Joseph Ratzinger (Bento XVI) decidiu publicar a sua história da vida de Jesus. Essa história já vai em três volumes. Já li o primeiro volume (é possível obtê-lo gratuitamente no sítio brasileiro www.amormariano.com.br ). Tenho muito respeito e vergo-me sem dificuldade à superioridade intelectual de Joseph Ratzinger, mais do que ao seu actual papel na Igreja católica.
Atrevo-me, no entanto, a criticar a sua tendência para ler as Escrituras em função das suas próprias convicções, com preconceitos, portanto. O caso mais paradigmático relaciona-se com a forma como vê a primeira tentação de Jesus durante o período em que se recolheu no deserto. Jesus estava com fome e o demónio tentou-o de facto de uma forma absolutamente cínica: "Se és filho de Deus, transforma estas pedras em pão". Jesus resistiu à tentação e preferiu manter o seu jejum.
A este propósito, Ratzinger escreve "Se és filho de Deus..." - que desafio. E não se deve dizer o mesmo à Igreja: se queres ser a Igreja de Deus, então preocupa-te em primeiro lugar com o pão para o mundo, o resto virá a seguir. Deste modo, sugere que seria uma tentação do demónio que a Igreja se preocupasse em primeiro lugar com o pão para o mundo. Com efeito, compara a tentação, a que Jesus resistiu, de recorrer a um milagre para matar a sua própria fome, com a tentação de a Igreja se preocupar com o pão do seu povo. Ora, com o devido respeito, não é a mesma coisa. Conforme Ratzinger reconhece, quando se tratou de matar a fome ao povo que o seguia, Jesus não hesitou em fazer a multiplicação dos pães. Interpreta ele esta diferença com a diferença da prioridade da palavra de Deus sobre o pão. Aqueles que seguiam Jesus estavam com fome, mas assumiam como prioridade ouvir a palavra de Deus.
A minha interpretação é outra: Jesus não se deixa tentar pela sua própria fome, mas preocupa-se com a fome do povo. Assim devia ser a Igreja, que não deveria preocupar-se tanto consigo, mas mais com o povo. E aqui não vale dizer que a Igreja é o povo, porque, então, a situação seria ainda muito mais grave: o povo, igual perante Deus, seria tratado pela sua hierarquia como desigual, sendo que uns teriam direito a todo o pão de que necessitam e até àquele de que não necessitam, enquanto a esmagadora maioria precisaria de um milagre para que lhe fosse feita justiça.
Diz Ratzinger e muito bem: Do modo conceptual mais elevado, o marxismo fez disto (da prioridade ao pão) o cerne da sua promessa de salvação: ele cuidaria para que acabasse toda a fome e que o "deserto se tornasse pão". Sem Deus, digo eu. Ora, se a Igreja quiser fazer o mesmo com Deus, não me parece que seja má ideia.
Talvez valha a pena pensar nisto. Não?
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