"O que Espinosa diz a este respeito na carta a Jarig Jelles antecipa a doutrina do TP e é, ao mesmo tempo, a aplicação coerente da sua ontologia à política. Na impossibilidade de encontrar a fundamentação em qualquer transcendência, e na impossibilidade de pensar os indivíduos como desapossados daquilo que os constitui, ou seja, a potência da natureza, a política somente pode ser pensada na imanência e como configuração específica do relacionamento entre esses modos da natureza que são os seres humanos. Antes de a política opor Espinosa a Hobbes, é a ontologia espinosana que impede que se pense a política a partir do indivíduo isolado, pois este, em boa verdade, é mais uma "opinião" do que algo que realmente se dê na natureza. No capítulo II do TP diz-se claramente que o direito natural somente pode conceber-se "onde os homens possuem direitos comuns".
Não se trata de uma verificação empírica ou de algo que se aprenda com a história. É a própria definição do indivíduo como modo da substância que obriga a concebê-lo obrigatoriamente em contexto relacional. A ordem da natureza é a ordem das conexões entre os seus modos, conexões estas que fazem de cada um deles uma teia de efeitos e de afetos, ao mesmo tempo que aumentam ou diminuem a sua independência no contexto em que se encontra, tornando-o mais sui juris ou mais a/ferii juris, mais independente ou mais dependente e submisso. O jurídico, enquanto ordem e ordenação das potências individuais e coletivas, é também expressão da natureza. Desse ponto de vista, a multidão já está presente e começa a emergir logo no próprio conceito de individualidade, sendo por essa razão o único horizonte em que é possível pensar o político. É este o motivo por que o direito do estado é definido no TP como potência da multidão, e não como potência subtraída à multidão, à maneira hobbesiana. Negada a consistência ontológica de um operador que artificialmente constituiria o direito comum a partir da cedência por cada um do seu direito individual, é agora a potência ou direito natural dos indivíduos associados que se constitui, ela própria, em direito civil.
Com efeito, Se dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho; e quantos mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos.;
Esta forma de encarar o político como um processo relacional e como continuação do estado de natureza não equivale, porém, a extrair a conclusão aristotélica segundo a qual o homem seria naturalmente sociável. pelo contrário, trata-se de um processo que é tanto de associação como de conflito, em que o direito de cada um significa sempre a sua atual e efetiva independência perante os demais.
Se há acordo entre dois ou mais homens, "se a multidão, como diz Espinosa, convém naturalmente, não é sob a direção da razão mas do afeto comum"". Ora, o afeto comum, tal como o afeto individual, é por essência perecível, inconstante e mutável. Considerar, pois, a natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoura consoante os afetos comuns que estabilizam e predominam em dado momento. É aí, nesse preciso horizonte, que Espinosa se encontra com Maquiavel.
Na verdade, afirmar a equivalência do direito e da potência implica admitir, no agregado social, uma dinâmica de constituição do direito comum enquanto forma de preservação dos conatus individuais, ou seja, do esforço que cada um faz para perseverar na existência. É do interesse de cada um juntar-se àqueles cuja presença faz aumentar a sua própria potência e o seu bem-estar. É igualmente do interesse de cada um opor-se àqueles que lhe diminuem a potência e reduzem o bem-estar. Desse modo, e através desta dualidade matricial em relação a todo o fenómeno afetivo, originam-se aproximações e exclusões, há grupos que se formam e grupos que se combatem, há paz e há guerra, há novos "corpos", enfim, que se constituem e que remodelam constantemente a paisagem social."
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