignorado). É por isso que o consenso neoliberal suprapartidário pode
hoje prosseguir novamente o velho consenso social-darwinista até ao
meio do centro social, e mesmo no interior da esquerda parlamentar:
uma base legitimadora tácita para as tendências de descivilização da
administração da crise e das forças que com elas fazem a co-
administração. Elementos deste pensamento encontram-se não apenas
entre os bandos da direita radical, que na Alemanha já insultam os
incapacitados como "devoradores de recursos" e os derrubam das
cadeiras de rodas, mas também no aparelho da administração social e
entre os quadros da classe política democrática. Entre os seus
antepassados inclui-se, por exemplo, o social-democrata austríaco
Rudolf Goldscheid, que antes da primeira guerra mundial inventou o
conceito de "economia de seres humanos" e recomendou ao Estado
uma "criação rentável de seres humanos", pelo que não deveria ser
alimentado o material humano incapacitado. Precisamente na época de
uma crise do "trabalho abstracto" e das sobrecapacidades da
hiperprodução é que é hoje mobilizada de novo a ilusão deste
revigoramento físico. A aparente suplantação do darwinismo social
pertence à filosofia do bom tempo do passado milagre económico, que
agora se enterra silenciosamente.

Resistência e crítica social

Que possibilidades de resistência existem, face a esta grande
tendência avassaladora de descivilização? Obviamente já não basta uma
limitada política de lobbie dos enfraquecidos serviços sociais. É um
facto que não existe um puro determinismo objectivo da crise e que em
cada situação dada podem ser usadas as margens de manobra imanentes
para "conseguir algo". Mas isso já só funciona em ligação com um
amplo movimento social, que seja capaz de começar a suplantar a
concorrência universal e a impor um conjunto de exigências, mesmo que
com estas não se supere a crise, a qual radica nas contradições
sistémicas do "trabalho abstracto" e da sua estrutura de dissociação
sexual. Para que um tal movimento em geral possa ser possível é
necessária uma pequena guerra tenaz também no dia a dia, contra o
pensamento social-darwinista, sexista, racista e anti-semita, em
todas as suas variantes. Quando a resistência imanente encontrar a
perspectiva de outro modo de produção e de vida, para lá do
patriarcado produtor de mercadorias e portanto também para lá do
antigo socialismo de Estado, as formas de desenvolvimento da crise
podem abrir-se para além disto, para uma nova sociedade. Esta
abertura só é possível através da simultânea abertura do horizonte
mental a uma nova crítica social radical – em vez de se deixar
consumir completamente pelo dia a dia da crise.



Original UNRENTABLE MENSCHEN. Ein Essay über den Zusammenhang von
Modernisierungsgeschichte, Krise und neoliberalem Sozialdarwinismus,
in www.exit-online.org (19.01.2006)

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