domingo, 9 de março de 2008
JÁ FOI HÁ MUITO TEMPO...
Eduardo Prado Coelho
Já foi há 25 anos
Sabes que houve uma primeira vez que eu tentei explicar o 25 de Abril, e que foi um verdadeiro fiasco? Estávamos ainda em plena efervescência, naquela espécie de Maio de 68 dilatado, passado e repassado em câmara lenta às vezes exasperante, outras vezes contagiante e comovedor, e, sabe Deus porquê, os senhores da embai-xada da Bulgária acharam que eu devia lá ir escolher filmes para uma semana de cinema búlgaro, que se passou ali no Apoio 70. Escolhi para abertura do Festival um filme feito por estudantes, alunos de uma escola de cinema, sobre uns jovens que roubavam carteiras nas ruas de Sófia, e aquilo nem caiu muito bem em termos oficiais, mas era do mais fresco e saudável que por lá vi. E na Bulgária deram-me uma guia, que era filha de um cineasta, que lia Freud às escondidas na biblioteca da Alliance Française, e a quem deixei os romances de Pierre Jean Jouve que levava comigo, e ela queria saber o que era o 25 de Abril e eu explicava com o entusiasmo de quem supunha (ou supunha que supunha ... ) que estava a inventar uma coisa inteiramente nova, que tínhamos come-çado a construir uma alternativa ao capitalismo, que no entanto não tinha aquele ar de pesadelo totalitário em que se tinham transformado os países de Leste, e ela a parte final até entendia, entenderia até melhor que eu, mas o principio suscitava-lhe engulhos, e de repente quase gritou para mim: «Mas o que é que vocês têm contra o capitalismo?...
Aí percebi que estas evidências nunca são inteiramente partilhadas, são evidências para quem acredita nelas, são violências para quem não acredita, e no fundo de nós próprios o enraizamento das crenças é algo de inexplicável. E comecei com ela tudo do princípio. Mas isso não me impede de dizer, e gostar imenso de que tu o entendas por dentro: "O 25 de Abril foi um dos mais belos momentos da minha vida, e o 1 de Maio um dia glorioso, como diz o Pessoa ao escrever os poemas de Alberto Caeiro" 0 que é extremamente difícil de contar, e isso tem a ver com o facto de tudo aparecer em mim mais como poema do que como narrativa, isto é, como uma sobreposição de imagens que se arrancam ao tempo normal, e que criam um contra-tempo, isto é, um tempo que resiste ao tempo normal e procura uma outra forma de ordenar as paisagens, os gestos, as palavras, etc.
Eu sabia que havia coisas que se estavam a preparar, alguns amigos (lembro-me de conversas com o Fernando Lopes) mantinham-me informado, pressentia que um tempo chegara ao seu termo, e no entanto isso aparecia como a mais improvável das probabilidades. Encontrava-me no Monte Carlo que já não existe, mas onde durante anos almocei dias a fio, ou então no Vavá, que existe mas reduzido ao fantasma de si próprio, e aí recolhia informações, trocava opiniões, avaliava hipóteses, e depois contava ao meu pai, mas ele tinha um cepticismo causticado, já vira muito e não queria acreditar demasiado. Mesmo depois de eu lhe ter levado o livro de Spínola.
Até que um dia, acordei, levantei-me, liguei o rádio como fazia sempre, e no momento em que passava a água pelos olhos para despertar melhor (é importante, para mim claro, dizer que foi neste momento, não é que isto simbolize o que quer que seja, mas é uma espécie de presilha da memória ao real, a coincidência mágica entre a água nos olhos e a ideia de revolução), ouço aquela fórmula mágica: «Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas» (dois poetas mais tarde falariam nas «forças arnadas», num desvio hábil e homenageante de algo que durante meses dominou as nossas vidas), e então chamei a R. e disse: «é agora, começou tudo, ouve» - e ouvimos, e decidimos logo ir chamar os vizinhos amados amigos e sair para a rua e ir ver o que se passava - porque duma coisa estávamos certos, a de que era impos-sível ficarmos parados. E fomos - dum lado, havia o José Antonio e a Hélia, doutro a Maria Alzira e o Manuel Alberto.
Chama-se a isto uma emoção estética - algo que é preciso partilhar o mais depressa possível, algo que é preciso dizer aos outros: não podes perder.
