segunda-feira, 24 de março de 2008

ESTATUTO DO ALUNO, INDISCIPLINA E COMENTADORES DESPORTIVOS


O comentário desportivo, em Portugal, já tem alguma qualidade: um jargão próprio, opiniões sem fundamento bem apresentadas, análises críticas muito distantes de princípios mínimos de imparcialidade, comentadores engravatados, etc.
Os comentários sobre educação estão, no entanto, ainda a fazer o seu caminho em direcção a essa almejada qualidade: falta-lhes um jargão bem estabelecido; tudo o resto (opiniões sem fundamento bem apresentadas, análises críticas absolutamente parciais, comentadores engravatados) já têm.
A turma C do 9º ano da Esc Sec. Carolina Michaelis teve honras de notícia de primeira página e, por conseguinte, foi igualmente honrada com comentários, cuidadosamente elaborados pelos melhores comentadores da nossa praça. Nem outra coisa seria de esperar. Aos medíocres cabe comentar o custo de vida, a crise na democracia em Portugal. Os bons, os excelentes, para dizer a verdade, interessam-se por coisas de inigualável relevo:
  • a coragem e a determinação do Governo (um dia ainda veremos um criminoso, a ser julgado por homicídio, a argumentar em tribunal que o fez com muita coragem e determinação, e o acusador a tentar provar, com sucesso se o criminoso for pobre, que foi, pelo contrário, com muita covardia e indecisão que o crime foi praticado);
  • a histeria de uma aluna a quem a professora decidiu cortar um apêndice que estava a crescer nas suas mãos - um verdadeiro tumor falante, perigoso para a saúde - entrando em pânico como uma criança que vai ser injectada com penicilina.
A respeito da coragem e determinação do Governo, não sei dizer nada, porque nunca me passou pela cabeça que esses fossem valores tão sem conteúdo. Fui erradamente educado na ideia de que a coragem e a determinação são qualidades só dignas de mérito se aplicadas a fazer a justiça, a lutar pela liberdade e pela dignidade de cada um. Nunca fui treinado a pensar que seriam qualidades para legitimar o poder de ser injusto e arrogante. A injustiça e a arrogância parecem coragem e determinação, mas não são; pode mesmo dizer-se que são o seu contrário. Mas sobre isto reconheço a minha muito deficiente formação. Calo-me, portanto.
Agora, sobre o comportamento da tal aluna que entrou em crise histérica numa sala de aula, para gáudio dos seus colegas e perigoso aumento da tensão arterial da sua professora, já me parece ter algo a dizer. Nada que pretenda pôr em causa o brilhantismo dos recém-comentadores de educação: os neófitos precisam que lhes sejam proporcionadas condições para elevar a sua auto-estima, sob pena de destruirmos, à nascença, um verdadeiro filão da comunicação social, o que, sendo feito sem coragem e sem determinação, merecerá pena exemplar.
Houve quem dissesse que a culpa é do novo estatuto do aluno. Logo surgiu a Ministra, dizendo que o estatuto não está ainda a ser aplicado.
A Senhora Ministra tem toda a razão: foi para isso mesmo que o novo estatuto do aluno entrou em vigor em Janeiro e não no início do ano lectivo, foi precisamente para não ser aplicado. Poder-se-ia pensar, então, que a culpa é do anterior estatuto, do que foi revogado pelo novo. Mas terá essa culpa origem no facto de ele ter sido revogado, ou no facto de um amanuense qualquer o ter desrevogado, mantendo dois estatutos diferentes em vigor ao mesmo tempo, como foi comunicado às escolas?
Não consigo ir por este caminho, porque não tenho o traquejo nem a habilidade dos brilhantes comentadores de televisão, jornais e revistas. Seguirei, portanto, o mais simples e primário, dadas as minhas limitações.
Vejamos então:
  • a população escolar mudou: agora já é frequentada por alunos que têm crises de histeria por causa de um telemóvel; antes, não havia telemóveis e as crises de histeria eram um direito exclusivo para professores;
  • as alterações ocorridas no seio da sociedade e transpostas para a escola exigem adequações no conceito e prática da escolarização;
  • estas adequações exigem a superação de obstáculos, gerados quer pelos movimentos sociais, que pela imobilidade da escola;
  • digamos que a escola está parada numa rampa de grande inclinação e não tem força de motor suficiente para a subir;
  • como para os nossos brilhantes reformistas (comentadores e decisores políticos) a ideia de uma escola parada no meio de uma rampa gera urticária, decide-se pô-la em movimento;
  • sem força de motor para subir, e só para que não fique parada, é tomada a corajosa decisão de a fazer descer;
  • em lugar de pensar na reorganização da vida na escola, no estabelecimento de regras novas de vida, cria-se um novo código penal para os alunos, um novo estatuto para os professores, etc.
A histeria dos alunos não vai desaparecer tão cedo.
Mas esta descida da escola ao inferno podia começar a parar. Bastava um pouco menos da dita coragem e um pouco mais de inteligência.

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