Por isso repito - eu posso comprar-te todos os livros e cronologias sobre o assunto, o belíssimo álbum que o Boaventura de Sousa Santos nos forneceu, os textos de análise do António Reis ou do Medeiros Ferreira, tudo o que quiseres, mas se tu não sentires o 25 de Abril como este momento de poesia pura (o dia em que o real é a poesia absoluta), então não entendes nada de coisa nenhuma, e o melhor é desistires. É isso que torna difícil transmitir uma memória: há uma forma de o vivido nos tatuar o corpo que nada pode apaga'r. É, se quiseres, o para-digma da festa.
Aliás, se pegares no último romance do Helder Macedo, Pedro e Paula, verificas que é um romance sobre o 25 de Abril, porque é um romance sobre o antes e o depois, mas que naquilo que devia ser o 25 de Abril em si mesmo, temos o título do capítulo, «Festa é festa,,, a data, 1974, e a seguir linhas sem palavras, até que na página seguinte, se conclui com esta frase: «Mas festa é festa, e essa já ninguém nos tira». 0 que gosto neste «já ninguém» é que ele engloba Deus, sobretudo se nos lembrarmos daquelas discussões medievais sobre se uma rapariga que tivesse sido objecto de violação poderia deixar de o ter sido por vontade de Deus, ou se o que aconteceu se sobrepõe à omnipotência divina. E esse é o sentido radicalmente revolucionário de quando se diz de algo que foi para nós uma verdadeira festa que "esta já ninguém me tira," - nem Deus, se o quisesse, porque fui eu que o vivi.
E portanto fui eu que vivi o 25 de Abril, fui eu que saí com a R., a Hélia e o Zé Antônio e fomos de carro para os lados do Carmo, ver o que se passava, e andámos em marcha atrás alucinada para fugir aos movi-mentos descontrolados de massas por alguns disparas desgarrados, o encontrarmos as caminhos mais adequados àquilo que pretendíamos: viver a História no momento em que ela é ainda a «nossa história».
Depois, foi à noite olhar a televisão e descobrirmos, entre alguma admiração e alguma desconfiança, o rosto dos "nossos" libertadores. Mas foi sobretudo o espanto de vermos como tudo o que parecia inabalável estava corroído por dentro, como as tropas não tinham alma para lutar em defesa de uma ditadura visceralmente minada, como a democracia era (às vezes demasiado depressa) uma «evidência», e como o MFA nos aparecia, nas suas múltiplas faces e contradições, como a total inversão do que pensávamos: afinal as Forças Armadas podem ser democráticas, podem mesmo ser de esquerda, podem mesmo ser inge-nuamente de extrema-esquerda, e durante alguns meses vão desem-penhar o papel do sujeito-suposto-saber, isto é, do pólo de todas as transferências, do lugar de todas as utopias, eles chegam e a situação resolve-se, nomeia-se um MFA e a democracia assegura-se...
No dia seguinte, entrada orgulhosa e feliz no espaço da Faculdade de Letras, e foram dias de uma fraternidade real, da cumplicidade inter-minável entre os amigos que se encontravam e a quem nos abraçávamos, mas também os sorrisos na rua. A felicidade partilhada, a alegria comum, na certeza já de que tudo o que de absoluto se vive é a coisa mais frágil deste mundo, e irá fender-se como uma porcelana no próprio momento em que ainda a julgo viver inteira. Mas não tem importância, essa já ninguém nos tira - nem Deuses, nem Reis, nem o ditador que caiu da cadeira, nem o pai precário das conversas em família... Na Faculdade, enfrentamos os primeiros choques entre os impacientes, que querem desde já tudo mais e mais, e os «realistas» , entre os quais me situo de imediato por uma espécie de instinto, para quem o essencial é continuar a viver esta quimérica unidade do povo em festa.
Mas afinal que foi o 25 de Abril?, perguntarás. Foram tantas coisas ao mesmo tempo. Foi o fim da guerra colonial, - embora o início de um processo de descolonização confuso, atribulado e sangrento. Foi a reconquista da democracia mínima, como diria Norberto Bobbio, e a rodagem dos seus novos mecanismos, e com isso a recusa feroz de
qualquer nova forma de censura, de todos os processos de opressão, de todas as polícias sem controle, de tudo o que de perto ou de longe evocasse o tempo salazarento em que os discursos do "velho abutre" tinham o dom de tornar «as almas mais pequenas» (para glosar um poema de Sophia de Mello Breyner). E foi a entrada num tempo em que "as almas se sentiam maiores". 0 Partido Comunista procurava reeditar os processos de conquista de poder que tinham funcionado noutros tempos e noutros lugares: multiplicando-se em duplos mais ou menos exangues, e empurrando as alternativas reais para o espaço da não-democracia. 0 PS, procurou resistir, mesmo que para tal se aliasse aos esquerdismos mais descabelados. E lembro-me como todos os partidos, do CDS ao PPD, entravam na gramática da revolução: no fim do Campo Grande, alguém havia escrito que «Só a social-democracia é revolucionária». Uns sonhavam com uma inserção na lógica terceiro-mundista - era esta a alternativa dos militares mais ideologica-mente formados (entre os quais o mais notável foi sem dúvida Meio Antunes, o mais corajoso sem dúvida Otelo, o mais inteligente e hábil sem dúvida Costa Gomes, e o mais ingénuo e exaltado Vasco Gonçalves). Outros iriam desde logo apostar na carta europeia - foi essa a genial intuição de Soares.
Contudo, o essencial do 25 de Abril, aquilo que faz que para uns se trata de uma data que os faz (nos faz) estremecer de emoção, hoje, ainda e sempre, e que para outros o importante é o que 'se instalou depois, e a data evoca apenas os excessos, as confusões, a batalha quotidiana por uma verdade incerta e inacessível, a violência das exclusões, dos saneamentos ou das fugas apressadas para o Brasil, o essen-cial do 25 de Abril, repito, é que se trata de um momento revolucionário (e não de uma revolução, como o PCP terá imaginado, ao querer copiar um desses regimes que hoje reconhecem ter sido de repressão e crime organizado e domínio boçal e baço das burocracias). E o que é um momento revolucionário?
É talvez aquilo que provavelmente só a nossa geração sabe ainda reconhecer em toda a sua pureza: é quando, movidos pelo desejo de outra coisa, ou melhor, de uma coisa sempre outra, vamos um pouco à frente de nós próprios, suspensos de desejo e não-saber, capazes do melhor (e por vezes do pior), num crescer de alma em que tudo converge, moral e estética, política e conhecimento, numa bola de fogo e exaltação, mitologia romântica, se quiserem, ou transcendência da história, ou ruptura das métricas do tempo, e andámos aos tiros aos relógios de uma cidade para inventarmos as cidades futuras - fique embora mais curta a nossa vida. Não te digo mais nada - dou-te as mãos, e a emoção contagia-nos de novo, como se o mundo começasse hoje aqui e agora, ou, como escreveu Samuel Beckett, «moi seul suis homme et tout le reste, divin,,.
A grande questão é sabermos se isto se transmite, ou melhor, se isto hoje, mesmo como simples menção estética, ou confinada à estética, faz ainda sentido. Não estou certo. 0 que nós vemos à nossa volta é tão obviamente diferente. Terá sido um momento da História que desa-pareceu para sempre? Irá regressar na curva de um ciclo ideológico cuja constituição não sabemos equacionar? Mas as diferenças saltam aos olhos: quando os estudantes antes do 25 de Abril vinham para a rua ser perseguidos e presos pela polícia, então queriam, acima de tudo, um tempo de liberdade. Quando,, já em democracia, passaram dias, semanas, meses, a inventarem novas formas de relação com o saber, novas modalidades da relação de ensino, novos esquemas de'poder, autoridade e participação, era a ideia de que a felicidade poderia ser uma ideia nova na Europa. Quando hoje se manifestam pela questão das propinas, não têm nenhum mundo por detrás, nenhum incêndio por dentro das palavras, nenhum poema oculto ou murmurado, mas apenas a irreverência adolescente e a demagogia manipulada, e é por isso que depois são sages e conformes, conservadores e bem comportados, lisos e performantes, liberais e neoliberais...
Mas todos sabemos como nada se repete. Estamos no princípio de um século, e do que se passa aos nossos olhos fica apenas o cansaço de um século que se escreveu e despudoradamente se desescreveu e nos deixou agora perante o ilegível da História, sem sabermos se isto é o fim, ou o princípio de tudo.
Sobretudo desse tudo que a nossa geração não chegará já a ver, nem mesmo a conhecer, nem mesmo a nomear, mas que eu gostaria que pairasse, como um fio de luz no crepúsculo, no momento em que te começo a contar como foi, há vinte e quatro anos já, o nosso 25 de Abril, e digo: tu sabes, e nas minhas palavras, por instantes, tu és o 25 de Abril que foi.
DNA
1998
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